sábado, 28 de novembro de 2009

Ganchos afiados


Ler Clarice Lispector é cair numa armadilha... [Clarice Lispector]

Rumor Branco, de Almeida Faria


Almeida Faria escreveu-o teria dezanove anos. Foi uma revolução na minha cabeça. Nunca tinha visto um livro com tão poucos pontos finais, um livro em que a seguir aos seus escassos pontos finais a palavra estava escrita com letra minúscula, um livro graficamente provocador. Mas mais, nunca tinha visto, no pequeno mundo das minhas escassas leituras, uma tal torrente verbal a arrastar na sua densa narrativa um revolto aluvião de sentimentos, de ideias, de conceitos, de mundividências.
Vergílio Ferreira arriscou apresentar a obra. Subrogando-se à sede de vingança do grupo neo-realista, de que ele se apartara a partir do seu romance Mudança, Alexandre Pinheiro Torres abriria então fogo sobre o livro e sobre o apresentador nos mesmos termos em que Sócrates foi acusado de ser um corruptor moral da juventude. Era proibida aquela escrita de interiores, expressa numa ladainha de tristeza em que a luta pelo pão e pela paz estava quase ausente. Não se poderia perdoar que, depois de uma vida que dedicara desde então àquele género tido agora dissolvente e reaccionário o autor de Aparição desse a mão, apadrinhando um seu aluno.
Tudo pertence ao ano de 1962 menos um facto: a polícia do gosto.
Rumor Branco seria um sucesso. Depois dele o seu autor encolher-se-ia. Os livros seguintes já não teriam o Daniel João pequeno-burguês «desde antes de nascer» e a sua aprendizagem erótica. Já estava presente a fome, a exploração e a luta dos oprimidos. Editado pela Caminho conheceria o sucesso. Tenho pena de ter perdido ou ter deixado ficar por aí o meu primeiro exemplar. Ele tem dentro o grito de surpresa dos meus quinze anos, quando o li.
Benigno José Mira de Almeida Faria, Nasceu em Montemor-o-Novo. Cursou Direito e Letras. Hoje é professor de Estética. Ganhou com o livro o Prémio Revelação. Graças a esta escrita fiz-me parte do que sou..

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Não se brinca com facas


A capa vai ser construída a partir deste quadro, do meu Hugo Bernardo. É estudante de Arte. Vinte anos de esperanças. Mora aqui. O texto é uma narrativa sentimental. Chama-se Não se Brinca com Facas. Abre assim: «Explodira-lhe o sol na cabeça e pela noite choveram estrelas na alma, escorrendo alegria. Acordara nua, o corpo em riso. Nesse dia já não poderia enganar-se. Era amor, por uma forma irrecusável, nunca antes sentida. Se morresse agora, ia-se no acto de nascer, esvaída».
Oxalá o livro tenha sorte. Não gostava que o confundissem comigo. Vai para a gráfica dentro de dias. Começo a organizar-me para o dia do lançamento. Nesse dia lá estarei. Faz parte das normas que o autor apareça, mesmo que encabulado.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

O fetiche da mudança



Cansa ler sobre factos, sobre pessoas, é raro encontrar escritos sobre ideias. Por isso quando me assinalaram este sobre a fetichização da mudança não resisti. Vivemos um tempo em que a ideia do novo está na ordem do dia. Quer for pela intemporalidade, pelas instituições, pela memória colectiva, quer se guiar pelos arcanos, pela Tradição, está condenado às galés. Ser-se «progressista» passou a ser sinónimo e inteligência e bom coração. Claro que às vezes vai-se para pior. O perigo do novo sem sustentáculo no antigo e aceite é esse: cai por si.
A propósito da fotografia: Jacques Tati! Eis a capacidade genial de rir no mito do progresso.

domingo, 22 de novembro de 2009

Amadeo, de Mário Cláudio


Ainda não li o último livro do Mário Cláudio, bem sabendo que não é o derradeiro. Mas lembrei-me há pouco de ter lido e estudado ao pormenor a fantasia que ele escreveu sobre o Amadeo de Souza Cardoso. Na altura eu andava embevecido pela Sonia Delaunay e fui mesmo a Vila do Conde fotografar-lhe a casa, a Vila Simultânea, que o Francisco Teixeira da Mota me disse pertencer à família e em cujo quintal - memória inesquecível - havia coelhos.
O livro é curto e é curioso, apesar de na altura me irritar porque eu queria uma biografia de factos e o autor por vezes escapulia-se para uma biografia de sonhos. Mas a vida é também isso mesmo.
Tenho o livro comigo e curiosamente abriu-se, a lombada já forçada, na página 83 onde eu sublinhei - e o pobre está todo sublinhado - aquele excerto, que publiquei na num qualquer blog, em que o Amadeo pergunta em carta: «A Maman sabe o que é a burguezia?». E responde por ela: «Sabe, sim. É a geral sociedade, essa que vive animalmente, isto é, aquella em que os sentimentos animaes é tudo e os espirituaes nada. É uma sociedade de alma animal. Ha tambem bons burguezes, porque a alma animal tambem pode ser altamente virtuosa, mas nunca superior. Ora o tio Chico é uma alma superior. Voila tout».

