Só me apercebi da sua existência quando publicou, recuperando o estilo e as personagens queirosianas, o livro que apelidou de
O Regresso do Conde de Abranches, memórias do contemporâneo transpostas para os olhos transactos, narradas pelo fiel Secretário do Conde, e através dele, Zagalo, o chiste e os "leões de riso" em torno de personagens já consagrados na vida pública portuguesa nesse conturbado período em que escreveu, o ano de 1976. Personagens que não terão na altura achado qualquer espécie de piada ao
à la minute de que eram instantâneo caricatural, mas que,
noblesse oblige, terão disfarçado, com cara de pau, a humilhação ante o que sabiam ser fundamentalmente verdade. Entre eles, Marcial Ribeiro de Souzela.
Li-o então, a Artur Portela (Filho), em pleno PREC, no Jornal Novo, periódico que fundara em 1975 e que, corajosamente, enfrentava a radicalização que tomava conta das mentalidades e das opções políticas. Fazendo-se eco da ideia de que o riso é também uma opinião constitucional, os artigos e os livros suscitavam apreço e rancores na exacta proporção em que o País estava dividido.
Recuperei agora os volumes que faltavam [excepto um, o quarto] da sua série a que chamou A Funda, que teve início em 1972, ainda sob o consulado marcelista, de que me chegou às mãos já só a 2ª edição, editada pela defunta Moraes Editores, onde António Alçada Baptista se foi endividando até ao limite da resistência, custeando, além dos livros, revistas como O Tempo e o Modo, que faleceria às mãos do MRPP e a Concilium, porta voz de uma outra visão do catolicismo, vista do ponto de vista do personalismo cristão.
Ler este livro é surpreender a jovem geração tecnocrática que, com Marcello Caetano à frente do Governo, entrava então na vida pública, e para eles se formava a SEDES, a sociedade de estudos que haviam gerado para tornear a proibição de partidos, ante a subsistência de partido único que o Presidente do Conselho sucessor de Salazar não conseguiu ultrapassar, limitando-se a uma alteração de etiquetas, substituindo a União Nacional pela Acção Nacional Popular.
Incidindo sobre essa nova vaga o lorgnon da sua acutilante análise, Portela, que nos deixou este ano, tira-lhes as medidas, numa crónica datada de Janeiro de 1971: «Com Salazar, impacientavam-se na antecâmara. Com Marcello Caetano, entraram, de roldão, na vida pública. Vêm de Económicas e Financeiras, de Engenharia, de Sociologia. Têm quarenta anos. São apolíticos. Estão na Assembleia Nacional, na Câmara Corporativa, nos Gabinetes Técnicos. Fazem sauna, são católicos progressistas e falam alto, forte».
Assim pintados, eis o seu pensamento pragmático e utilitarista, numa só frase sumariado: «A política, ela própria, globalista, surge-lhes como um romantismo. Não há política. Há políticas. Não há política. Há soluções.»
E, no entanto, o regime, astuto, Artur Portela anota, soube sacar-lhes o necessário proveito. «Muito mais hábil, Marcello Caetano coloca-os, politicamente, nos cargos menos políticos. Ele tira o rendimento máximo destes operários altissimamente especializados. Importa-lhe pouco o seu snobismo tecnocrático. A cheia que eles são é, afinal, força motriz. Força motriz que, politicamente, rende.»
Eis o tom. Claro que livro não é só política. Há nele um pouco de tudo e muitos de tantos passa por ali, num retrato irónico da nossa sociedade, não diria de então, talvez melhor diria, retrato do português de sempre.
Claro que um livro destes custa a ler quando desnuda, com sarcasmo, aqueles de quem gostamos. Mas se não soubermos suportar o riso, se nos levarmos excessivamente a sério, e não aceitarmos que possam ser assim, em gargalhada, avaliados os nossos heróis privados, é porque perdemos então da inteligência o fair play e com isso estamos já em estátua, e pior do que isso, estátua erigida ridiculamente em auto-consagração.