domingo, 23 de junho de 2013

Domingos Monteiro: porque há mais mundos


Domingos Monteiro. Nasceu em 1903, morreu em 1980. Advogado. Escritor. [ver mais aqui] Não procurou exílio na Literatura. Manteve-se na primeira linha do combate pelo Direito. Sacrificou-se a essa luta, arriscou no foro, defendendo aqueles que eram levados à justiça política.
Li este fim-de-semana os seus Livros Proibidos. Nele compendia dois estudos: A Crise do Idealismos na Arte e na Vida Social e Paisagem Social Portuguesa. Ambos proibidos pela Censura. Impedido de prestar provas de doutoramento na Faculdade de Direito de Lisboa, viu a circulação da sua tese apreendida também.
Quase uma década separam as duas reflexões. A primeira surgiu na forma de uma conferência em 1943, promovida pelo jornal O Século, a segunda como opúsculo sobre a geografia social do povo português.
Domingos Monteiro foi também ficcionista. Por isso estas suas narrativas, a primeira filosófica, a segunda sociológica, evidenciam essa qualidade literária que torna a leitura apetecível.
É interessante verificar hoje em que medida esses textos, datados embora, e oriundos de um pensamento que se move à esquerda do quadrante político, escapam à vulgata do que o marxismo pressuporia.
O autor alça, é certo, a bandeira da busca do «homem novo», mas dominado pela «inquietação sublime», a dos «sonhadores impenitentes», que lutam pelo idealismo como ideal, pela Arte, e nela a Poesia, «quem encontra as identidades ocultas que unem os homens à natureza, quem aproxima as almas e quem lhes revela o segredo misterioso da sua substância espiritual».
Estamos, pois, longe do materialismo, assim como se está longe de todas as ditaduras, incluindo a dos sovietes, a qual «tem a contrariar os seus desígnios um erro fundamental e uma confusão lamentável: parte do princípio de que a ideia democrática faliu, quando o que faliu foi apenas o liberalismo económico, filho espúrio e degenerado das democracias».
Trata-se de um apelo esperançoso à juventude, ante a qual se lança o repto de que «é preciso criar uma nova moral, uma nova economia, uma nova ideologia». Fruto do espírito e do sonho.
Diferente o segundo escrito, está escrito na prosa poética de quem compara metaforicamente toda uma população à corografia dos locais onde ela se encontra, como se falasse de uma paisagem, o povo sendo a sua planície, as burguesias os relevos do acidentado solo. A proletarização da classe média e o seu aburguesamento são fenómenos pendulares que surpreende nessa análise acutilante sobre a psicologia social do português, assim como a demasiada individualização da propriedade «iniciada no tempo de D. Sancho II e elevada ao máximo com o advento do liberalismo económico, reduzindo ou fazendo desaparecer quase totalmente a propriedade comunitária» e com isso o egoísmo e o desejo de posse da terra à custa dos maiores sacrifícios.
Estudo que não perdeu actualidade, nele se observa, entre inesperadas situações, como o pequeno funcionalismo sente o «dever profissional de defender essas princípios [os que modelam o Estado] muitas vezes contra o que sentem ser o seu interesse», e se constata como em quase todos os habitantes da cidade há, por causa dos deveres de representação social o «desprezar as necessidades primordiais da alimentação e habitação, em relação ao vestuário» e tudo, esses acidentes da topografia, a viverem do que, afinal, produz, a desprezada camada mais baixa, essa leva de camponeses e operários, que arcam com o peso do que ainda se produz e ainda há para gastar.
Encontrei-o entre os livros que ficaram da biblioteca de minha Mãe. Também ela me surpreendeu por tê-lo. Como ao lê-lo. Porque há mais mundos.

sábado, 22 de junho de 2013

Froilano de Melo sobre Tagore



A vida é feita de acasos significativos a que chamamos coincidências. Visitava-se o Chaminé da Mota. Surge-me a Maria José com um ensaio sobre a poesia de Rabindranath Tagore. Nem queria acreditar ao ver o nome do autor: Froilano de Melo. Abrevia o primeiro nome com um I. Talvez por se chamar Indalécio, nome invulgar. Sucede que ao ter escrito em 2001 o meu livro O Espião Alemão em Goa, reeditado em 2011, e ao nele descrever o incidente trágico que levou em 1943 ao incêndio e afundamento de quatro  navios estacionados no porto de Momugão escrevera:

«Os seis feridos são, entretanto, transportados para o Hospital Central no bairro de Campal, em Panjim.
Numa das lanchas dos serviços de saúde, Alfredo de Mello, então um jovem estudante de medicina, com quem me correspondi durante a feitura da primeira edição deste livro, acompanhando seu pai, o médico local Dr. Froilano de Mello [i] , tentaria estancar o sangue a um dos marinheiros do Ehrenfels, mas este esvair-se-ia por uma hemorragia da artéria femoral e morre à vista da Fortaleza dos Reis Magos. Era o marinheiro Paskarbeit.». 

E na nota de rodapé acrescentara: «[i] O Dr. Froilano de Mello, era à data, o chefe dos serviços de saúde. Nascido em 1877, faleceria em 1955. Cientista de elevada reputação e homem de letras, deve-se ao seu esforço o levantamento das causas de malária em Goa. Especializado no combate à tuberculose e à lepra, os seus trabalhos práticos no sector granjearam-lhe justa auréola doutoral.»


