quarta-feira, 26 de dezembro de 2007
Um critério em azul
Reconciliei-me, até mais ver, com o António Lobo Antunes, e decidi-me então a conhecer-lhe a escrita. Esqueço o homem e o modo como se descreve, em constante adjectivação de si. Comecei, atrasado vinte e oito anos, com «A Memória de Elefante». Passo adiante dos escancardos palavrões, que enxameiam o texto para além do necessário, mesmo quando proferidos por bocas reais, nas quais são linguagem comum, menos suja a língua do que a alma. Evito subrogar-me, envergonhado, à família quando na sua narrativa descreve factos, dos mais íntimos aos mais torpes, em que os envolve, incluindo os dolorosos e os ternos, como se em cada página matasse de desgosto a própria mãe, expusesse da mulher a própria nudez.
António Lobo Antunes atira-se, de borco, para a sua escrita, mesmo quando sórdida, enlameando-se nela, onde raramente encontramos um momento em que o vejamos sentir a grandeza do momento grande que sabe criar.
É, tenho de o reconhecer, um modo magnífico de escrever o que sente, de descrever sentidamente o que vê. Vou em frente no livro, lerei todos os livros, mesmo quando, já me preveniram, ele muda de estilo e se torna ilegível, dizem-me.
A acção aqui decorre num hospital, a personagem um psiquiatra, filho de médico, traumatizado pela sua condição burguesa, agredido nas suas memórias pela vivido na guerra colonial, esfarelado por uma sensibilidade que quase lhe desintegra o entendimento. É «o que outros chamamos de loucura, que é afinal a nossa e da qual nos protegemos ao etiquetá-la».
Leio e pergunto-me se muitos dos que se dizem seus leitores, por gostarem dele, o serão de facto mais do que eu, que o detesto e aprendi a amar-lhe a escrita. Talvez sejam os olhos azuis que marquem a diferença. Não sei. Deixem-me ler.
terça-feira, 25 de dezembro de 2007
O gozo imortal
O Charlie Chaplin que conhecemos é aquela figura coincidente com o garoto que teve roubar comida para sobreviver, fruto de uma infância desvalida, o vagabundo Charlot.
Mas há um outro, o homem da reiterada infelicidade conjugal, semeando um caudal de relações falhadas, divórcios sucessivos e amores irrealizados.
Morreu no dia de Natal. Três meses depois, ladrões roubaram o corpo, para tentarem extorquir dinheiro à família à conta do resgate.
Terminou assim em caricatura milionária , uma vida em que a miséria foi elevada à categoria de ridículo, para gozo imortal de todos nós.
segunda-feira, 24 de dezembro de 2007
O piar do passarinho
De todas as coisas compráveis, das mil lembranças transportáveis, de tudo o que é possível dar-se, há quem tenha comprado dois passarinhos para dar companhia a quem a não tem. De todos os pássaros compráveis, transportáveis e oferecíveis, houve quem tivesse tido o cuidado de comprar dois, para que um fizesse companhia ao outro, na solidão extrema que é ter de acompanhar quem não nos acompanha. No mais, daqui a pouco, começando a escurecer, é Natal, disse-mo um passarinho, perdão, dois.
sábado, 22 de dezembro de 2007
A Lua Azul
Quantos sabem que a lua cheia é a totalidade da lua reflectida sobre a terra? Sabem todos os que, vendo a lua, nela pensarem, sentindo-a na alucinação das nocturnas ideias, na revolta das madrugadas sensíveis.
Mas quantos sabem que a lua azul é a segunda lua cheia no mesmo mês? Aconteceu pela última vez no dia 31 de Maio deste ano.
A lua azul é a lua inesperada, a lua do improvável suceder.
Mas quantos sabem que a lua azul é a segunda lua cheia no mesmo mês? Aconteceu pela última vez no dia 31 de Maio deste ano.
A lua azul é a lua inesperada, a lua do improvável suceder.
quarta-feira, 19 de dezembro de 2007
O homem de vastos amanheceres
Jorge Luis Borges, descrevendo, num dos seus extraordinários contos o brasileiro chefe de bando Azevedo Bandeira, mostra-o como «um mestre na arte da intimidação progressiva, na satânica manobra de humilhar o interlocutor gradualmente, combinando verdades e mentiras», e explica como é que ele mandou matar Benjamín Otálora, que mais virtude não tinha, nos «vastos amanheceres» de que fazia vida, se não «a enfatuação da coragem» e que ousara desafiar a sua autoridade sobre as coisas e o seu mando sobre os homens.
