quinta-feira, 28 de agosto de 2008
A minha bagagem
Há biografias que são simultaneamente a vida dos autores e das obras que os fizeram extraordinários escritores.
Passa-se isso com a notável biografa da Franz Kafka escrita por Pietro Citati.
Kafka é o Celibatário, o grande Solitário, o homem em «vertiginosa claustrofobia», Citati é um espírito puro em liberdade, um escritor numa «fuga grandiosa em relação ao infinito».
Momentos há no livro em que, porém, se indiferenciam, o biógrafo já transformado no biografado, o discurso quase directo, o leitor a ler nos lábios de Citati, como se folheasse cada um dos livros deste advogado asilado na Literatura.
Há neste livro rasgos de génio construtivo, como a apresentação teológica de O Processo, a Lei como a casa de Deus, o Tribunal a emanação de Deus, a Justiça labiríntica «a luz ofuscante», um «Deus verídico e enganoso, próximo e afastado, acessível e inacessível, aberto e fechado, luminoso e tenebroso».
Josef K. espera à porta da lei, perde-se nos corredores da Justiça, cumpre «a felicidade do castigo» da condenação da sua culpa: é a culpa que é a «afinidade entre a acusação, vítimas e juízes» e o Tribunal está sempre atraído pela culpa e é o estigma da culpa que atrai o culpado ao Tribunal.
Mas há sobretudo nesta obra única a constante de uma densa humanidade, como a de Gregor Samsa, que um dia acordou em Metamorfose transformado em insecto para viver, enfim, a oportunidade do amor com a única pessoa que o amava no que indiferencia o humano do bestial, o escritor como animal, o mundo como covil, o corpo como miséria, lastro de uma alma ansiosa de plenitude.
Minado por fundas depressões, querendo «altíssimas paredes» que o defendessem dos humanos, Kafka é um dos mais inteligentes escritores do século XX. Morreu em 24 de Junho de 1924.
Viveu como empregado de uma companhia de seguros, deixou uma obra que, tal como a sua Muralha da China «mantém tensas as cordas da alma». Escrevia até altas horas da noite, em estado de semi-inconsciência, descendo cada vez mais fundo às crateras da sua alma, arrebatado, vivendo uma tensão trágica constante, como se numa Colónia Penal. Incapaz de uma relação conseguida no casamento, chegou à noite do noivado, em Berlim, doente ou imaginando estar. «A minha bagagem compõe-se de insónia, peso no estômago, enxaqueca e dores no pé esquerdo», escreveu à irmã da sua noiva, no preâmbulo da «comédia do matrimónio sem matrimónio».Toda a sua vida é a sublimação dessa incapacidade de não ser um homem só, no Castelo do seu refúgio, vivendo como sentimento o terror nocturno da «madrugada dos funcionários».