terça-feira, 14 de outubro de 2008
David Levine
O que faz a cultura de uma pessoa? Tanta coisa miúda, dispersa, atípica, fora do contexto da vida, longe do expectável, às vezes reles outras grandiloquente demais para a própria capacidade. Lembrei-me disto a propósito de um enorme artigo que não tive a coragem de ler até ao fim. O tema era o jornal literário New York Review of Books. Pensei e foi um caudal de recordações neste fim de tarde em que tenho de sair para rua, sem vontade. Primeiro, ainda com o artigo aberto diante dos olhos, o ter comprado tantos exemplares desse notável jornal, regularmente, dobrando-os muito cuidadosamente na pasta para não vincar indevidamente o papel, hábito nascido do meu psiquismo obsessivo e de ter aprendido a estimar o que é caro, como no tempo em que se forravam as capas dos livros para os não sujar ao lê-los. Depois, a imagem evanescente da menina de olhos negros da banca de revistas ali nos Restauradores, de uma beleza triste esmaecida num sorriso bonito, a mesma que oferecia cromos gratuitos, excedentes das promoções, ao meu ansioso Afonso, tão miúdo então, e que já nem perguntava nada ao estender-mo, mais o seu irmão europeu, o Times Literary Suplement. No meio desta nuvem nostálgica de lembranças, a memória de que o NY nascera de uma greve do New York Times que deixara sem trabalho os críticos literários e outros colaboradores culturais que se reuniram em torno da ideia de uma publicação autónoma que não apenas um suplemento dentro de um jornal. E, enfim, enfim não!, porque a verdade é que foi por aí que comecei e me entristeci e por causa disso aqui estou, foi saber que está praticamente cego o David Levine, cujo explêndido traço caricatural valia mais do que tanto artigo de opinião, tanta recensão, tanta doutrina, tanto do que eu, regular comprador de um jornal que nunca assinei [«eu sei que é mais barato, deixa lá!»], não lia, guardava para depois, um depois que nunca houve até um dia, vivia por empréstimo numa casa na Rua das Trinas, deitei tudo fora, ou deixei lá ficar quando saí, é o mesmo. Não sei porquê, talvez porque fossem os seus desenhos que em cada jornal que comprava me rasgavam os olhos iluminando-me a alma sobre quem era cada um daqueles que a sua pena resumia a linhas enoveladas de uma caricatura, o David Levine tornou-se uma figura inesquecível; criaturas da cultura, da política, do mundo, personagens de um mundo de ironia, suspensos num instante fugaz de existência. Ao contrário do escultor, que é a mão da posteridade, o caricaturista é a dedada de um instante: ali a arrogância da intemporalidade, aqui a humildade de um instantâneo. Está cego, acho que os leitores começaram a notar os sinais, pela incerteza do traço, o tremer-lhe a mão na assinatura. Se há Deus, é para que não veja mais. A Natureza também é assim, poupa-nos ao limite da dor.