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Eis, agora, ali, diante de mim, o livro. Froilano de Melo escrevera-o na Páscoa em 1944. Dedicara-o aos filho. Um deles, Alfredo de Melo, encontrei-o, como disse, no Urugai quando investigava a história que daria azo àquele meu livro. Hoje, sábado, 22 de Junho de 2013, o círculo fechava-se, sob o signo da Poesia.


quinta-feira, 13 de junho de 2013

Vergílio Ferreira: Eros e Thanatos


Prometi que viria aqui falar de Aparição o livro que li há pouco julgando que já o tinha lido na adolescência e que muitos jovens são forçados a ler para, pouco compreendendo, o detestarem, em nome da fantasia pedagógica de que eles são, enquanto massa escolar, pela sensibilidade, aquilo que se pressupõe para um tal livro.

Ante ele ressalta de imediato a natureza auto-biográfica da narrativa, a de um Vergílio Ferreira professor em Évora, tal como Alberto Soares, a personagem principal e narrador da obra, escrevendo-a, goticular, em noite de trevas e luar, granítica, como memória de si e do que foi a sua deambulação, recordação da casa paterna, agora envolta na dimensão trágica do luto.
Com o professorado a narrativa traz-nos a missão inconclusa e repetida, a reclusão interior, forma de exílio em terra estrangeira, à mercê de sentimentos e ressentimentos, da minudência do meio, a impossibilidade de afirmar a própria grandeza e, no fim, a sísifica impossibilidade e o retorno.
Toda a história é uma narrativa humilhada de diminuição, numa cidade onde «qualquer iniciativa cultural é logo abafada de desprezo e banha», mas nenhuma surge.
É a perseguição da aspereza do lugar, «o corpo sovado de insónia», «os olhos ardidos de espertina», a «alucinação de luz», «onde carroças estremecem com um estrépito de ferragens», «Évora mortuária, encruzilhada de raças, ossuários dos séculos e dos sonhos dos homens». 
É essa inviabilidade de compatibilizar o ser e o estar que acaba por lhe contaminar a existência, confinando-o ao sedentarismo do seu canto de escritor, alheando-se progressivamente de tudo o que conhece, de modo cada vez mais profundamente e por isso menos extensamente.Começara com Mudança essa incompreendida e solitária caminhada.
E, no entanto, há vida, erotismo como ofensa à contenção, acicate e castigo, Madame «abundante senhora, loura por antiguidade (...), ousada e astuciosa por direito de mamã», a dominar a cena com a mestria da arte do rebaixamento, sadismo feito "salon" e "boudoir" e Sofia, secreta, «vestido branco, colado como borracha, e um corpo intenso e maleável», o «boleado das curvas», «a cinta fechada disparava-lhe os seios, uma luz inquieta iluminava-lhe os olhos», Sofia que o trafica, negando-se-lhe, depois de o levar e ele obcecado, esfaimado «no limite dos seus seios fortes, das suas ancas volumosas e solenes como uma noite germinadora» ao ponto explosivo do desejo, «presença inquietante, oblíqua de avisos», tudo territórios de negação a uma sensualidade que emana da Terra e por ela para os corpos que a habitam, para se lhe oferecer num acto de sublime desespero e paixão como um único beijo fossem todos os beijos da totalidade do corpo.
A isto mal escapa Ana, nela onde «havia a violência de um prosélito recente ou em crise», a «fúria silogística», o «desejo encarniçado de demonstrares», e em tudo isto se abre a magnífica clareira para Cristina e o seu nocturno de Chopin, imagem ímpar de evidência, afinal a única breve inocência a dar corpo à angustiosa questão da morte, essa «inverosimilhança» ante o nada mais haver na vida «do que beber até ao fim o vinho da iluminação e renascer outra vez», essa «fulguração sem princípio» e por isso ceifada à existência em inesperado instante. 
Joga-se em toda a narrativa o problema central do Homem aquém, imensamente aquém do destino da Humanidade. E, no entanto, sempre a miséria dos humilhados, surge, em emergência dolorosa, cenário de um martirizado Alentejo, em Quaresma social permanente. Quem tem coração que dói não esquece a dor alheia, mesmo quando não arregimentado com soldados da salvação organizada pela Arte comprometida.
«Que sabe a fisiologia sobre os sonhos de um homem?», pergunta o narrador ante o Doutor Moura, na viagem fatídica que os conduz ao encontro com o Bailote, semeador bíblico de mão suplicante, inutilizada já para a única função que o agarrava à vida, enforcado pelo desprezo sem memória que dure no remorso dos outros, morte tão morte qual a do pai do próprio narrador, morte esta que persegue todas as memórias como lembrança e com ela a da velha casa, familiar, originária, local de retorno às origens, a ferocidade contida das partilhas que aflora como um perfume de ganância minifundiária. 
Livro de um humanismo que não quer «apenas um bocado de pão, quer uma consciência e uma planitude», Aparição é o Homem e a Terra toda, incluindo o Céu e o Inferno que dela brota como esperança e medo.
Tanto poderia escrever sobre esta portentoso livro. Tanto.
Escrevo sobre o que se me vincou, desordenada, lacunarmente, por isso, inevitavelmente, sobre o que há nele de perdão. Perdão para o adolescente Carolino, «a viver uma inquietante separação de si, não sei se para um encontro lúcido consigo, se para uma união de loucura», a triunfar, porém, pela vitória adulta não do que em si era perplexidade atulambada mas potência e sexo e por isso com Ana, viril mesmo quando patético que seja, perdão para Tomás, mulher e sua ranchada de filhos, lavrador e com ele a virgindade sempre desflorada da Terra pela frutificação de si, nobreza de acto que suplanta os dourados da cultura, os engalanados dos livros, anseio de paz, de família, do afago de companhia, perdão para o que é simples mesmo rude, para o "Manuel Pateta", animal de carga alimentado a bebedeira, para todos, para tudo quanto é bronco e brejeiro mas afinal sincero e verdadeiro, lugares «onde a boa disposição tinha a sólida base de um estômago cumpridor».