segunda-feira, 26 de dezembro de 2005
A lenda dos malvados
Por andar a escrever um livro sobre a pintora Sonia Delaunay acabei hoje, dia seguinte ao de Natal, a leitura minuciosa do livro que o Mário Cláudio escreveu sobre Amadeo de Souza-Cardozo. Mário Cláudio é um dos que felizmente encontrou depois do Direito uma forma de se salvar, pela literatura. O livro é superlativo, como momentos extravagantes de observação, como quando surpreende que na vida do seu biografado «as mulheres desfilam no horizonte de sua mira, como outras tantas hipóteses de conhecimento de si mesmo». No caso são, em Paris, incessantes «expedições cinegéticas do amor», em que entrecruzam mulheres «exaustivamente nuas», «a entrega a ninfas e harpias que caracteriza a lenda dos malvados». Tudo acaba, porém, no caso de Amadeo ainda sem completar trinta e um anos, no dia vinte e sete de Outubro de mil novecentos e dezoito. Nesse dia «a vida que findara começa, como todas as que se extinguem, no reviver do palpitar definitivo das suas cores». Mata a pneumónica um extraordinário pintor: «pessoas de tal nervo, só porque não podem dar-se ao luxo da ausência de si próprias, se não ausentam dos outros».