Li ontem Le Chat de Georges Simenon. Numa edição portuguesa, que era a que havia aqui em casa, oferecida, de 1967, traduzida por António Barahona da Fonseca, com capa de António Cândido.
É uma história dolorosa de um casal que fez do silêncio a melhor expressão para o seu mútuo ressentimento, para o ódio rancoroso, para a indiferença, filhos da impossibilidade. «Ambos se sentiam vítimas e se consideravam mutuamente como monstros». Andando pelos sessenta anos «ainda não sabiam a que velocidade iam envelhecer». Só que foi tudo muito rápido, mataram-se fazendo da vida tristeza. Compartilhavam, forçados, o mesmo espaço, o mesmo quarto, a mesma cozinha, lugares onde separavam os corpos, fugiam do encontro dos olhares, evitavam a proximidade das almas, de tal modo «se ignoravam com tanta perfeição». Comunicavam por bilhetinhos.
Um dia ela, por malvadez, ter-lhe-á envenenado o gato, ele, vingativo, matou-lhe o papagaio. «Um vulgar gato de telhado - afirmava ela no tempo em que ainda se falavam para iniciar uma discussão».
Vida esvaziada, ambos tinham tido anteriores casamentos, o dele feliz, com Angèle, feito de risos de uma «alegria ruidosa», de beijos e passeios, mas Marguerite agora «insensibilizara-se logo ao primeiro contacto físico e as duas camas eram o símbolo da sua união fracassada».
Um dia ele saiu de casa. Havia Nelly, de peito roliço, que se dava, rápida, aos homens que queria, na cozinha da pequena tasca, de nádegas alçadas, virada para não lhes ver a cara. Uma vez ele também ali foi, usá-la, e daí em diante tantas vezes, quantas quis, ela a notar que «não és dos que ficam tristes depois de fazer amor».
Deixei por ler quatro folhas de Le Chat. Acabei-as agora mesmo. A narrativa termina com o perceptível: Émile Bouin regressa a casa, incapaz de suportar a dor da mulher deixada.
É impossível não recordar a vida familiar do próprio Simenon, desgraçada, dorida, a usar da vida «o estritamente necessário». «J' ai été marié deux fois. Je vis avec une troisième femme. Mas il ne me viendrait pas à l'esprit de les mélanger dans mes souvenirs». Assim quase termina a Letre a ma mère que ele escreveria, com setenta anos. Émile, porém, «acabava por se zangar, por metê-las todas no mesmo saco, por considerá-las inimigas», Angèle, Marguerite, Nelly. Esta «conhecia os homens, Se se entendia com eles era porque não lhes pedia mais do que podiam dar». Mesmo assim. Uma tristeza. A história de como se assassina o amor. Livros de excepção.