Jorge Ferreira



Apresentei-lhe um livro, em Faro. Era visita regular dos meus blogs quando eu tinha muitos blogs. Vimo-nos pela última vez quando daquele seu livro sobre os voos clandestinos da CIA. Chegou com os filhos. Impressionou-me. Estavam de mão dada, como se quisessem ter-se cada instante de todo o tempo. Já não havia todo o tempo. Os estigmas da doença estavam todos ali, a assinalarem a posse da morte sobre a sua pessoa. Sorria, porém, um imenso sorriso e a capacidade de saber rir. Morreu e tinha quarenta e oito anos. Morre tanto do que poderia ter vivido que a alegria só pode ser uma revolta contra Deus.

sábado, 21 de novembro de 2009

Rua de Anchieta



São sujeitos à mesma lei da Natureza que o camponês segue e respeita e pela qual se orienta, os livros. Há dias em que se sai de casa, olha-se para o céu, vê-se que está a chover e uma pessoa diz: hoje não há livros. Aconteceu hoje e não fui à Rua de Anchieta, a feira de livros usados, lugar de alfarrabistas, martirizados pelo sol e pelo frio e que só a chuva pode afugentar, porque é tudo a céu aberto.
Agora que escrevo pergunto-me se a verdade da vida terá correspondido à verdade do que presumi ou se os estóicos vendedores terão sabido resistir, entre plásticos e guarda-chuvas que também também se chamam sombrinhas. Mas já é tarde, porque o sábado útil acabou com a chegada da noite. E pergunto-me se o nome da Rua é de Anchieta ou da Anchieta, mas embora não seja tarde, sempre há uma legítima preguiça em ir procurar a verdade toponímica, porque com a chegada da noite de sábado inaugura-se o direito a ao menos hoje não, princípio sagrado de liberdade ociosa que é excepção ao mundo afadigado dos deveres e das obrigações. Quanto à foto fui buscá-la a um excelente blog que se chama O Funcionário Cansado e olha que nome mais a propósito! O seu autor gosta de livros, diria que ama livros se não houvesse que poupar por pudor do banal a palavra amor.

P. S. Quem for ao link que cito encontra um texto do Jorge Silva Melo, editado pelo jornal Público. Encontrei-o lá por vezes, na Rua de ou da Anchieta; é a mesma, ao lado da Bertrand, aquela livraria que tem um cheiro adocicado e alguns livros que parecem muitos mas não tantos assim.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Irene Lisboa como João Falco


Será a caligrafia de Irene Lisboa... [Irene Lisboa], uma mulher que teve de se travestir literariamente como homem para que a lessem.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

O editor impenitente


Anos a fio Fernando Pessoa pensou na criação de uma editora, que foi idealmente a Íbis e depois disso a Olissipo. Concebia tais delirantes projectos como uma via de «rectificação pessoal». Sistematizava o sentimento criador, embalsamando a que se adivinhava um nado-morto. Entretanto escrevia muitíssimo mas publicava quase nada dessa escrita, vadiando a sua genial hesitação.
A editora, concebida grandiloquentemente, seria, no mundo das coisas práticas, sempre ele só, multímodo e omnipresente, desdobrando-se-lhe as personalidades.
Falhou tudo excepto as poucas e geniais edições: A Invenção do Dia Claro, de José de Almada Negreiros e as Canções de António Botto.
Depois fica para a História o que António Mega Ferreira compilou para um livro que a Assírio & Alvim publicou em 2005, sob o tíítulo Fazer pela Vida: um retrato de Fernando Pessoa o empreendedor, no fundo o relato de um mundo que poderia ter sido.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

El amigo de los maridos, de Rafael Sender



Às vezes viaja-se e não há tempo para ler: quando se vai a guiar, ou quando de vai de boleia e não é correcto uma pessoa isolar-se, fechado dentro de um livro. É por isso que o comboio é bom, o autocarro um pouco menos, o avião nem tanto.
Ontem tinha pensado escrever e não escrevi e aqui estou, terça a datar de segunda, a redimir o erro.
Deram-mo num hotel em Espanha, penso que em Barcelona. Há hotéis que põem livros nos quartos, como em alguns há quem deixe a Bíblia na mesa de cabeceira. É um livro de contos, pequeno, bem escrito e divertido. A personagem é um médico psiquiátrico a falar das suas experiências humanas e dos seus doentes e onde é que eu já vi isto?
Não importa muito. Interessa sim que, logo a abrir, ante um inquisitivo paciente que lê a Odisseia como uma lírica «de guerreros y navegantes si quiere, pero lírica ya. Una historia de celos, de propriedad privada...de ansias sedentarias de formar hogar, de convertir al nombre proprio en apellido. En definitiva, de familia», o médico refugia-se por detrás de um «silêncio metodológico».
Ora aqui está um instrumento útil não direi de acção, sim de inacção: um silêncio metodológico, que permita, enfim, interferir na identidade alheia.
O autor chama-se Rafael Sender. O conto chama-se El Amigo de dos Maridos. Um história de família, antídoto para ânsias sedentárias.

