Não o conhecia. Há quem tenha pudor em admitir realidades destas. Não é o meu caso. Só tardiamente ganhei cultura literária. Tenho lacunas imperdoáveis. Mesmo falando-se de Henry de Monteherlant, da Academia Francesa, sobre o qual há imenso escrito [veja-se aqui e aqui] e uma latente polémica em torno dos seus amores sobretudo quando homossexuais e do que exprimiu sobre o feminino. E, no entanto, sem grosseria. A elegância pode ser escandalosa quando doce.
Li a passada semana, Piedade para as Mulheres, volume da tetralogia Les jeunes filles. Chegou-me oferecido inesperadamente, dado por quem o tinha que é a forma mais generosa de dar.
O romance é prodigioso na técnica literária, somando a narrativa em que a personagem e o autor se intrometem, o primeiro como figura central da descrição, a que dá voz, o segundo com ele contracenando e por vezes desmentindo-o ou rectificando-o, e tudo em justaposição com cartas, excertos de diário e apontamentos breves que surgem, como se não vindo ao caso, a dar ao conjunto a força apelativa da surpresa permanente.
Filosofia misógina, dir-se-ia naquela forma redutora como estas questões são normalmente tratadas quando não canónicas, com decaídas de vulgaridade é certo, mas a fazer, no entanto, esperas constantes ao leitor, tornando-o presa do que é a notável argúcia na observação e a fina complexidade na avaliação da extraordinária riqueza da vida. Ainda que discutível, mesmo a não resistir à revisão do que se sublinhou.
Livro sobre o amor e seus demónios, sobe vertiginosamente da dorida luxúria à alegria sádica, vítima e algoz a confundirem-se, bem e mal a tornarem-se indistintos, mundo do «em quem confiaríamos se não confiássemos nos que não conhecemos?», paradoxo moral cuja periculosidade é, afinal, uma das chaves da compreensão desta obra, em que, parafraseando se «torna o amador na coisa amada».
Biográfico, numa desconfortável medida porque oculta, história em que o desamor pelas mulheres irrompe travestido em mal-entendido ressentido, em que o ser-se contra a natureza por ser-se contra os costumes se torna apenas como uma das muitas máscaras de reserva de um autor que se esconde e demonstra com igual convicção e falta de sinceridade.
Final vulgar, reles mesmo, como que a assinalar, em despejos, o pantagruélico festim, exauridas as possibilidades até ao momento em que, como nos Evangelhos, o homem: «mulher, o que há entre mim e ti?». Vazio, nada, o zero apto à esperança do recomeço. «Um escritor digno desse nome é sempre um monstro». Montherlant, sátiro, dixit.