domingo, 29 de julho de 2012
Ímpia piedade
Não o conhecia. Há quem tenha pudor em admitir realidades destas. Não é o meu caso. Só tardiamente ganhei cultura literária. Tenho lacunas imperdoáveis. Mesmo falando-se de Henry de Monteherlant, da Academia Francesa, sobre o qual há imenso escrito [veja-se aqui e aqui] e uma latente polémica em torno dos seus amores sobretudo quando homossexuais e do que exprimiu sobre o feminino. E, no entanto, sem grosseria. A elegância pode ser escandalosa quando doce.
Li a passada semana, Piedade para as Mulheres, volume da tetralogia Les jeunes filles. Chegou-me oferecido inesperadamente, dado por quem o tinha que é a forma mais generosa de dar.
O romance é prodigioso na técnica literária, somando a narrativa em que a personagem e o autor se intrometem, o primeiro como figura central da descrição, a que dá voz, o segundo com ele contracenando e por vezes desmentindo-o ou rectificando-o, e tudo em justaposição com cartas, excertos de diário e apontamentos breves que surgem, como se não vindo ao caso, a dar ao conjunto a força apelativa da surpresa permanente.
Filosofia misógina, dir-se-ia naquela forma redutora como estas questões são normalmente tratadas quando não canónicas, com decaídas de vulgaridade é certo, mas a fazer, no entanto, esperas constantes ao leitor, tornando-o presa do que é a notável argúcia na observação e a fina complexidade na avaliação da extraordinária riqueza da vida. Ainda que discutível, mesmo a não resistir à revisão do que se sublinhou.
Livro sobre o amor e seus demónios, sobe vertiginosamente da dorida luxúria à alegria sádica, vítima e algoz a confundirem-se, bem e mal a tornarem-se indistintos, mundo do «em quem confiaríamos se não confiássemos nos que não conhecemos?», paradoxo moral cuja periculosidade é, afinal, uma das chaves da compreensão desta obra, em que, parafraseando se «torna o amador na coisa amada».
Biográfico, numa desconfortável medida porque oculta, história em que o desamor pelas mulheres irrompe travestido em mal-entendido ressentido, em que o ser-se contra a natureza por ser-se contra os costumes se torna apenas como uma das muitas máscaras de reserva de um autor que se esconde e demonstra com igual convicção e falta de sinceridade.
Final vulgar, reles mesmo, como que a assinalar, em despejos, o pantagruélico festim, exauridas as possibilidades até ao momento em que, como nos Evangelhos, o homem: «mulher, o que há entre mim e ti?». Vazio, nada, o zero apto à esperança do recomeço. «Um escritor digno desse nome é sempre um monstro». Montherlant, sátiro, dixit.
O passageiro do navio do nunca
Li-o e sempre a compará-lo com Wenceslau de Moraes. Não conseguiu, como este, florescer no jardim da sua alma a cultura oriental, talvez porque aquele teve o privilégio de rumar da China ao Japão e colher do perfume floral do sentir a verdadeira essência. Também não alcançou aquele vértice de despojamento errante, temível de grandeza mesmo quando a roçar a miséria.
Camilo Pessanha esgotou-se numa obra sem ter querido escrevê-la enquanto livro, a Clepsidra. Tudo o mais não lhe sobejou, dizimado por um filho desprezado, pelo seu esvaimento em vida, pela displicência com que sobrevivia ante o materialismo necessário dos cargos públicos de que pouco fruia.
António Dias Miguel encontrou-lhe o rasto, buscando-o aos primórdios por Lamego, menino, ele que não se lembrava de ter tido infância, e seguiu-lhe até ao rastejar moribundo, trazido à luz pela ilusão do ópio, vivendo entre o ambiente confuso e mal arrumado de uma quarto onde se confinava, qual junco «do incessante naufrágio que tem sido a minha pobre vida», passageiro de bordo de um navio que gostaria fosse sem destino «a não chegar ao meu sítio nunca».
Europeu por natureza, expatriado por necessidade, sabia que «os ossos, mesquinhos, ai de mim! esses pertencem, por um destino invencível e absurdo, ao chão antipático do exílio».
O seu espólio encontra-se na Biblioteca Nacional [ver, por exemplo, aqui]. O possível.
sexta-feira, 13 de julho de 2012
A simplicidade de Deus
Abre grandiloquente e depois, um pouco a seguir ao meio do primeiro volume, dilui-se na intriga da pequena política e seus actores. Por momentos a escrita tenta aí erguer-se, em voo largo, mas falta-lhe asa e logo baixa ao rasteiro do comentário por vezes brejeiro. Surpreender-se-à aí El-Rei Dom Carlos, na vertente que o perdeu, fulminado como o «caçador Simão» pela pena então iconoclasta de Guerra Junqueiro, com ele a Monaquia agonizante, entre a Parada e a alcova alcovitada, o espectro do regicídio no horizonte, os partidos fracturando-se e com eles a Nação.
São as Memórias de Raul Brandão. Leio-as, e no seu pórtico a retumbância: «Se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava-a com os mesmos erros e paixões. Não me arrependo, nunca me arrependi. Perdia outras tantas horas diante do que é eterno, embebido ainda neste sonho poído. Não me habituo: não posso ver uma árvore sem espanto, e acabo desconhecendo a vida e titubeando como comecei a vida. Ignoro tudo, acho tudo esplêndido, até as coisas vulgares: extraio ternura duma pedra».
Que dizer dessa portentosa escrita, vivida naquela «época horrível», de um horror «porque já não cremos e não cremos ainda», de uma História que «tanto se faz com a verdade como com a mentira»? São crónicas do Passeio Público e da Feira das Vaidades, e retratos burlescos, de gente que hoje são vultos informes, como «o Schwalbach, sempre aflito e sempre despreocupado», ainda do Eça, que «usou toda a vida bentinhos ao pescoço», o Ramalho melhor definido como «um pinheiro com uma melancia em cima».
Sim, isso tudo mas também geniais momentos, arrancados ao peito onde se esconde a piedade amorosa, sobre o Gomes Leal e o Fialho, sobre a penúria e a compulsão, este «um doente com inveja das doenças dos outros», «dilacerando dilacerando-se», aquele «encolhido e friorento», carcomido pela necessidade e, no entanto, voraz ante a vida, e Fernandes Tomaz, «outro homem adorável que morre, mas felizmente não sabe que morre».
Escrevo esta noite. E esta última frase solta-se como uma tristeza que vogasse, errática, pela sala vazia onde me surge. E penso com ele: «Deus é muito mais simples do que imaginas. Rodeia-me - não o sei explicar».
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