domingo, 15 de novembro de 2009

Dia de rally paper



Talvez se devessem chamar rally paper aquelas gincanas que os livros fazem no circuito de leituras de quem os lê. Ora avança um, ora fica para trás, uns há que se despistam na curva apertada de um passo mais inseguro, poucos são os que cortam a meta da última página, uma minoria vai ao podium. Às vezes são mais as 24 de Le Mans ou, com tantos altos e baixos, a Rampa da Pena. 
Aconteceu que tentei recuperar o atraso que está a sofrer o livro do Luís Sepúlveda, Un Viejo que Leía Novelas de Amor, ultrapassado que foi numa das voltas à pista pelo bólide da Rosa Montero.
Não que eu seja um Fangio das leituras - e quem se recorda do velho ás, «O Manco» - o argentino que foi «o único piloto da história da Formula 1 que foi campeão com 4 escuderias diferentes: Alfa Romeo, Maserati, Ferrari e Mercedes-Benz»?
Mas tento dar as minhas voltinhas, literariamente que seja.
Assim, esta manhã recuperei a posição, largando-me a rir. Antonio José Bolívar descobriu que sabia ler, esse antídoto contra o veneno da velhice. Mas não tinha que ler. Foi então que tentou uns jornalecos que davam conta da vida quotidina do seu país equatorial: «La reproducíon de párrafos de discursos pronunciados en el Congreso, en los que el honorable Bucaram aseguraba que a otro honorable se le aguaban los espermas, o un artículo detallando cómo Artemio Nateluna mató de veinte puñaladas, pero sin rencor, a su mejor amigo, o la crónica denunciando a la hinchada del Manta por haber capado a un árbitro de fútbol en el estadio, no le parecían alicientes tan grandes como para ejercitar la lectura». Ah! Ah! Ah! Ah!...

sábado, 14 de novembro de 2009

Aquela forma enigmática de sentir


Tenho um blog dedicado a Clarice Lispector. Hoje ela está imensamente na moda. Dei conta da sua existência pela Conta Corrente do Vergílio Ferreira. Depois comecei a lê-la, perdido naquela forma enigmática de sentir gerando sentimentos. Hoje, ao chegarem-me notícias, dela, voltei .

Maria Ondina Braga


«Aterrei em Pequim no Ano do Cão de 1982 (...)». Escrevi sobre Maria Ondina Braga, aqui. É um mundo escondido, como o de uma infância que se revisita em que o próprio mal se sublima pela beleza.

La Loca de la Casa, de Rosa Montero


Comecei esta manhã, fascinado. Não gostaria de parar de a ler. Sei que tenho de voltar a outros livros que deixei inacabados, alguns por ser deles o leitor. La Loca de la Casa aprisionou-me. Não é uma reflexão, é um discurso amoroso sobre a paixão literária, a coincidência entre o enamoramento e a escrita. «Ser novelista es conviver felizmente con la loca de arriba. Es no tener miedo de visitar todos los mundos posibles y algunos imposibles». «La novela es la autorización de la esquizofrenia». Rosa Montero escreveu vinte e seis livros. Comecei hoje com este, o dia suspenso.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Tu não és o que tens



Este espaço está destinado ao reflexo das coisas que leio. A verdade, porém, é que também leio as coisas que escrevo. O jornal Correio da Manhã pediu-me uma história para crianças, que editaria na revista de domingo. A história saiu numa página pensada para mulheres. Talvez porque numa vergonhosa medida ainda são as mulheres quem se ocupa das crianças. A jornalista que me recebeu a prosa disse que era uma história para crianças que os pais deviam ler. Escrevi-a a pensar nisso. Arquivo-a aqui com a ilustração que para ela fez Ricardo Cabral.

«Era uma vez um menino que tinha um pai e uma mãe, um menino que estava na escola. E o menino estava na escola e aprendia verbos, porque quando se está na escola tem de se aprender os verbos e os verbos têm de ser aprendidos. Porque os verbos são o que faz com que as coisas andem, são as pernas das palavras. E se não se aprendem as palavras não andam.
E naquele dia era o verbo ter. Começava assim “eu tenho” e depois “eu tinha” e no fim “eu tive”. E o menino ficou a saber o que eram as coisas que estão e as coisas que já se foram embora. E era uma lição muito fácil e o menino lembrava-se que os avós já cá não estavam, e por isso já não tinha avós e só tinha meio pai porque o pai vivia com outra meia mãe.
E o menino aprendia, aprendia muito e aprendia sempre, mais verbos, mais maneiras de ser do mesmo verbo, porque os verbos têm muitas maneiras de ser, como as pessoas, algumas maneiras tristes como “eu teria” e maneiras de muita alegria como “eu terei”. E o menino lembrava-se do Natal, que cada ano havia, e de todas aquelas coisas que não tivera por ter ficado de castigo.
Um dia o menino tinha de aprender eu “tinha tido”. Foi um dia muito triste. Nesse dia chovia muito e ele sentiu que um dia seria homem. Começou tudo nesse dia. Com muita pena».

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

4 & 1 Quarto, de Rita Ferro



Resuma-se numa só frase o último livro de Rita Ferro. Resumo-o: só o sexo pode ser repartido, o amor é indivisível. No booktrailer que divulga a obra diz-se que os quatro corpos que dão história ao romance «gozam até ao fim». Só não é totalmente assim pois há a dor. E há instantes na narrativa onde um gotejar dorido vai esvaindo aquelas personagens, rasgadas na sua intimidade pela luxúria e pelo desejo de posse. O universo é por vezes concentracionário, a vida e a morte contracenam, o amor e o ódio abraçam-se, num swing fatal que prenuncia tragédia. É tudo, porém, demasiado humano. O riso surge, então, desconcertante. É um estudo sobre a alma sem outra filosofia que a das sensações.
É difícil escrever neste contexto, sobre a vereda estreita do erótico e o tema prestava-se, tratando do promíscuo relacionamento e do sexo em comum, mas o livro deixa os voyeurs desapontados, evitando o óbvio, por haver sempre um modo subtil de a realidade ser contada e a imaginação poética poder recriar aquilo que as palavras não têm prosaicamente de dizer com quatro letras.
Diferentemente dos que fizeram carreira literária ao som de palavrões e brejeirices, vinte anos de escrita em Rita Ferro souberam mantê-la em Literatura, mesmo quando crítica, ainda que irónica, dentro dos limites da boa educação.
Lê-se incessantemente este 4 & 1 Quarto, título bem conseguido que a fulgurante capa melhor ilustra. Não há neste modo de screver desagregações do verbo, nem volteios barrocos de forma, a acção surge fluente, o leitor progride, ansioso de antecipação, a escrita não pesa, leve, pesa sim o que é descrito.
Ao comemorar vinte livros, surge-nos a novidade de uma outra autora. Parabéns e longa vida, Rita Ferro!

