domingo, 28 de abril de 2024

Insónia e outros contos


 Tinha o hábito de deixar aqui  umas notas logo a seguir a ter lido, algumas vezes assim iniciada a leitura e formada uma ideia do que iria ler.

Razões várias, se não me impediram a leitura, fizeram diferir a vinda a este espaço contar como tinha sido o acto de ler. Não que não o tenha tentado, mas a escrita surgia-me sem nexo, pobre, a minimizar o impacto que a obra lida tivera na minha sensibilidade. Não sendo crítico literário, é essa, aliás, a essência das minhas anotações.

Para não desconsiderar a expectativa de que um dia voltaria, fui juntando o já lido. Hoje regresso com a colectânea de contos intitulada Insónia, livro da autoria do brasileiro sertanejo Graciliano Ramos, que a já extinta Europa-América editou em 1962 na sua colecção Três Abelhas

O original foi publicado em 1947, sendo o seu sexto livro do autor de Vidas Secas e Memórias do Cárcere, que a Editorial Caminho publicou entre nós.

Ao meu exemplar, comprado em alfarrabista, um dos antecedentes que o teve, arrancou-lhe a folha de guarda, talvez a do seu nome, porventura a da dedicatória. Composto com descuido tipográfico, nas páginas 138 e 139, a guilhotina, que fez as aparas dos cadernos, decepou o primeiro parágrafo. Que importa se o pude ler e adivinhar mesmo o excerto em falta?

Há na narrativa a secura nordestina tipicamente graciliana, a concisão expressiva que caracteriza em geral a sua obra, no caso destas histórias uma crueza ao limite mesmo da crueldade, danação de corpos corrompidos, almas perturbadas, existências inutilizadas.

Ocorre entre os treze contos, não direi uma predominância, mas numa evidente dominância, logo na abertura, do tema hospitalar, com ele o ambiente espectral do sofrimento, abandono e morte, experienciado entre o real e o onírico, «pedaços de algodão e gaze amarelos de pus enchem o balde [...] o suor corre-me entre as costelas magras como as de um cachorro esfomeado».

Momento agónicos surgem constantemente, como este entre o fibrilhante e o desistente: «Antes de morrer, agitei-me como doido, corri como doido, enorme ansiedade me consumiu. Agora estou imóvel e tranquilo», a terminar em silêncio, silêncio que é «um burburinho confuso, um sopro monótono».

A tonalidade do modo de contar tem recônditos existencialistas, muito à margem do que entre nós se convencionou designar como neorrealismo, mas que dá densidade humana ao relato.

Escritor socialmente comprometido, estão presentes na escrita de Graciliano, em contexto permanente, os deserdados pela vida, os que vivem na margem, e aqui a «enfermaria dos indigentes», as personagens residuais, como «o hóspede do quarto 9», que «tem a amarelidão e a tristeza do homem de pensamento», «gordura fria de capado», invulgares criaturas como «um velho bicudo e um rapaz zarolho» em reunião com o director de uma abandonada revista, «uma cara que, vista de perfil, semelhava uma faca cheia de dentes»,  a testemunha na antecâmara do tribunal, «sala suja de escarro e lixo», o advogado «animal feroz, bicho primitivo, qualquer coisa semelhante a um caranguejo monstruoso», ele a testemunhar e «falava como toda a gente», mas «o juiz lhe traduzia a prosa vulgar numa linguagem arcaica, pomposa e errada». 

Há também sensualidade, mas em seres banais, mesmo quando invulgares, com D. Zulmira, mulher de marido infiel e mãe de filho a rondar o hermafrodita, «praticando leviandades» para provocar o esposo, «fantasiando leviandades», «cultivando aquela dor que se tinha suavizado e era quase um prazer», abandonando-se em «uma estranha languidez» e enfim pecou, «pecou por pensamento, pecou em demasia por pensamento».

Surpreende-se, entre as histórias deste breve compêndio, momentos que poderiam ter sido os da vida do seu autor, como o encontro humilhante com o deputado governista, «político influente [...] máquina bem construída, nenhuma peça prejudicava a função das outras», ou a anti-história transmutada para D. Aurora, cercada pelo núcleo integralista e suas manifestações a que aderira, fiel ao Sigma, povoado o seu espírito pela sublevação, a de 1930, a onda vermelha a espraiar-se, ela a desejar «uma nova humanidade», mas agora o pavor de «quando a gangorra virasse e a gente de esquerda serrasse em cima», D. Aurora Gomes, filha do major Carmo Gome, tradicionalista, que «confiava na repressão, mas por fim o número de acusados chegara a inquietá-la», «uma angústia apertou-lhe novamente o coração e outras vísceras».

Lerá este breve livro necessariamente em modo lento aquele que quiser tomar o gosto ao cuidado com cada palavra, ao esmero de tantas das suas frases: «o escritor decadente interpretou isso mal, suspendeu a leitura e mandou-lhe um fúnebre sorriso de agradecimento», ou «imaginou-a mexendo-se no papel  com segurança, compondo-se uma prosa gorda, curta e branca, prosa que lhe dava sempre a ideia de toucinho cru», «o relógio tem aquele pigarro de tabagista velho, parece que a corda se desconchavou e a máquina decrépita vai descansar».

Num tempo de escrita corriqueira, frásica apenas, eis um ímpar exemplo de Literatura, grandiosa.