quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007
A biblioteca itinerante n.º 17
Ao ter lido, durante este fim de tarde, mais umas folhas da biografia do Alexandre O'Neill, fiquei a saber que, em certo momento de aperto financeiro, ele foi empregado em uma das carrinhas das Bibliotecas Itinerantes da Fundação Gulbenkian, no caso naquela que fazia o percurso pela zona de Sacavém e Loures. O Herberto Helder também por ali andou, ganhando para poder escrever.
Lembrei-me então da minha adolescência em Abravezes, perto de Viseu. Morava ao lado do cemitério. Entre esse lugar de plantação de falecidos e a «tasca do Zé da Bucha» ficava a igreja e o seu invisível cura; mais abaixo a mercearia da Cilinha, que tinha um cão paralítico por ter sido atropelado! De quando em vez, quebrando a monotonia do lugar, lá vinha a carrinha da Fundação, atulhada com livros, para empréstimo domiciliário. Li, com catroze anos, as coisas mais inacreditáveis para a minha idade, como um livro do Husserl de que compreendi nada e de que nem o nome me ficou. Terá sido então que me caíu nas mãos o «Rumor Branco» do Almeida Faria, que me transtornou a cabeça em matéria de literatura. Esta madrugada, em vez de estar a dormir, ou agarrado à minha profissão, estou aqui a lembrar-me disto, como se numa noctívaga fenomenologia do espírito.