sexta-feira, 11 de setembro de 2009
O Camarareiro, de Ronald Harwood
Um actor que regressa representa um actor que termina. Ruy de Carvalho é Sir Donald Wolfit. A história do intérprete e a da personagem são uma e a mesma, a da agonia do desejo, a decadência do sucesso, o dever esgotante, a biografia da grandeza efémera e da solitária incompreensão.
Encenada por João Mota, a peça surge nos bastidores de uma representação do Rei Lear de William Shakespeare, em tempos de Blitz, em Londres, as bombas da Luftwaffe a serem a possível noite de tempestade. Pela 227ª vez o actor tem de se soerguer do desespero, do cansaço, da inquietação, encontrar em si forças e nos outros amparo para que o pano suba e as ribaltas o projectem à noite das estrelas. Restam-lhe sobejos, remedeios de gente, a piedade cruel feita companheira. E o Camareiro, fiel na humilhação, secreto nos sentimentos, nele a servidão é a única forma de expressar amor.
A cena de tempestade é na concepção do genial dramaturgo inglês o momento da inquietação e da loucura, da raiva e da revolta, os elementos e a alma em fúria.Wolfit pela última vez vocifera contra o que é vida e a existência: «Rumble thy bellyful! Spit, fire! spout, rain! Nor rain, wind, thunder, fire, are my daughters:I tax not you, you elements, with unkindness;I never gave you kingdom, call'd you children...»
Fui ao Dona Maria, aplaudir de pé. John Runciman pintou-a a essa cena do ódio. É esta que os vossos olhos contemplam, o humano rei sumido ante a magnitude imperial da Natureza tresloucada. À saída um amigo meu perguntou-me se tinha gostado do Virgílio Castelo. Disse sim. Era ele o camareiro.