Suponho que difícil é escrever a biografia de alguém que tenha ainda vivos parentes mais directos, por haver o risco de ferir susceptibilidades, ao ir além em revelações embaraçosas e suponho também quanto não seja fácil escrever a biografia de alguém com uma personalidade de extremos e tudo é o caso de Fernando Assis Pacheco: é, pois, tarefa difícil para que não torne a biografia ficção, amputado o biografado da sua completude.
Não poderei concluir que esta o conseguiu, porquanto, para formular juízo, precisaria conhecer aquele cuja vida fica assim relatada, mas talvez me entenda comigo, entre o que julgo ser o que os outros dele pressupõem e aqui se esclarece agora ao ler, e aquilo em que eu estava, afinal, errado e tive, enfim, a oportunidade de descobrir.
Os que o consideraram Assis Pacheco jornalista, no Diário de Lisboa e em O Jornal, para não mencionar a República e tantos outro periódicos, acertaram, mas muitos, reduzindo-o assim, talvez tenham esquecido o escritor, da ficção à poesia, passando pelo ensaio, e sobretudo escritor que na prosa jornalística de distinguia pelo cuidado na fórmula, pela ironia no modo de dizer.
Os que lhe conheciam o estilo, irreverente até na maleabilidade que dava à língua portuguesa e ao modo de surpreender pela construção frásica, talvez ignorassem quanto se perdeu no domínio da ensaística académica, nomeadamente na Literatura alemã, em que não completou os estudos que iniciara sob a direcção de Paulo Quintela.
Mas são aqueles, os do estado de conhecimento de muitos desses vectores da pessoa que são, afinal, parte subsidiária de uma vida exterior, resíduo apenas da densa interioridade que define o ser, os que precisariam de um livro como este para nele acharem as contraditórias pulsões, as do amor e do sofrimento, da ternura e da cólera, da irrealização e da meticulosidade. Para saberem que ao terem-se rido ou irritado com a sua presença em A Visita da Cornélia, talvez não tenham pressentido quanto há de lastro dorido das vivências da guerra que lhe vincaram a sensibilidade.
O que a biografia de Nuno Costa Santos me trouxe e por isso a breve epígrafe levada à contracapa, frase de Miguel Esteves Cardoso, a considera maravilhosa por ser verdadeira, foi a revelação do que será para muitos um pormenor, não fosse uma daquelas surpresas que a vida nos revela, restituindo-nos à humildade do pouco que sabemos e mostrando quão precária é a aparência de que fazíamos certeza.
Tinha lido dele os Trabalhos e Paixões de Benito Prada, publicado em 1993, pela Asa. Fui dar, outro dia, na estante, para além da edição com encantadora encadernação, de que aquela editora fez imagem de marca, uma outra, de bolso, capa mole, afinal aquela que lera em primeira mão. E logo no arranque do livro a prosa me ficou para todo o sempre, com ela o espasmo violento daquela forma tão brutal de começar: «Quando o padeiro velho de Casdemundo teve a certeza de que o Manolo Cabra lhe desfeiteara a irmã, em dois segundos decidiu tudo [...]».
Foi com esses olhos que encomendei à Tantos Livros, essa carinhosa livraria que fica ali pela Marquês de Tomar, ao chegar-se à Duque de Ávila, e o li em três fôlegos nocturnos.
Supunha-o galego, de uma Galiza que tivesse sido local de nascimento, fosse em si a origem e o modo de ser. Foi, pois, a biografia sobre a qual escrevo que me devolveu afinal ao conhecimento de que o livro foi caminhada em retrogressão, em busca da ascendência avoenga, tal como uma outra obra não concluída sobre um avô paterno que viveu anos em São Tomé.
Restituída a criatura à sua realidade, não se esgotou ela em menos verdade, nem em menor riqueza.
Construído a partir da vida documentada e das memórias relatadas, o livro traz-nos esse «pasmado sem cura», sôfrego de vida, e que a viveu em grande parte nesse «mundo em Azert» para retomar uma frase de um falecido querido amigo, o Cáceres Monteiro, seu colega de jornalismo, meu colega de curso.
Não digo mais. Lido um livro, chegando o momento de o trazer aqui, fico sempre com a ideia de ter ficado por partilhar a riqueza do seu conteúdo, aquilo que dele retive, os momentos que me foram dados viver com a sua leitura. Se há nessa omissão propósito, ele é o de apelar os outros a que leiam.
Fernando Assis Pacheco morreu em frente à Livraria Buchholz. A verdadeira Livraria Bucholz morreria depois: «Morre-se praí/morre-se num instatemente de nada/morre-se a morte mocha/sem a gente dizer ai», escreveu no poema O Mocho e o Macaco.