domingo, 4 de novembro de 2018
Les mémoires de Maigret
Consegui - contentamento! - com um pouco de preguiça de cama - mas é Domingo! - terminar a hoje leitura. Livro breve, formato, lido no original, francês.
Pertenço, talvez, a uma das últimas gerações que em Portugal saberá ler em francês. Cada vez menos se ensina essa língua, menor em cada dia a influência da cultura gaulesa. No tempo do Eça de Queiroz a novidade levava, para chegar a Portugal, o tempo do Sud Express. Agora já poucos sabem o que foi o Sud Express, Santa Apolónia/Mangualdade/Gare de Austerlitz.
Livro paradoxal este, as memórias de Maigret, como se escritas pela mão do próprio. Assina, Georges Simenon. Se pudesse sem blasfémia convocar-se a teologia, seria a revolta mansa da criatura contra o seu Criador.
O inspector da Police Judiciaire tem, nesta pequena obra que a Presses de la Cité agora reimprimiu, publicada originalmente em 1951, compaixão pelos erros daquele que tanto escreveu sobre as suas investigações, retratando-o como o polícia gordo e fleugmático, tornando-o em Literatura aquilo que ele não é, fazendo-se viver quem não sente ser e aqui tenta emendar.
Sendo permitida a ironia, Maigret escreve tão prodigiosamente como Simenon. A mesma imersão nos ambientes, a mesma compreensão pela dimensão humana de todos os outros.
Exagerado, como sempre - palavras de Mme Louise Maigret - Jules Amedée François Maigret esforça-se, nesta ânsia de rectificação por nos devolver o inspector de polícia como «simples funcionário», por atenuar a diferença existencial, - que não moral - entre os que estão do lado da lei face a todos os que são o seu objecto de perseguição, do bas fond à alta roda.
Há na escrita a presença permanente da mediania, o conformismo com a modéstia, a quase ausência de rancor. Noites de vigília, o desconforto permanente da chuva em tempo frio, rotas tantas vezes a sola dos sapatos, uma carreira feita a partir da modéstia de um polícia de rua, distribuidor de correio em bicicleta, enfim, a findar as páginas, ébrio de alegria ante a promoção à Brigade Spéciale.
Por causa de uma das narrativas sobre um caso seu, perdi há tantos anos que já nem lembro quando, um comboio na gare de Poitiers.
Companheiro de viagem, num saco com pouca roupa e muitas fichas para a bibliografia de um livro que teimava em escrever - e já nem sei se o completei, era jurídico, o mundo não ficou pior sem ele! - enclavinhado na mão, aquele pequeno mas hipnótico livro e nele Janvier, Lucas, Torrence, a Brasserie Dauphine, a Rue Richard-Lenoir. Esqueci o título, foi-se a história, ficou o sentimento.
Seguia-lhe de tal modo os passos, bebia assim com ele imaginariamente os Calvado's, o Armagnac que, embriagado também pela fantasia e pela ilusão tornada real, nem dei pela aproximação, nem pela paragem, nem pelo arranque do comboio que asseguraria a ligação final, rumo a Lisboa.
Naquele instante de surpresa e pavor - tinham-se esgotado os francos e nem sabia como fazer para corrigir o sucedido - eu fui O homem que via passar os comboios.
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