segunda-feira, 27 de agosto de 2012

O Bem e o Mal

Só a ilusão dos citadinos de que o Portugal dos livros de Camilo Castelo Branco desapareceu, ido o mundo rural, avassaladora que se tornou a sociedade de serviços, é que nos impediria de o ler e com o maior agrado e sobretudo recreação.
Não, aquele mundo subsiste porque traduz a alma portuguesa e o modo de ser de pessoas que ainda hoje reconhecemos, mesmo que expatriados nas cidades.
Podem as classes sociais já não conterem o domínio arrogante dos titulares, cujo "Dom" já era só por si uma fortuna, ou o o clero já não conter aquelas figuras de "reverendos vigários", nomeados pelo Governo, para lugares de pingues côngruas que tornavam o púlpito almejado conforto, ou todos os outros da extensa galeria de vidas feitos actores da narrativa.
Mas, descontadas as roupagens, desconsiderados os intérpretes, as personagens subsistem.
Digo isto ao estar a meio da leitura de O Bem e o Mal, «novela» de amores recusados por serem inconveniências os de filho de carpinteiro com donzela brasonada e da mais antiga estirpe, paixão negada pelos interesses da família, mas abençoada, afinal, pela integridade mural de um cura aldeão, caso, afinal, de humildade vencedora.
Não falarei do livro, não por não ter ainda terminado a leitura, mas porque, lendo seguindo mais o modo de contar a historia do que a história tal como é contada, confundo ainda as sombras das figuras deste magnífico teatro e sobretudo em cada capítulo há uma surpresa que aguarda.
Cito, sim, do prefácio a esta segunda edição, que surgiu na época erroneamente como sendo a terceira: «Foi vagarosa a saída da primeira edição deste livro. É óbvia, e ao mesmo passo, desconsoladora a explicação. A novela não perdeu por mal escrita; mas por mal pensada. Quanto a linguagem, tanto montava o quilate desta como o das suas irmãs. A incorrecção é o castigo de quem escreve muito à pressa para ir acabando mais devagar. Em Portugal é preciso isto».

sábado, 18 de agosto de 2012

A magnificência e a imundície

Estou quase a acabar de ler Os Últimos Dias de Pequim de Pierre Loti. Leio-o na edição da Lello, não a de 1990 sim numa publicada sem data, num exemplar que a alguém pertenceu em 1942. 
Livro que relata uma expedição militar do autor à China, enquanto comandante de Marinha, no quadro de uma força militar internacional que invadiu aquele País em nome do combate à guerra dos "boxers", este é uma travessia pelos territórios do sublime e do sórdido, acumula-se por páginas que doem ao ler pelo relato descarnado da violência indescritível e bestial e páginas que são devaneio para a sensibilidade ao descreverem, com minúcia e sensibilidade, a milenária China e os seus imutáveis habitantes.
Traduzido pelo seareiro Raúl Proença, é um excelente exemplo daquela Literatura de viagens em que nos sentimentos passageiros, ademais pelos confins viciantes do Oriente.
Tudo começa, sob um céu cheio de estrelas, no mar, a 24 de Setembro de 1900, o navio a ter feito cinco mil léguas, «quase sem respirar, dando constantemente, por minuto, quarenta e oito voltas da sua hélice». Invisíveis as montanhas da Mongólia aguardam-no como limite.
Prepare-se quem ler. Irá cruzar-se com cenas que lhe marcarão a alma, uma narrativa circular, a terminar quando aqueles por causa de cuja ferocidade contra os estrangeiros cristãos foi levada a cabo aquela expedição militar, agora, submissos, numa aparente docilidade, os servem, sobretudo aos franceses. 
«Sob a nuvem de carvão de pedra, começam a delinear-se coisas extra-longínquas, só perceptíveis a olhos de marinheiros», diz Loti a anunciar o horizonte. Na amurada, quem lê, afina a vista, preparando-se para saber surpreender sem que a surpresa o atinja primeiro.
O cenário é o de uma guerra de ocupação já sem tiros. A barbárie tinha passado já, carnívora, estorpiando, violando, profanando. 
A 3 de Outubro fundeia-se na praia de Ning-Hai: «cossacos, austríacos, alemães, midships ingleses ao lado dos nossos marujos amados; soldadinhos do Japão, espantosos de correcção no seu porte militar, com os seus novos fardamentos à europeia; damas louras, da Cruz Vermelha da Rússia, azafamadas, a desenfardar material de ambulâncias». A mesma Alemanha que em 1870 estivera em conflito aberto com a França une-se-lhe. A política é sem porquê.
Cumprida a missão, Loti regressará em Maio do ano seguinte. Na dedicatória ao Almirante lembra quanto viu mas não esquece os seus homens que, acantonados nos navios, viveram entre a fornalha e a clausura. Convivera com a eternidade, com a magnificência, com a mais rasca imundície. É esta a grandeza da vida para quem a vive na totalidade.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Um desencantado da República