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Porque se escreve com gralhas...



O nosso cérebro é doido !!!
De aorcdo com uma peqsiusa
de uma uinrvesriddae ignlsea,
não ipomtra em qaul odrem as
Lteras de uma plravaa etãso,
a úncia csioa iprotmatne é que
a piremria e útmlia Lteras etejasm
no lgaur crteo. O rseto pdoe ser
uma bçguana ttaol, que vcoê
anida pdoe ler sem pobrlmea.
Itso é poqrue nós não lmeos
cdaa Ltera isladoa, mas a plravaa
cmoo um tdoo.
Fixe seus olhos no texto abaixo e deixe que a sua mente leia corretamente o que está escrito.

35T3 P3QU3N0 T3XTO 53RV3 4P3N45 P4R4
M05TR4R COMO NO554 C4B3Ç4 CONS3GU3 F4Z3R
CO1545 1MPR3551ON4ANT35! R3P4R3 N155O!
NO COM3ÇO 35T4V4 M310 COMPL1C4DO, M45
N3ST4 L1NH4 SU4 M3NT3 V41 D3C1FR4NDO O
CÓD1GO QU453 4UTOM4T1C4M3NT3, S3M
B3M ORGULHO5O D155O! SU4 C4P4C1D4D3 M3R3C3!
P4R4BÉN5!

Un Viejo que Leía, de Luis Sepulveda



O doutor Rubicundo Loachamín, dentista, verdadeiro tira-dentes no sinistro local de El Idilio, arranjava novelas de amor para Antonio José Bolívar Proaño, casado com Dolores Encarnación del Santísimo Sacramento Estupiñán Otavalo, o velho que sabia ler mas não escrever. «Leía con ayuda de una lupa, la segunda de sus pertenencias queridas. La primera era la dentadura postiza».
Claro que arranjar novelas de amor naquelas paragens equatrorianas não era fácil. «Pensaba en que haría el ridículo entrando a una librería de Guayaquil para pedir: "Déme una novela bien triste, con mucho sufrimiento a causa del amor, y con final feliz". Lo tomarián por un viejo marica, y la solución la encontró de manera inesperada en un burdel del malecón».
É um passo fantástico da notável novela do chileno e Luís Sepúlveda, Un Viejo que Leía Novelas de Amor. Mais de cinco milhões de exemplares vendidos, se isso é critério. Um pequeno grande livro.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Que é que Eu Tenho, de Couto Viana


O livro é pequeno e a capa atraente. É encadernado. A editora chama-se Opera Omnia e tem sede em Guimarães. Mora aqui. O autor nasceu em Viana do Castelo em 1923. São pequenas histórias, proeza num País que lê a metro cúbico de papel, onde os editores dizem aos autores de contos «e porque não tenta um romance, pois contos ninguém lê!».
É António Manuel Couto Viana e o seu livro Que é que Eu Tenho Maria Arnalda?. A história que dá nome ao volume não é grande espingarda e é politicamente incorrecta, mas creio que o autor não se importa, porque tem qualidade literária que chegue.
A personagem é a Cló, a Clotilde Patacho, filha de um garagista, «senhora de um pujante buço na cara cavalar, onde pesavam uns óculos pesados de dioptrias», mulher de «corpo desarrumado».,
Malgré, a dita, durante as onze páginas e meia da narrativa seduz e é violada pelo contabilista Sílvio, assediada pelo recepcionista do «Hotel Familière», importunada pelo revisor do Wagon Lit no Sud Express e entre o primeiro e o segundo molestada por «um pretalhão enorme» (sic, «pretalhão enorme») vindo da rua e tentando saltar para cima da inocente que ignorava estar num hotel «de curta duração». No meio destas pícaras aventuras, ao partilhar quarto com a amiga Arnalda, mana do que conta a epopeia, não se livram ambas de olhares oblíquos e carregados de pensamentos picantemente equívocos sobre a natureza das suas aliás tão diversas morfologias e respectivas potencialidades libidinosas.
Ah! Tudo termina de forma inesperada. Mau grado a aparência, e porque bizarramente atraente, e para além disso fecunda, ao virar-se para a última folha, a Cló está grávida. De quem? Do narrador, pois claro. Diz ela e nós acreditamos.