Com a profundidade de vista de quem é cego, o notável argentino remata a breve narrativa, contando como é que a Otálora foi permitido, antes de o matarem, dentro da sua própria lei, a da bala, viver o mando e o triunfo, mandando, livre, nos jagunços de Bandeira e fruindo-lhe, adúltero, as exigêncidas da sua própria amante: é que, desde o dia em que, ciumento por tudo o que era o ter e mandar, o condenou a morrer, Bandeira já o sabia morto.
Voltei a ler, enfim! Retomei Borges, o livro chama-se «El Aleph», Borges na língua pátria, o modo de pensar como se num esperanto afectivo, a linguagem compreensiva de toda a humanidade.
domingo, 16 de dezembro de 2007
A perdição dos livros
Leio que abriram aqui 3 300 metros quadrados de livraria; chega-me ao mesmo tempo, por mão amiga, a notícia de que abriu na Rua Augusto Gil 15-B, junto à Avenida de Roma, uma livraria chamada «Círculo das Letras». Quem me avisa diz que será ali «o nosso ponto de encontro». Só pode, seguramente. Na outra, uma pessoa perde-se.
quinta-feira, 13 de dezembro de 2007
O gato das botas
Houve tempos em que escrevia à mão, em que cheguei a Freiburgo na Alemanha, de comboio, carregando ao ombro uma caixa de fichas bibliográficas, a que colara a etiqueta «frágil», que trouxera do aeroporto.
Houve tempos em que uma amiga minha, investigadora desse instituto, ao ver-me sair da gare ferroviária naquele propósito, me perguntou, em francês, que era então a nossa língua franca, por causa do meu rudimentar alemão: «fragile, qui, vous?».
Hoje foi-se a caixa, que comprara no J. B. Fernandes, ali perto da Praça do Município, que também já fechou. Foi-se a minha amiga alemã. Foram-se as fichas bibliográficas. Foi-se mesmo o chegar a Freiburgo, a pé que seja.
Hoje é tudo na base do computador.
É por causa disso que de quando em vez perco tudo, mais do que perdia: a paciência por exemplo, sobretudo quando me dizem que o problema talvez seja da «motherboard» e de eu não ter feito «backup dos psts's no server».
Houve tempos em que eu escrevia à mão e tinha tempo e paciência para passar tudo a limpo, à máquina. Hoje é tudo mais «fragile», «trés fragile», como descobri ontem que, como se tocasse piano, reaprendi a falar francês. Só falta miar, porque de dores lombares, dizem que por causa da posição defeituosa ao computador, elas são de ganir!
Houve tempos em que uma amiga minha, investigadora desse instituto, ao ver-me sair da gare ferroviária naquele propósito, me perguntou, em francês, que era então a nossa língua franca, por causa do meu rudimentar alemão: «fragile, qui, vous?».
Hoje foi-se a caixa, que comprara no J. B. Fernandes, ali perto da Praça do Município, que também já fechou. Foi-se a minha amiga alemã. Foram-se as fichas bibliográficas. Foi-se mesmo o chegar a Freiburgo, a pé que seja.
Hoje é tudo na base do computador.
É por causa disso que de quando em vez perco tudo, mais do que perdia: a paciência por exemplo, sobretudo quando me dizem que o problema talvez seja da «motherboard» e de eu não ter feito «backup dos psts's no server».
Houve tempos em que eu escrevia à mão e tinha tempo e paciência para passar tudo a limpo, à máquina. Hoje é tudo mais «fragile», «trés fragile», como descobri ontem que, como se tocasse piano, reaprendi a falar francês. Só falta miar, porque de dores lombares, dizem que por causa da posição defeituosa ao computador, elas são de ganir!
quarta-feira, 12 de dezembro de 2007
O primeiro violinista
Foi só porque a televisão, entre tantos defeitos, permite captar soberbos momentos que isto foi possível. Foi esta noite no canal «Mezzo», Cecilia Bartoli, com uma ária da ópera de Mozart, Don Giovanni. Segura, sem excessos de afirmação vocal, progredia em sonoridades densas, os imensos olhos negros como se cravados no infinito da glória. Foi então que, o surpreendi, aplicado no seu frágil e desconcertante instrumento musical, esse prodígio da criação melódica, o primeiro violinista, desconcentrar-se por um momento, seduzido por aquele voz. Socorreu-o, nesse silêncio comprometedor, todo o naipe de cordas em seu redor. Naquele segundo, os olhos marejados de lágrimas, ele era, apagando-se como artista para assim contemplar, extasiado, a própria Arte, a imagem real do que é o amor.
terça-feira, 11 de dezembro de 2007
Erros na conjugação
Primeiro, a desdentação, grito de alerta nos carnívoros, fealdade facial no lugar da sua mais gritante evidência, a morte do sorriso natural, o mirrar-se uma pessoa engolfada nas entranhas ressequidas de si. Depois, o ranger da ossada, as dores persecutórias a todas as horas do dia e pesadelo companheiro da noite. Imobilizado o corpo, perdida a vontade de rir, resta o voo errático da alma, pelo devaneio de um resto de janela tristonha.
