Leio Panait Istratit. Recupero, com ele, o que tenho perdido por desatenção quanto à Literatura romena. Regressam vestígios de memória e surgem quantos, oriundos daquele país e acolhidos por Portugal, durante a 2ª Guerra, à sombra da paz deixaram notável contributo quanto à nossa Literatura portuguesa, como Leonor Buescu, no que se refere à escrita medieval e seu marido, Victor Buescu. E o apreço dos nossos estudiosos como João Bigotte Chorão por aquela escrita.
E o papel determinante de uma figura notável, que desempenhou em Portugal, durante a 2ª Guerra, funções oficiais de adido cultural do seu País, Mircea Eliade, a quem se devem estudos sobre Camões e Eça de Queiroz.
Animado por este encontro, reagrupo na estante, para leitura futura, o que tenho em livros de Virgil Gheorghiu, de que li muito pouco e esqueci muito do que li, e dou conta que, vergonhosamente, só tenho um livro de Eugène Ionesco.
Vou em busca da poesia de Mihail Eminescu e deparo-me com uma edição bilingue, co-traduzido por Carlos Queiroz, esse precisamente, o poeta da Ode aos Vindouros, sobrinho de Ofélia Queiroz, com quem quase privei, como se viva fosse ainda, ao transcrever o manuscrito do romance de António Quadros que sexta-feira entrou na tipografia. Mundo circular este.
Cruzo-me, em outra estante, aqui por trás da secretária em que escrevo, com um outro poeta, Lucian Blaga, filósofo e escritor, que foi diplomata em Lisboa entre 1938 e 1939, e de quem foi pulicada, em edição revista, uma antologia poética, prefaciada por José Augusto Seabra.
E um pouco ao lado, o jornal de prisão de Corneliu Zelea Codreanu, edição francesa, infelizmente muito descuidada, em que tentei entender a mística espiritual da Guarda de Ferro, esse momento trágico da História romena. E Emil Cioran, que comecei com uma biografia e hoje vejo ter uma edição de tal modo volumosa do que talvez sejam as obras completas, que duvido consiga vir a lê-la.
Leio, dizia, Panait Istrati num breve conto, Floárea, em edição da Inquérito, publicado em 1940, o papel amarelecido, algumas folhas a rasgarem-se. Mas leio, surpreendido pelo estilo, esse modo de relatar o insólito pela forma inesperada.
E quiseram as circunstâncias que encontrasse, numa antologia editada pela Portugália, sem data, mas publicada em primeira edição, a que tenho, em 1946, um outro conto seu, O Baragan.
Breves ambos, este ainda mais, mas notáveis de densidade emotiva, de invulgaridade.
Li-os e cotejo-os agora com o espesso volume das suas obras, editadas para já em um primeiro volume, no ano de 2006. Noto agora imperfeições na tradução mas nada disso apaga o vinco fundo na sensibilidade que me deixou o que li.
Floárea é o texto inicial de uma obra sua, publicada em 1925, ano em que Istrati regressa à Roménia, seu País natal, depois de dez anos de ausência. É a apresentação dos haïdoucs, os lendários revoltados contra a ocupação turca, refugiados na floresta. O Baragan é um fragmento do romance que em francês, língua na qual Istrati escreveu, Les Chardons du Baragan [os cardos do Baragan], publicado originalmente em 1928.
O que dizer que traga a quem lê o sentimento que ficou do que li?
Floárea Codrilor, mulher capitã dos häidoucs lança a sua história. «Filha das ervas», cuja «primeira paixão, ao abrir para a vida meus olhos, foi correr voluptuosamente de peito contra o vento», lado a lado com o garoto da aldeia, Groza, hoje «o terror entre os cobardes que fabricam leis», o que «esfolou vivo um homem da sua quadrilha», um traidor, Groza häidouc que havia sonhado sê-lo desde a infância.
História de liberdade porque «certa gente gosta da flauta, como gosta do cão, para o trazer de coleira, como gosta do rouxinol, para o meter na gaiola, da flor para a arrancar do sítio onde Deus a fez nascer, e da liberdade para a mudar em escravidão». História de revolta contra os «senhores da abundância», quais ratos, contra a mesquinhez e a monotonia, «a hora estúpida aos domingos», contra «aqueles bons cristãos que abrandavam os mandamentos da lei de Deus possuindo e gozando, eles sós, a terra toda».
História delicada de enamoramento, de alma sensível e dorida, porque «a resistência sincera duma mulher não tem poder sobre os desejos dum homem vulgar. Ele não sabe onde acaba o embaraço de uma mulhezita e onde começa o desgosto profundo da feminina dignidade. Tudo é permitido à besta que possui a terra».
Já o Baragan é uma estepe no sudoeste da Roménia, onde a narrativa surge no dia de São Panteleimão, quando vem o vento moscal e a cegonha parte.
Sente-se pela escrita mais do que as pessoas, a própria terra e com ela a Natureza, local desesperado, o Baragan solitário, onde «de um poço a outro há tempo para morrer de sede», e ali o homem pastor, e «sonho, pensamento, ascensão e barriga vazia: eis o que dá gravidade ao homem nascido no Baragan».
É neste cenário que surgem, figura central do relato, os cardos, terra onde não há senão cardos, «semente de má raça», tudo espinho e sementes, inútil, mas «quanto mais inútil, melhor sabe defender-se», e resiste, por isso, os cardos tornam-se maus, vergam-se, a haste curta, o vento galopando «sobre o império do cardo» e, enfim, quebra-se o caule, e ei-los, que «vêm sabe Deus donde e vão Deus sabe para onde».
Panait Istrati. Dele se disse que era chama, o coração ardido pelo incêndio de todas as heresias.