sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Um gesto inacabado de Deus

 


Biografando a Mãe, Mónica Baldaque biografa-se também, tornando indissociável a sua pessoa daquela que lhe deu o ser; em simbiose natural, Alberto Luís surge-nos, como elo inextricável dessa vida em comum, vida sua pautada pela dedicação à escrita de Agustina, consumida pela profissão de advogado, enriquecida pela arte de desenhar, desenhos de que o livro nos oferece exuberantes exemplos, pena a dimensão das imagens, nisso incluindo as fotografias, não transmitir, quanto devia, o que se sente quando se vê.

Escrita densa de sentimentos, perpassam por ela personagens que julgaríamos inesperados, momentos em que o suposto conservadorismo da autora de Sibila se nos revela em surpreendente inconformismo e mais surpreendente ainda rebeldia de espírito, em humor contido, em cáustico reparo.

Livro de memórias, de lugares, de habitações, polvilhado com pessoas também, nesta parte pode ser lido pelas que lá não estão, até as da vida da própria autora; relato de sociabilidade, é igualmente espaço em que a reclusão se expressa, nota-se pudor no que em outra mão surgiria ostensivo.

Há, eu sei, uma biografia de Agustina, que se tornou controversa. escrita por Isabel Rio Novo, sob o título O Poço e a Estrada. Mas o breve livro que Mónica Baldaque acaba de nos deixar, editado pela Relógio de Água, há um outro mundo em que aos pormenores do quotidiano se sobrepõem os sentimentos familiares e as sensações íntimas, os breves instantes que são um mundo a saber.

Quando, tempos de aventura, editei em álbum o inédito Colar de Flores Bravias, que Agustina escrevera, memória de sua infância, e Mónica Baldaque amorosamente  ilustrou, pressenti então o que aqui leio. O livro ficou-se pelo tempo do esquecimento, a editora sumiu-se como um intervalo do que já vivi.

Livro singelo, afinal, como se caderno diário, tornando em escrita o que está num carta de sua Mãe: «Não estilizemos demasiado o que sentimos porque acabaríamos afinal por fazer da melancolia uma vaidade mais». É esta a sua beleza sem ênfase.