domingo, 8 de novembro de 2009

A ver estrelas...com Maria João Medeiros


Às vezes uma pessoa engana-se e eu enganei-me. Julgava que era um ensaio e era afinal uma espécie de livro de reportagens, embora com apêndice bibliográfico e menções a documentos dos Arquivos Nacionais. Trata dos que adivinham o futuro. Podiam ser todos, mas são só alguns. Está lá um meu conhecido, que não pessoalmente, mas por lhe ter lido um livro e ter fixado que a Torre de Belém tem como espessura das paredes 365 milímetros e estão nela, como memória em pedra, outras circunstâncias simbólicas, em que o acaso não basta como explicação suficiente, como é comum na arquitectura sacrada: é o Paulo Cardoso, apodado com não pouca pompa, de «embaixador informal da cultura lusa». Mas estão outros, como o «professor» Horus e a Delfina Lapa, o primeiro a gabar-se a Fernando Dacosta que o dia 25 de Abril calhou nesse dia por ter sido consultado sobre o dia fausto por «dois estrategas da Revolução», o «Raphael Baldaya», cognome aliás do Fernando Pessoa, o único que me merece respeito profundo, a Maria Emília Vieira, elevada à categoria de «a mais preponderante consultora esotérica durante o Estado Novo», que escrevia cartas com as suas previsões astrológicas a Salazar sem ser certo que ele as lesse e, mais antiga, a Virgínia Rosa Teixeira, a «Madame Brouillard», com gabinete cativo na Ra do Carmo, 43, sobre-loja., estudante das «ciências fisiognómicas» e, rezava anúncio «da sua aplicação prática pelas teorias de Gall, Lavater, Desbarrolles, Lambroze e d' Arpenligney».
Mas permitam-me que os olhos me tenham caído na Eunice Cristina Maia Morais de Carvalho, «Maya» de seu nome profissional. Quartanista de Direito optaria pelos Astros e pela cartomância. Um dia aligeirou a indumentária para uma revista dita «para homens». Ei-la, Taróloga. É a demonstração em carne e osso - pouco osso - de que o Oculto pode ser desocultado.
P. S. O livro que refiro foi escrito por Maria João Medeiros, signo Leão. Em 2008 foi co-autora do Dossier Regicídio : o processo desaparecido. Esse sim um mistério que resiste às leis do pêndulo.

Aconteceu no Oeste, no Far West



É isto o mercado editorial: «La editorial no acepta el envío de poemarios, obras teatrales, y antologías de aforismos no solicitados, por lo que declina mantener correspondencia sobre el particular». Acho que fica tudo dito quanto ao «no Indians allowed» do Far-West literário. Vem isto no site da Tusquets, uma editora de Barcelona, secção «envio de manuscritos».
Ela entretanto lia, indiferente a quem editara. Ficou-me a imagem do prazer da leitura: «é preciso estender as pernas no macio de um sofá, perseguir com os dedos nos lábios os silêncios profundos e confiar o passaporte à mente, até àquele lugar inóspito do oeste (...)».

Bater-se pela cultura!



Não resisto a contar-vos aquela história exemplar que o Mário Dionísio deixa na sua autobiografia que ontem li. Corria o ano de 1943. Como forma de divulgação da cultura mas, claro, também de agitação política, um grupo de «amigos», entre os quais Sidónio Muralha, Fancine Benoît, Alexandre Cabral e o próprio Dionísio organizam militantemente na que hoje se chama a Casa do Alentejo, então denominada Grémio Alentejano, uma série de conferências. A primeira delas, proferida pelo matemático e figura de referência da oposição ao regime, Bento de Jesus Caraça, correria sem problemas de maior. Casa cheia, os eventos prometiam sucesso para os fins políticos em vista.
Já quando da segunda, tudo evidenciava que ia haver sarilho, na sala apinhada a mostrarem-se aqui e além os infiltrados provocadores, ali colocados para gerarem o boicote.
No momento em que o conferencista, o maestro Fernando Lopes Graça, a meio da sua prelecção, colocava um disco para ilustrar uma qualquer particularidade da música medieval, salta da boca de um deles em surdina um dichote achincalhante e apto à confusão que, num ápice, se generalizaria: «vira o disco e toca o mesmo!».
O efeito foi um rastilho. Apanhada de surpresa a sala reagiu, em exaltado tumulto. Segundos depois a pancadaria generalizava-se. «Cães à solta», lhes chama Dionísio, os «mercenários», agora em plena acção, «excitavam-se a si próprios». Aqui um berro vindo do seu magote «Quem é que disse morra a Pátria?» e de além, do mesmo grupo a resposta orquestrada: «Viva a Pátria! Viva Salazar!» e logo a pronta retaliação verbal e física porque bater, por vezes, em caso de aperto, chega a ser uma excelente resposta.
Sucede que o Alexandre Cabral, que trabalharia na Carris, havia trazido um grupo de operários, daquela empresa, enrijecidos pelo trabalho braçal e, como se adivinha, no meio daquela refrega, ei-los em acção, com grossa artilharia dos seus afoitos punhos, a abrir clareiras entre a mole dos atrevidos esbirros.
No meio, e eis o momento do riso, Bento de Jesus Caraça, a sua figura imponente, contemplando a batalha campal que se instalara, maravilhava-se como é que ainda havia gente disposta a «bater-se pela cultura».
Bater-se no sentido próprio do termo, claro, à porrada, forma directa de as ideias entrarem dentro das cabeças, rachando-as!