Chegou hoje pelo correio, um livro em formato fascículo, escrito por Machado Santos.
Herói da República, aguentou-se com um grupo de bravos na Rotunda, contribuindo para a inversão das forças que levariam à queda da Monarquia. Filiado na Carbonária, morreria assassinado em 1921. Leia-se sobre ele mais aqui. A sua vida é bem a imagem do gérmen que levaria cinco anos após a sua morte ao Estado Novo.
Desencantado, este seu escrito de 1916 é bem o retrato da desilusão. Editado pela Papelaria e Tipografia Liberty, de Lamas e Franlkin, com loja na Rua do Sacramento, 88-90, nele se relata: «Fizemos o possível para que a República não viesse a transformar-se n'uma roça que fosse propriedade dos seus três grandes caudilhos que a têm administrado em comandita. Infelizmente a morte de Miguel Bombarda e a de Cândido dos Reis, que se lhe seguiu, tudo nos transtornou. A morte e a traição; pois que rendo de se preencher, apenas, as vagas desses homens ilustres, houve quem aquiescesse, sem o nosso consentimento, a alteração profunda que se fez na constituição do primeiro governo da República, que deveria ter sido esta:
 
Presidência e Interior: Bazílio Teles
Justiça: José de Castro
Fazenda: Inocêncio Camacho
Guerra: Ramos da Costa
Marinha e Colónias: Carlos Cândido dos Reis
Negócios Estrangeiros: Miguel Bombarda
Obras Públicas: António José de Almeida».

Como se sabe o primeiro governo provisório da República ficaria assim formado:

Presidência: Teófilo Braga
Interior: António José de Almeida
Justiça e Cultos: Afonso Costa
Finanças: Basílio Teles, uns dias depois substituído por José Relvas
Estrangeiros: Bernardino Machado
Fomento: António Luís Gomes
Guerra: António Xavier Correia Barreto
Marinha: Amaro de Azevedo Gomes


«Com um governo assim constituído n'uma situação tão anormal fatalmente havia de passar para a rua a anarquia que lavrava nos espíritos», conclui o autor.

sábado, 11 de agosto de 2012

Memórias do Cárcere

Encontrei-o! Na Livraria Esperança no Funchal. Depois de ter tentado em vão em outros lugares. Depois de o meu amigo Abel ter procurado encontrá-lo para me obsequiar com ele: o livro As Memórias do Cárcere de Graciliano Ramos, livro inconcluso, originariamente editado por José Olympo, em 1953. Ficaram-me os olhos no exemplares da edição da Caminho, encadernados, em bom papel, letra mais legível, mas a diferença do custo para os que a Europa América editou era significativa.
Doeu-me ter hesitado por causa do preço e ter-me conformado com o mais barato, como quem dá consigo a uma esquina, mão estendida, a pedir livros. Mas há um momento em que tem de ser o bom senso a imperar, ou o conformismo revoltante.
Regressado, deixei-os em Lisboa, aos dois volumes, mais dois outros do mesmo magnífico autor. Esgotara já o que estava também na estante, o Vidas Secas, alcançados estes trepado num escadote. Na viagem li apenas o prefácio, de uma coragem e sensibilidade invulgares. De uma honradez que é exemplo.