domingo, 17 de novembro de 2019
A alma de uma grande escritora
Segurei-o com o cuidado devido para que a lombada não partisse e as folhas amarelecidas não se desconjuntassem, afinal com a delicadeza que me irmanava com a delicada escrita.
Publicado em 1945 são «novelas» como lhe chamou o editora, a extinta Parceria A. M. Pereira, saída de uma vivência que lembra a de Irene Lisboa e que - seguramente por causa do título - me trouxe a memória sensitiva de José Régio.
O título, interessante - e tenho o hábito de procurar razão para os títulos dos livros no interior dos próprios livros - é o nome do conto inicial, curiosamente alma é nome da personagem de outro dos contos, ambiguamente chamado Perdi Alma, a autora expondo-se ali como uma das figuras da história, a professora primária.
Lido agora, temos de nos situar no tempo em que tudo foi escrito para encontrar o que ainda hoje nos apela como contemporâneo e é muitíssimo, ainda que aquele mundo não seja o ambiente citadino onde os leitores abundam ou pelo menos os que viram páginas aos livros.
Leitores cruéis logo concitariam contra a autora tudo quanto a tornou actualmente ignorada, desde o ter sido responsável pela página literária do Diário de Notícias até ao facto que se indicia pela dedicatória, feita a Fernanda de Castro.
E, no entanto, essa rejeição pelas ideias impede a adesão ao que é Arte pela Literatura.
Se frases soltas dão exemplo da valia literária de uma obra - e só por si não dão, pois há o enredo, a arquitectura da história e o modo de a contar - sublinhei as suficientes para só por isso fosse possível convencer à leitura.
Logo no texto inicial, a velha casa onde «a umidade [sic] da grande casa sombria e os longos anos sem auroras enchiam-na dum doloroso tédio», aquela casa «tão velha que já não tinha história», povoada «pelo silêncio entornado na casa sem risos infantis». Vida de ausência a que ali se relata a daquela mulher que «dentro da resignação que aparentava, caminhava, submissa, para uma loucura pungente», surge num relato de tal modo sentido que quase apetece intrometer-nos na história e pedir ao destino que lhe altere o fim: só que não tem fim, deixando em aberto o que teria sucedido àquela vida diminuída.
É esta capacidade de transmitir que a autora coloca na boca de uma das suas figuras numa expressão notável: «eu, por palavras, é que não sei dizer...só escrevendo...» e assim se por dizer ante este livro em que a simples descrição da Natureza surge de forma carregada de sensações, como quando, no conto A Preta, «acima da sua cabeça o céu toca a parreira e fala-lhe uma linguagem de Sol e calor, de promessas e de festa», porque «Na Primavera, o céu é tão azul, tão azul, que até parece que nos quer falar», ou ainda como, no conto Eu venho sempre, surge à caminhante «um ponto branco, indiferente, e a estrada que já perdeu as sombras ainda lhe não disse: - Pára, é esta a tua casa; bate, é esta a tua porta».
Poderia prosseguir, indo a Ferros-Velhos buscar tanto que por ali se espraia, exuberante, de riqueza de observação, conto de cinco homens e cinco carroças, a viverem «do mesmo negócio triste de comprar coisas velhas pelos povoados das proximidades», figuras de um recorte gritante de dura figuração, «cobertos de andrajos, cheios de fome, e não compreendem que pertencem àquela humanidade que ama, cria e se continua», «expostos às chuvas e às invernias, os ferros-velhos são figuras misteriosas - eles que não têm outro mistério que o seu fado», dormindo em palheiras, «o Tio Mela geme na noite e embala numa cadência dorida o sono dos que não têm conforto»; mas deixo ao leitor a possibilidade remota de encontrar a obra em algum alfarrabista e encontrar-se com o aqui fica em breve apontamento.
Natércia Ribeiro de Oliveira Freire, nasceu em Benavente em 1919 e morreu em Lisboa em 2004. Teve no seu tempo fama, tem no presente olvido. É nome de rua, para os lados de Benfica, mas mal tem quem a leia. Se tê-lo feito lhe devolveu à alma vida, fico feliz por isso.
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