domingo, 28 de outubro de 2012
Um jogo de cartas
Dirão que é o fetiche do voyeurismo, ou o desejo de surpreender nos grandes a minha própria vulgaridade, consolando-me e menosprezando-me um pouco menos, tudo sentimentos dos insuficientes. Mas gosto de ler cartas de vultos da cultura de que conhecemos apenas a sombra das biografias ou a luz da sua obra.
Desta feita consegui ler, em dois fôlegos, aquelas que, a partir de Paris, António José Saraiva, trocou com Luísa da Costa entre 1961 e 1965.
Cartas de um apaixonado pela cultura, a viver a revolta controlada do desprezo a que havia sido votado desde que deixara, exigente, as fileiras de onde surgira o neo-realismo, escrevendo a "António Vale" uma carta que nunca teve resposta.
Cartas de um expatriado, dividido o quotidiano entre o estudo da obra dos Jesuítas e a melhor técnica de lavar pratos com água quente e detergente líquido Lux.
Cartas incertas, mas sempre gratas, atenciosas no estilo e cuidadosas na forma, a pedir desculpa se a caneta com que eram escritas não desse boa caligrafia mas estava à experiência.
Cartas em que se entende quanto este homem pagou pelas polémicas em que se envolveu, a propósito do que escreveu sobre a Inquisição e temas que sabia malditos e quanta falta lhe fez o carinho o núcleo de uma família de que se exilou.
Através delas sente-se ser possível o mundo que nos surge hoje compendiado em livros, assiste-se ao nascer da ideia, ao retorcer-se de uma alma por ela, aos anseios do corpo pela vida.
Quanto a História da Literatura que escreveu a meias com Óscar Lopes, me pareceu, enfim, uma obra de intrínseca humanidade.
É um livro pequeno, magnífico, editado pela Gradiva. Li-o, antes de partir para estes dias de recolhimento, reconstruindo-me naquilo que é o fruto da incapacidade e da incerteza.
Levei dele comigo o espírito que é o que fica quando nos esquecemos do que lemos.
De resto, que é a vida, no seu errante jogo, mais do que ter sido vivida e não o modo como se viveu?
terça-feira, 16 de outubro de 2012
Je te casse la figure, Paul!
As minhas graves lacunas culturais em matéria de Literatura são no que se refere a autores estrangeiros. Isso deve-se a várias circunstâncias, que eu consiga objectivar.
Primeiro, a preconceitos, que eu sei que é realidade horrível em quem se julga um espírito livre. Mas tenho-os, um deles é haver uma rejeição quase instintiva a ler o que toda a gente, de repente, começou a dizer que leu. Foi por isso que nunca li o Paul Auster.
Depois o preconceito de que os melhores escritores americanos são aqueles que são europeus de mentalidade. E foi por esse motivo que nunca li o Paul Auster.
Enfim, por ter o hábito de, quando gosto de um autor querer comprar e ler a obra completa e não apenas os livros que se assume definirem o melhor da sua escrita, tal é o desejo de querer conhecer também o pior e por isso o escritor em si, e há quem tenha escrito uma estante já difícil de ler no tempo que me resta de vida. Eis porque nunca li o Paul Auster.
Um destes dias encontrei o Diário de Inverno, precisamente do Paul Auster.
Acho que o vira citado num jornal literário. E comecei a ler, em deslumbramento, as «memórias» do Paul Auster.
O deslumbramento nascia da simplicidade da linguagem, porque o Paul Auster é tipicamente americano e das referências ao quotidiano reconhecível na vida de toda a gente e por isso imensa gente se revê ali. Além disso falava dos livros que foi escrevendo quase sem os nomear e dava-me a ilusão de que eu assim iludia o facto de nada ter lido do que era a sua extensa obra.
Estava a resolver-me com ele e contente com isso, como se tivéssemos feito as pazes, reconciliando ressentimentos.
Estava a resolver-me com ele e contente com isso, como se tivéssemos feito as pazes, reconciliando ressentimentos.
Houve então o momento em que, leitura que se estava a tornar vertiginosa ele descrevia, página após página, as casas onde viveu e eu, que ao início achei a ideia um achado, comecei a saturar-me, perguntando-me se não se seria já escrita a metro para satisfazer o voyeurismo do leitor.
Depois vieram os pormenores da mãe alcoólica, da avó que matara o avô a tiro e o arrazoado da tia coscuvilheira e maledicente mais as mulheres com quem dormiu e eu já me perguntava se aquilo não era devassa de intimidades próprias e alheias e exposição das lepras familiares como os pedintes medievais à porta das igrejas.
Foi quando ele entrou na explicação do "esquentamento" que apanhou em jovem e do líquido verde que lhe saía , dolorosamente, pela ponta da "pila", o urinar um ardor, que eu disse «basta». A "pila" do Paulo Auster já vai muito para além dos meus interesses literários.
