quarta-feira, 23 de julho de 2008
O relógio sem ponteiros
Impossível mais, mas avancei uma folhas nesse notável livro do Vergílio Ferreira que se chama «Em nome da terra». É uma narrativa dorida, feita de compaixão humana, escrita como se arrancada do próprio corpo em decomposição, um hino à vida com a morte à vista.
A personagem foi juiz e hoje, uma perna amputada, fala, como se lhe escrevesse, à grande paixão a que coincidiu, no extraordinário improvável, com a que foi a sua mulher.
Mónica: «tem-se piedade do doente que não abusa de um prazo razoável para o não ser, não de um doente sem prazo nenhum. (...) A piedade é um prazer de quem a tem mas só se a coisa se resolve depressa. Mas como ter piedade por um doente que se não despacha e abusa imenso tempo até se decidir a morrer?»
Eu sei que é uma frase risonha, rude com tanta verdade, pensada e escrita como se num lar de idosos ao abandono, cheios do «ranço da idade», pessoas a viver «a última probabilidade de terem um corpo e aproveitam-na», sem saberem o que é a eternidade esse «relógio sem ponteiros».
Vergílio Ferreira foi professor em Faro em 1942. No Largo onde morou será um dia o Tribunal da Relação.