Convidou-me para lhe apresentar o livro. Daqui a pouco fá-lo-ei. Escrevi este texto, para servir como cábula do que direi.
Não é um crime pelo qual alguém se aproprie, embora possa haver apropriação; é um crime pelo qual alguém causa um dano, ao enganado ou a outro. Nisso, é parte deste mundo de lástimas em que nas Faculdades se ensina em volta do «bem jurídico» e nos tribunais se aturam os «males jurídicos», como ironizava ontem um amigo meu, ácido porque esperto, risonho porque irónico.
Mas o que torna a burla um crime atraente é, sobretudo, o facto de ser o crime das pessoas inteligentes. Diz o Código Penal de hoje que a burla concretiza-se através de um processo enganatório astucioso, como o Código Penal de 1886 dizia que se materializava pelo artifício fraudulento.
Ao contrário do ladrão, que pratica o furto apoderando-se de uma coisa, apreendendo-a, subtraindo-a, tendo que se mover, vulgar criatura, no mundo das coisas físicas e materiais, diversamente do que abusa da confiança, que entra na galeria imoral dos traidores, defraudando quem nele confiou, o burlão move-se no plano superior das ideias, usa da argúcia argumentativa, manipula o enredo discursivo, é mestre na arte da encenação, o engano é para ele um meio, o erro da sua vitima a vitória da sua inteligência.
No plano dos afectos, ele, o agente do crime é um amoroso, cortejador, longe da rudeza do gatuno, diferente da vilania do usurário, da malvadez congénita do extorsionário.
O burlão é um sedutor, perante o qual a vítima sente-se, consumado o acto, um idiota, um despeitado, ciumento face à urdidura a que se rendeu, enraivecido pelo desejo da vingança que aplaque a imagem de miséria intelectual com que fica de si mesmo.
Eis as palavras-chave em relação à burla: sedução e dano. Eis o caso Alves Reis.
A história é simples, na sua aparência: a reputada firma britânica Waterlow & Sons, tipografia especial, porque imprimia o mais valioso dos impressos, o papel-moeda, recebeu uma encomenda do Governo de Portugal, imprimir notas de quinhentos escudos, com a efígie Vasco da Gama.
Só que desta feita a encomenda tinha o seu «quê»: tratava-se de uma emissão duplicada, ou seja, com a mesma série numérica de uma emissão já em circulação.
Por ser assim, a encomenda era «secreta».
Para que Sir Wlilliam Alfred Waterlow, velho bulldog da praça financeira londrina, não desconfiasse, as notas em causa, a serem lançadas em circulação, sê-lo-iam no espaço restrito de Angola, pelo que, ao chegarem a Lisboa, ser-lhes-ia aposta a sobrecarga a óleo com o nome desta colónia do Ultramar.
Eis uma história já por si extraordinária: Londres honrou a encomenda, tendo tratado do negócio confidencial directamente com Artur Virgílio Alves Reis, portador de dois contratos forjados pelos quais era autorizado pelo Banco de Portugal a tratar do assunto com a casa impressora inglesa [continua aqui]