Felizmente estou quase no fim da breve obra e por isso posse decretar que já li este livro do Paulo Auster.
Perguntei entretanto já não sei a quem porque é ele tão lido e tão falado e disseram-me que, para além do mais, porque é um homem muito bonito e as mulheres adoram a figura e são as mulheres quem hoje mais lê. Terrível isso. Porque um dos meus atavismos absolutamente nascidos do facto de ter nascido no mato, é essa repulsa para que os puxam pelo corpinho para terem valor intelectual ou os cujo valor também resulta disso mesmo, de terem nascido prendados na aparência. E lá se foi o Paul Auster.
Convençam-me que é um grande escritor, que merece ser lido, porque eu agora, com sinceridade, estou em dúvida, e até já com pena do homem, porque pode não ter culpa de ser no que se tornou nem daquela masculinidade morena e de olhar profundo e doce, farto cabelo em banda larga que lhe dão o tom e a pose.
Estou a escrever estas linhas numa madrugada de insónias, os sonos trocados pelo cansaço, e fui dar uma olhadela ainda a umas folhas do livro, para ver se o salvava. Azar: calhei naquelas em que ele descreve as mil e uma coisas que fez com a mão direita. São páginas sobre isso. Desisto.
quarta-feira, 3 de outubro de 2012
O Concerto Interior
Disseram-me da livraria que já o tinham e, regressado do Tribunal, fui buscá-lo. Li-o neste fim de tarde, em ordem arbitrária, apesar de ser uma biografia «evocações de um poeta», detendo-me sobre o que foi a sua vida como advogado - e meu Bastonário na Ordem que é a da minha profissão - e, seguindo, em trilho errático, pelas memórias do tempo vivido, o convívio com a literatura, as raízes da sua família.
«O título devia ser "Breve Autobiografia". Só que dezenas de pessoas, de parentes, animais, bichos, árvores, trabalhadores rurais, que estão dentro dele, disseram já muito do que tinham a dizer». É assim, com este mote como se de São Francisco de Assis que o poeta António Osório abre esta narrativa na primeira pessoa, que acaba por ser singular porque resumida, como se um desfolhar da agenda de uma vida, recordando os prazos e as diligências que deram da vida o ser ao advogado António Osório de Castro.
Vim aqui escrever pelo que me comoveu a referência que faz a sua Mãe, ao publicar-lhe, da intimidade, uma das cartas que escreveu ao marido, desde que faleceu, e que regularmente lhe levava ao cemitério no Alto de São João.
Trata-se da primeira, redigida a 19 de Janeiro de 1968, no seu italiano natal, «um poema sem uma palavra a mais»:
«Caro Miguel
Non posso vivere lontano da te. Più il tempo passa e più sento la tua mancanza, anche nelle minime cose. La mia vita al tuo lato è sata una completa felicità, fra due periodi tormentosi. Quando giovanni, ho sofferto tanto per aspettarti: adesso sofro di pi`perchè sei che aspetti me. A riverdeci, Miguel carissimo La tua Giú».
Se um dia perguntarem o que é o amor, físico e para além dele, o amor integral, intangível e indizível, está aqui, no livro O Concerto Interior.
segunda-feira, 1 de outubro de 2012
Agustina: a obra incompleta
As Artes Entre as Letras dedicou largo espaço deste seu último número aos 90 anos de idade de Agutina Bessa-Luís. Autora de tanto livro esgotado, ela que aquilo para que nasceu foi para escrever.
A propósito disso mesmo Isabel Ponce de Leão escreve o que me permito citar pois que sintomático e exemplar: «Quando foi anunciada a publicação da Opera Omnia - edição ne varietur das obras completas de Agustina - pela Guimarães Editores, chancela da Babel, já o acesso a certos volumes era praticamente impossível e, faltando-me alguns, dirigi-me alegremente à editora, no Edifício da Biblioteca Nacional e, avisadamente, comprei e paguei antecipadamente a obra completa que ficou de me ser enviada à medida que os diversos volumes fossem publicados. Corria o ano de 2008 e fui informada que a obra completa seria publicada aproximadamente até 2010, De facto, desde 2010 que não recebo qualquer volume nem satisafção, mas o número de volumes recebidos quedou-se em dez...sendo como é, a obra de Agustina composta por cerca de uma centena de títulos».
O trecho citado dispensa comentários pela corajosa clareza. Fica a questão enunciada e a dúvida em aberto: que irá suceder ao resto da obra, cujos direitos foram adquiridos e corre o risco de não ver, nesta edição, a luz do dia?
No mesmo jornal perguntada sobre «em que que ponto se encontra a reedição da obra completa de Agustina Bessa-Luis?» responde sua filha a escritora Mónica Baldaque: «a retomar em breve.»
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