Tinha concluído a leitura há umas duas semanas, lidas as suas 313 páginas muito devagar, tal o peso que um livro destes deixa na alma. E retardei vir aqui falar dele. Há mais situações assim, por idênticas razões: o mutismo que nasce ante o maravilhoso que se contempla.
O autor, romeno, é ou talvez tenha sido autor controverso, por razões políticas, o que em Arte tem valia duvidosa, mesmo quando se trata de um testemunho de vida, como é este, sobretudo porque a vida é contada de um ponto de vista da angústia teológica vivida sobre o esmagamento do seu povo.
Constantin Virgil Gheorghiu nasceu em 1916 em Valea lui Alb (Vulturesti), na Roménia., em plena primeira guerra mundial, a ter ouvido, como primeiras palavras na Terra «palavras de guerra. De miséria. De morte. De luto, De derrota. Ocupação. Órfãos. Viúvas». as marcas dessa sofrer ficaram nas páginas dos muitos livros que escreveu.
Desempenharia funções diplomáticas entre 1942-1943 no estrangeiro. Sujeito a cruel destino, fruto das vicissitudes do seu país, aliado do Eixo e depois dos aliados, dominado, enfim pelos soviéticos, procuraria refúgio em França em 1948. Na sequência de estudos filosóficos e teológicos em Heidelberg, tomaria ordens religiosas. Faleceu em Paris em 1992.
O livro é o relato da angústia pessoal da personagem em que se revê o autor, a sua génese, o seu propósito: surge porquanto, antes dos sete anos, Virgil descobre que não há no cristianismo ortodoxo, religião que é a dos seus maiores, nenhum santo com esse nome e, por isso, fica privado da festa onomástica, que é, para os os ortodoxos, o dia de festividade e não, como quanto aos demais, o do nascimento biológico, este impuro porque comum aos demais seres viventes; torna-se missão, a de, em substituição a essa ausência de nome santificado, tornar-se, ele próprio, santo, inaugurando assim, uma linhagem de que outros se reclamem.
Ora, o eixo da narrativa decorre da interiorização de que só alcança a santidade quem for capaz da maior provação, a de amar os próprios inimigos, e é essa a gesta que está presente em toda a narrativa deste livro, a qual é, simultaneamente, a do martirizado povo romeno, relato de um viver interiorizados os fundamentos dogmáticos e simbólicos da transcendência e seus ritos.
Um livro assim não se resume, não se relata, sente-se ao lê-lo. E, infelizmente, está esgotado. O meu exemplar, publicou-o a Bertrand em 1968, traduzido do francês por António Barahona da Fonseca.
Que posso partilhar do que li, sem degradar a delicadeza da escrita e a espiritualidade do contexto, quanto ao fundo sentimento que as suas páginas suscitam?
Através dele surgem, relatados no seu rosário de horrores, excertos da história de sofrimento e sujeição daquela região, a vertente oriental dos Cárpatos, afinal um excerto da biografia do seu autor - e biográficas são tantas outras obras suas - inserida numa sempre recorrente problemática teológica, como unindo o Céu e a Terra.
Acompanhando-lhe os passos, nessa ânsia de santificação, que, no final, fica em aberto como destino a cumprir-se, o leitor encontra uma sabedoria comovente e momentos surpreendentes porque de inesperada simbologia, a religião sempre presente. Para os entender, sentindo-os intimamente, é preciso, porém, que se tenha do fenómeno religioso uma noção densamente espiritualizada, tão fora da superficialidade paganizada que hoje se tornou comum em tantas congregações, incluindo as filosóficas.
Ficam apontamentos, pinceladas como num óleo que se torne imagem impressionista que restitua a sensação de ver.
É a festa do início da escrita e da leitura, ritualizada e assim significativa, porque «as crianças que, caligrafando, desenhando as letras, imitam simbolicamente, ao escrever, os mistérios da Santíssima Trindade. Ou seja: a Encarnação do Verbo, a Morte e a Ressureição», tudo isso porque «toda a caligrafia é uma teologia, um conhecimento de Deus».
É uma perturbadora ideia de salvação, que irmana santos e pecadores, nenhum sem a garantia de estar livre de culpa, pois «todos, sem excepção, são culpados e condenáveis perante Deus», já que «nenhum homem poderá ser resgatado sem a misericórdia de Deus e a intercessão dos santos e dos anjos».
É uma igreja em que, sujeita a Roménia ao domínio soviético, o metropolita se confundia enquanto funcionário do partido comunista, mas em que se mantinha a evangelização por padres de aleia, «padres proletários. Padres-cavalos. Que serviam o Senhor com os seus pés percorrendo a montanha e levando a palavra divina, os sacramentos e a oração», porque «os padres eram animais de carga. Os cavalos de Cristo».
É uma celebração litúrgica em cuja assembleia «estão presentes aqueles que nos precederam e que hoje estão mortos, os que vivem e os que hão-de nascer. Porque na igreja, o tempo não existe durante a liturgia», o ofício em que se reza a «oração Senhorial», o nome do Padre Nosso «a mesma oração para todos os cristãos da Terra - sejam eles católicos, ortodoxos, protestantes, anglicanos».
É a exaltação da fé, a que «não se aprende lendo livros de teologia», como a sede que não se mata lendo tratados sobre hidráulica.
É, digo enfim, pois não é possível progredir aqui neste brevíssimo apontamento, o sentido das raízes, descendentes os romenos da Roma de que a loba amamentando Rómulo e Remo é efígie e motivo do digno e nostálgico orgulho de serem latinos, morto o Império Romano do Oriente em 1453, com a invasão turca.
Um livro destes guarda-se para que se releia. Depois de o ler não se fica o mesmo, ainda que não se tenha encontrado um outro ser.