sábado, 7 de novembro de 2009

Käthe Kolwitz e Álvaro Cunhal



Teria de ir buscar, não o tenho aqui e ele ainda é volumoso, o exemplar evocativo da revista Vértice. Saíu em Coimbra o primeiro número em 1942, no simbólico mês de Maio. Foi uma frente de combate pelo «neo-realismo», uma palavra de ordem cunhada por Joaquim Namorado para esconder da Censura uma outra, historicamente perigosa, porque militante: «realismo socialista». E teria de o ir buscar porque foi lá que descobri a já antes ouvida mas nunca até então lida polémica sobre a forma e o conteúdo, que era o modo indirecto de então se discutir o binómio arte/ideologia, no ambiente activista da «missão social do artista».
E foi lá precisamente que me apercebi que um dos intervenientes na contenda, assinando sob o nome de António Vale, era afinal, Álvaro Cunhal, filho do advogado e escritor Avelino Cunhal.
Encontrei-os todos esta tarde ao ler a Autobiografia do Mário Dionísio, que trouxe comigo depois de visitar a Casa da Achada, à Mouraria.
Escritor, Dionísio aventura-se pela iniciação à pintura. Companheiro de arte, aquele que seria o mais lendário Secretário-Geral do Partido Comunista Português, «o partido que não é preciso dizer-se qual é», no qual o autor de A Paleta e o Mundo, militaria até 1952; outro, Huertas Lobo e a juntar-se ao grupo, António Augusto de Oliveira, o AAO, ambos esquecidos. Presente o próprio Avelino, ele também pintor.
Eram tardes de domingo, em que no improvisado atelier se fabricavam tintas, misturando com os meios os pigmentos, atestando bisnagões de estanho. Tempo de penúria em que fabricavam as próprias telas em que se «escrevivia» e pintava. Tempo de uma paixão comum: Álvaro Cunhal apresenta a Mário Dionísio a obra de Käthe Kolwitz. É dela a imagem deste post. Tempo em que «não sabia onde começava e onde acabava o amor, a luta pela liberdade e pela transformação do mundo, a criação poética».

Cuntas, de António Bárbolo Alves



Talvez a língua portuguesa, fechada em si, muito consoante e átona, tenha perdido a capacidade de ser carinhosa, como o galego e o mirandês, em que até as ideias parecem sentimentos.
Estou a ler as Cuntas de la Tierra de las Faias, em mirandês e uma vez mais maravilhado com aquele modo de exprimir e mesmo fascinado pela forma que ganham as letras impressas, tão familiares e simultaneamente diferentes, a ler num murmúrio para que a fonética ensine o sentido, tirado pelo modo como soa.
Escreveu António Bárbolo Alves. Nasceu em Picuote. O livro já tem nove anos. A editora já se foi. «L die era tan claro que la tirera relhuzie até l anfenito» e Gabilan, sabia que «un home solo ten miedo se pensar que l miedo quier algo cun el».
Gabilan voará, esperando a sua hora, ansioso porque «çquecia-se até de l que la mai le dezie muitas bezes: " - Miu filho, bun se nace páixaro, daprende-se a sê-lo!"». Do alto dos céus, «a bolar bien alto para nunca ser bisto», Gabilan descobria, enfim, que «l anfenito iba ganhando forma».

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Autobiografia, de Mário Dionísio



«Contar a minha vida. Sempre que me falam nisso, imagino-me sentado num banco de cozinha, com um grosso camisolão, ombros caídos, a olhar por uma janela alta e estreita o que ela deixa ver da floresta. Alguém deixou um machado na peque na clareira em frente da janela. Andarão a rachar lenha. Grandes aves esvoaçam lá por fora, não muito alto decerto. E, além disto, silêncio. O pro fundo silêncio do que não volta mais. Mas que floresta? Nunca vivi em nenhuma flo resta. Nem sequer perto de. Talvez uma lógica in terna — penso então — comande os próprios des mandos do nosso pensamento. E esse indivíduo mais ou menos ruço, no meio da cozinha lajeada, olhando o que não existe, queira dizer apenas que tudo foi bastante diferente do que eu teria deseja do. Ou será a suspeita (uma quase certeza) de que contar a nossa vida é impossível. Por isso, à ideia de lembrar o que vivi e como, correrei a meter-me na pele de um qualquer em que mal me reconhe ço. É o que se chama atropelamento e fuga». É Mário Dionísio na primeira pessoa, editado pelo saudoso O Jornal. Lê-se na Casa da Achada, um lugar em sua memória, repleto de iniciativas e de entusiasmo.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