Primeiro, é não notar sequer quem são, depois é segui-las, figurinhas vibráteis de uma juventude que se soergue, soberba da glória carnal, leve na despreocupada forma de viver, adejante, a própria existência.
Um dia acorda-se a pensar de quantos adjectivos é feita a nossa indiferença, empedernidos os verbos, o futuro condicional pior ainda do que o pretérito imperfeito.
domingo, 9 de dezembro de 2007
Camões e Macau
Eu tenho um amigo que possui, na sua maneira discreta de ser, uma capacidade profunda de surpreender. Quase como quem anda pé-ante-pé por um casa adormecida que não quer acordar, passou por todos nós, a cumprimentar-nos pelos êxitos efémeros, escondidos debaixo do braço, os rolos de um desconhecido texto seu, de que nem murmúrio nos chegava, preocupado connosco.
Ei-lo, enfim. «Camões esteve ou não em Macau?», pergunta Eduardo Ribeiro, um irmão a cuja seriedade eu devo não ter ficado enforcado na corda da infâmia naquele Oriente fatal onde ele se radicou. Como foi possível que tu nem a nós desses conta de que albergavas dentro de ti aquele valor que o teu trabalho demonstra?
Ei-lo, enfim. «Camões esteve ou não em Macau?», pergunta Eduardo Ribeiro, um irmão a cuja seriedade eu devo não ter ficado enforcado na corda da infâmia naquele Oriente fatal onde ele se radicou. Como foi possível que tu nem a nós desses conta de que albergavas dentro de ti aquele valor que o teu trabalho demonstra?
A boca e os braços
Generalizou-se o beijo como cumprimento entre homem e mulher e no vice-versa cumprimentador de ambos.
Passou a haver o ritual do um só beijo, a distinguir os que, refinados, não dão os dois beijos plebeus, os que deixam por vezes o segundo beijo no ar das intenções, a cara do outro já recolhida, por imaginar terminada a saudação.
E há os três beijos, tricolores, afrancesados, quase como se distribuindo, na face, força, beleza, vigor; liberdade, igualdade e fraternidade.
Banalizou-se o beijo. O beijo na cara entre desconhecidos que se acabam de conhecer, o beijinho a marcar, em diminuitivo galaico-português, uma expressão de diferença meiga, a beijoca adolescente e ruidosa, o xoxo onomatopaicamente sugante.
Foi-se o beijo na testa, que já nem as crianças recebem. Distingue-se, pois que raro, o beija-mão, venerador e amarquesado. Pareceria hoje equívoco o beijo na boca, à russa, condecoração militar entre homens.
Arrepiraria o beijo no pescoço, vampiresco, o beijar a orelha, ósculo de segundas intenções. E fiquemo-nos por aqui na geografia corporal do beijo.
Multiplicou-se, enfim, o beijo. Foi-se o estender da mão, acto igualitário e republicano, ajudado por enérgicas sacudidelas públicas e burguesas, como se a aspergir alegrias demonstráveis, enterrou-se no baú das velharis a genuflexão ante a senhoria, o abanicar da mão a floreá-la, os dedos fibrilhantes, num volteio de borboleta.
Não há hoje carta, bilhete de recado, email ou conversa que não termine assim, beijocando.
E depois há, neste mundo de abreviaturas sentimentais, o «bjs» e o «bj» querendo dizer o beijo.
A tal ponto se beija, que uma mulher se embaraçaria se um homem, no fru-fru social mais banal, lhe desse, não um beijo ou mesmo dois, mas um simples abraço: no momento em que os corpos se enlaçassem haveria mais humanidade sim no exteriorizar desse saudarem-se ambos, as almas tocando-se, mas mais atrevimento, a físico-química do sentir contido a iniciar a sua função vital, ruborizando-os.
sábado, 8 de dezembro de 2007
Charamba
É uma canção popular açoriana e chama-se Charamba. Ouvi-a na voz do Adriano Correia de Oliveira, com estes versos que não lhe conhecia: «a saudade é um luto, é um luto, uma afeição, é um cortinado roxo que me corta o coração».
Não sei que outro amor ao que se perdeu, paixão em agonia ao que se não tem, rasgão na pele dos sentimentos idos, melhor exprimirá este modo dorido de o dizer.
Não sei que outro amor ao que se perdeu, paixão em agonia ao que se não tem, rasgão na pele dos sentimentos idos, melhor exprimirá este modo dorido de o dizer.
Subscrever:
Mensagens (Atom)