Agustina Bessa-Luís escreveu-o, na forma de folhetim no já ido jornal
O Independente, em 54 episódios, entre Maio de 2001 e Maio de 2002. Surgiu depois editado em livro, com capa de Vasco Rosa.
Má revisão desfeou a paginação da obra sobretudo nas hifenizações. Mas que passe isso adiante, minudência oficinal em território de sublime.
Ser folhetim deu oportunidade ao mais característico estilo de Agustina: a história é contada com repetições, nem sempre idênticas na menção, meio de lembrar ao leitor semanário o que pode ter esquecido com a passagem do tempo; e da narrativa sobressaem os aforismos. O que poderia passar por má técnica ganha aqui a força arrebatadora de uma reiteração de tema que prende o leitor com um caminho pelo fio da história face ao qual tudo são nuvens de divagação e Arte em suas flores.
São, eu sei, os aforismos o mais controverso dessa forma de contar para aqueles a quem incomoda seguramente a profunda sabedoria que deles dimana, sabedoria de conhecimento pela instrução e pela cultura, sabedoria pela experiência de vida, sabedoria sobretudo pela profundíssima sensibilidade à alma humana. Seguramente tomaram-no tantos cujo erguer do lugar comum é voo breve e, sobretudo, rasteiro.
De tudo isso, a história é quanto menos importa: no caso a de Maria Adelaide Coelho, filha de Eduardo Coelho, fundador do Diário de Notícias, que o marido, Alfredo da Cunha, então director do periódico da Avenida da Liberdade, fez internar em manicómio, por razão ou ganância fosse, na peugada de uma história de paixão entre ela e seu motorista.
Para esta narrativa Agustina convoca, como em contraponto, o que se escreveu então sobre o caso, a começar pela personagem, facto que arrastou a opinião, e situa-a no advento e morte do sidonismo, o estretor da República, as primeiras pedras do Estado Novo a serem forjadas; e imiscui-se mesmo em diálogo com as suas fontes, tornando vivo, pois que contemporâneo, o relato que recupera à memória pública.
História de alienistas e tribunais, vêm com ela e suas pulsões o que para ela necessariamente trouxe a psicanálise e seu foco na histeria e, em permanente registo a dúvida sobre a sanidade dos seus principais intervenientes; e, sobretudo, esse desfolhar de intimidades erógenas a que a autora se não furta e a torna, a quem a não conheça, surpreendente. Agustina nestes domínios, engana pela aparência.
Talvez seja hoje impossível encontrar o livro ou, pelo menos, muito difícil: o tempo de sobrevivência da escrita no mundo em que vivemos, não chega a criar lembrança no tempo em que se escreveu, quanto mais dezassete anos depois.
Escrevo este apontamento para que nem tudo se perca, pois nem tudo há neste ano da morte da sua autora, e gostaria de o terminar com uma de tantas frases que ficaram a germinar, sublinhadas que foram para que um dia depois as reencontre, assim releeia, a ter ainda tempo para tal.
Tiro à sorte, abrindo o livro numa página qualquer, ao acaso. Fala na página par de Sidónio Pais para quem «a morte era-lhe necessária depois de tanta grandeza» e volta na ímpar seguinte a Maria Adelaide, que «acabava sempre com aquele soluço na garganta, um desejo de amor que a fazia pálida, distraída e cansada».
Pudesse, copiava-os todos, magníficos que são, maravilhosos de espanto.