O corta-sabores



Não se lê todos os dias mas pensa-se todos os dias. Um blog que se diz ser de um leitor talvez suporte ser um blog sobre o que pensa esse leitor não só sobre o que lê, mas também sobre o que não lê.
Está agora na moda editar livros que pretendem ser tudo aquilo que você tem de ler antes de morrer, listagens de «imperdíveis», «incontornáveis» e «abolutamente necessários».
Claro que é por causa disto que quem não aprende a fingir que leu o Ulisses do Joyce faz fraca figura num salon assim como quem, numa reunião gauche confessasse nunca ter lido o Das Kapital.
Depois há o mimetismo dos que de repente surgem familiares com autores de que uns dias antes nunca tinham ouvido falar, surpreendendo-nos com a inesperada adesão ao género e à espécie de que os julgávamos alheados e indiferentes. É o macacodeimitaçãozismo como aqueles que, num jantar de cerimónia, espreitam por um canto do olho com que talher é que se come aquela esquisita entrada, atentos ao milieu para não parecerem a ele estranhos.
Houve tempos em que o Italo Calvino ainda se dava ao trabalho de nos convencer a porquê ler os clássicos suscitando em cada um de nós a adesão pela simpatia e o convencimento pela compreensão. Hoje o mercado está mais agreste. A intimidação é o seu meio.
Tal como nos regimes autoritários em matéria de educação há um «programa oficial» obrigatório e os compêndios «adoptados», também os ditadores culturais impõem o programa oficial da cultura necessária, a permitida e a proibida.
Claro que há uma maneira de escapar. Quando numa das voltas do serviço de mesa, na hora dos corta-sabores, se alguém perguntar se já leu o Harold Pinter ignore a pergunta e diga que está a ler o Frei Manuel do Cenáculo Vilas Boas Anes de Carvalho. E arranque numa cavalgada heróica de erudição: nasceu em Lisboa no dia 1 de Março de 1724, faleceu em Évora a 26 de Janeiro de 1814 na avançada idade de 90 anos incompletos. Era filho dum serralheiro chamado José Martins, natural de Constantim, termo de Vila Real, e de Antónia Maria, natural de Lisboa. Quando contava 16 anos de idade professou na ordem Terceira de S. Francisco, a 25 de Março de 1740, no convento de Nossa Senhora do Jesus. Cursou os estudos de humanidades, e depois teologia na Universidade de Coimbra, em que se doutorou a 26 do Maio do 1749, tendo já exercido o magistério por três anos no Colégio das Artes, e logo em 1750 foi a Roma assistir ao capitulo geral da sua ordem. Voltando a Portugal, seguiu para Coimbra...
Vai ver que não o importunam mais. Imperdível!

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

História secreta. de Mario Vargas Lllosa



Na FNAC, penso eu, há algum tempo, deram-me um livro que a D. Quixote editou, traduzido por António José Massano, chamado História Secreta de um Romance. Escreveu-o Mario Vargas Llosa. Foi oferecido para comemorar o Dia Mundial do Livro.
É tão pequeno em dimensão como grande em conteúdo. Trata-se de um conferência que o autor proferiu «em inglês rudimentar» na Washington State University em 1968. Nela, Llosa não conta propriamente como é que, entre 1962 e 1965, escreveu o romance A Casa Verde. Conta, sim,  de que é que os romances são escritos, para que se perceba que o são com a pele do próprio autor.
A imagem que usa é duplamente atractiva, como conceito e como imagem, comparando o escritor à rapariga do strip tease. Com diferenças: o romancista não exibe os seus «encantos secretos», mas sim «os demónios que o atormentam e obcecam» e ao contrário desta, o escritor começa nu e termima completamente vestido, sabendo disfarçar, com a roupagem da escrita, «as experiências pessoais (sonhadas, vividas, lidas) que constituiram o principal estímulo para escrever».
Encontrei-me com ele hoje no Corte Inglês, por duas vezes. Primeiro, num filme do Almodóvar, Abraços Desfeitos, que é, afinal, a história precisamente da mesma ideia, na forma de um escritor cego e seu passado, como Homero o seria. Enquanto fazia tempo, viu-o na forma de um livro seu, que reune notas de leitura: La Verdade de las Mentiras. É uma incitação e uma sedução relativamente à leitura.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Público



Hoje comprei o jornal Público e o jornal Público tinha mudado de director e eu gostei de ler o jornal. A capa que o embrulhava, eu sei, falava de chocolates. Mas mesmo com a boca doce, acho que estou a ser rigoroso. Gostei e isso pode explicar-se, fundamentadamente, sem ser por razões pessoais. Embora o Público tenha mudado de director.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

A Rapariga que Brincava com o Fogo, de Stieg Larsson


Disseram-me que eu deveria ler o Stieg Larsson, mas eu ainda não tive tempo para o ler. Mas hoje porque acordei cedo vi no Diário de Notícias que «A família do falecido escritor sueco Stieg Larsson - autor da trilogia Millennium, êxito de vendas em todo o mundo - anunciou ontem ter proposto um acordo à ex-companheira do autor, Eva Gabrielsson, envolvendo uma quantia de cerca de dois milhões de euros para pôr um ponto final no conflito que os opõe. Recorde-se que até ao momento é o pai e o irmão de Larsson que estão a receber os direitos de autor, o que tem sido contestado pela ex-companheira».
E agora, até se desfazer esta sombra funerária e seus abutres hereditários, como irei lê-lo quando, mesmo sem tempo, me apetecer ler?
Talvez os direitos de autor devessem fugir às regras das heranças e suas vergonhas. Em nome do respeito ao criador, a propriedade e suas sequelas envergonhavam-se ao menos por um instante. Há muito quem precise, autores tantos que, antes do Panteão da Glória, em vida comem o pão que o Diabo amassou.

domingo, 1 de novembro de 2009

António Alçada Baptista



Acho que o jornal acabou. Publicava-se em Cascais. Era gratuito e eu tinha lá uma crónica sobre o que me apetecesse, que é a melhor expressão que há para a liberdade de imprensa. Chamei-lhe O Jardim dos Passarinhos em homenagem a um lugar próximo. Aqui fica a última que ali se editou. Será que agora estou sem lugar onde escrever, porque nas paredes é proibido?

