quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Mulher e Mito


Cover of The Penelopiad, by Margaret Atwood

Terminei há algumas semanas o breve livro «The Penelopiad», de Margaret Atwood. Li-o na versão original, publicada pela editora escocesa Canongate.

Em Portugal, após uma primeira tradução publicada em 2006 pela Teorema, a obra encontra agora guarida no catálogo da Elsinore, chancela da 20|20 Editora, sob o título «A Odisseia de Penélope».

Numa narrativa que vira do avesso o clássico e o mítico – sem, por isso, se abster de uma ou outra vénia a certas convenções do género, como o uso do coro – Margaret Atwood propõe-nos uma releitura da «Odisseia» com olhos femininos e actuais.

É Penélope, falecida há muito séculos, quem nos relata os acontecimentos, ou melhor, a sua versão dos acontecimentos. A narrativa é pontuada por outras intervenções femininas marcantes, como as fugazes aparições de Helena e, mais impressivamente, os monólogos disruptivos das doze servas enforcadas.

A linguagem engendrada por Atwood para este relato sente-se, na essência, como contemporânea. Um pouco, na opinião desta leitora, como aquele exercício em voga de colorir fotografias do passado para demostrar o quanto é aparência o que nos separa dos que viveram noutras épocas.

Assim, no tempo que Penélope recorda, como hoje, os mesmos desejos e ambições, os mesmos jogos de poder, os mesmos enganos e desenganos, as mesmas pequenezes, o mesmo pragmatismo.

Por toda a obra passa, sobretudo, a noção de que a única verdade possível é a dos ângulos sob os quais essa verdade pode ser olhada. E a consciência de que o relato histórico que vinga diz mais sobre o equilíbrio de forças, desde logo sociais, de determinada época do que sobre aquilo que ela foi em absoluto.

Nesse sentido, o relato de Penélope (ou de Atwood, como se preferir) coloca em evidência uma questão sobre a qual tenho reflectido ultimamente e que é a da natureza aberrante do tradicional narrador literário omnisciente e omnipresente. Aberrante porque exclusivo da literatura. Um daqueles momentos em que a arte rompe os seus vínculos com a vida para gerar algo inteiramente seu, porventura porque a complexidade do real, com a sua verdade irremediavelmente fragmentada, nos faça exigir ao imaginado certos refúgios de certeza.

De forma evidente, «A Odisseia de Penélope» reflecte também sobre a condição da mulher e, dentro dela, sobre a de certas mulheres em particular. São questões centrais nas obras de Atwood, a julgar pelo que li nalguns textos de enquadramento, pois que, lamentavelmente, das próprias obras praticamente tudo me falta ler. Mas neste ponto não me alongarei, para não estragar o pleno efeito da história sobre futuros leitores.

Sinto ainda a necessidade de referir que li este livro antes de ler a original «Odisseia», de Homero. O plano era outro, mas a minha insistência em começar pela «Ilíada» e a minha impaciência em ler o livro de Atwood assim o determinaram.

Penso que não é impossível apreciar a obra deste modo, pressupostas uma breve pesquisa prévia e a noção geral que a cultura popular nos deu já das linhas de força do texto clássico de Homero.