«O António Alçada Baptista era advogado. Fartou-se, pois isto é profissão que dá para uma pessoa se fartar vivendo diariamente os problemas dos outros e a fazer disso modo de vida. Segundo confessou num dos seus apontamentos de memórias foi um maldito processo de inventário, em que sentiu que um dos contendores queria fazer dele um porrete tentando assim, através do tribunal, agredir um cunhado, que o trouxe para a Literatura. Bom homem, tornou-se militante das letras, fazendo-se editor através da Moraes. Militante católico, inspirado pelo personalismo cristão, um dos que João Bénard da Costa chamou «os vencidos do catolicismo», criou a revista O Tempo e o Modo e a Concilium. Derreteu em tudo isso o dinheiro que havia. Sofreu a preocupação das dívidas. Escritor, acabou por ser adoptado pela Presença. O seu amigo Francisco Espadinha compôs-lhe um livro de homenagem há dois anos. São coisas que se fazem quando se torna evidente que uma pessoa não é imortal. Publicara-lhe o primeiro livro em 1985. Falando do seu delicado ser Leonor Xavier sublinhou dele o «entendimento não contábil com o mundo em que vivemos, a descrença no trabalho como valor absoluto». Invulgar observação, esta, notável espírito. António Alçada Baptista tinha uma escrita amável, mesmo quando angustiada, até quando falava com Deus. Um neto escreveu um dia numa redacção a propósito da família, tomando dele a parte de escritor e do pai o trabalhar numa editora: «A Família. O meu avô é escritor e o meu pai emenda os enros». Tal qual assim, com enros. Lembrei-me disso esta manhã. Não são os que se dizem escritores que afinal o são. São aqueles que têm uma história para contar, mesmo quando na fase da «preguiça ostensiva». Os leitores esperam, pacientes. São pequenos enros da vida estes gloriosos momentos. Sem eles estava tudo completamente errado».

O Som da Frente, de António Sérgio


Conhecia-lhe a voz, cava, rouca, gutural, vinda não das cordas vocais, mas de muito mais fundo, mais íntimo, do interior do coração e foi o coração que lhe falhou. Há pouco chegava a notícia, funcional, prática: «o radialista António Sérgio faleceu na noite de sábado, vítima de um problema cardíaco, aos 59 anos».
Conhecia-lhe os programas o Sinais de Fumo, o Lança-Chamas, O Som da Frente, A Hora do Lobo.
Fui ao Blitz buscar-lhe a fotografia.Ninguém associaria este semblante àquela voz. É esse o mistério da rádio e o encanto da sua fantasia.
Foi ele quem editou o primeiro álbum dos Xutos e Pontapés.
Caramba, que domingo triste!

La Invención de Morel, de Bioy Casares - finis



Livro pequeno mas que esgota muito tempo a ser lido, como quando se caminha pela areia de uma praia, as pernas pesadas a arrastarem-se, os olhos postos no mar, o horizonte móvel parecendo fixo.
A invenção de Morel é uma máquina que anula a ausência, tornando o presente eterno através da «conservação indefinida das almas em funcionamento», ilude a distância e gera o aparente instantâneo.
É uma forma de «dar perpétua realidade a uma fantasia sentimental» numa ilha povoada, afinal, de reproduções vivas, espécie da caverna platónica com a diferença de que as sombras do reflexo ganham forma e corpo como o de Cristo pelo mistério da transubstanciação, mas aqui num mundo desertificado em que os seres não são pessoas mas apenas a possibilidade de serem sonhadas.
No final o herói sobrevive, dá-se por morto para não morrer. Um livro extraordinário.

Nunca confiando em versos


Permito-me citar, deste companheiro de ciber-espaço, um blog que vai gerando o bom hábito de o ler:

«Dizias que gostavas de poemas.
«Escrevi-te, numa tarde, mais de cinco.
«São muito bonitos, disseste,
«hei de mostrá-los ao meu namorado.
«Nunca mais confiei nos versos
«nem no gosto feminil».
 
Os versos são de José Miguel Silva [Vista para um Pátio Seguido de Desordem, Relógio D’Água, 2003], o blog é O Funcionário Cansado. Ao primeiro porque escreveu, ao segundo pois que citou, muito obrigado. É uma forma risonha de ser domingo de manhã.

Um Buraco na Sombra, de Almada Negreiros



O mundo é circular. Cansado de livros, talvez passear. Eu bem sei que melhor que viajar é ler livros de viagens. Disse-o o Somerseth Maugham, sabe-se lá com que convicção. Mas ao menos um passeio à próxima esquina, debaixo de braço este meu guia:
«Terminada em 1969, pouco antes da sua morte, Almada trabalhou incansavelmente nesta obra. No entanto, quase podemos acrescentar que o fez a vida toda. A lição que se poderia adivinhar em O Número está aqui, tal como o artista procurou, “sem opinião” e “sem texto” no frio da pedra. Os diferentes motivos geométricos que durante décadas tomaram o seu pensamento são aqui apresentados. Por exemplo, a relação 9/10 no ponto mais à esquerda da obra ou, logo à sua direita, a figura superflua ex-errore de Leonardo Da Vinci. E até o título, de poeta, tem ressonâncias noutro momento da sua vida quando n’A Cena do Ódio diz “põe-te a nascer outra vez”».
É a Igreja de Fátima. Fica aqui ao lado. Os sinos tocam como nas aldeias. É a minha aldeia e eu nela. Sucedeu que antes de partir cruzei-me «porque hoje é domingo» com esta menção precisamente ao Almada, o autor dos vitrais da Igreja de Fátima. Um poema: «Mãe! Vem ouvir a minha cabeça contar histórias ricas que ainda não viajei!». São os Dias que Voam, o tempo que passa, a lembrança que fica.