Imagine-se que se compra um livro num alfarrabista. Um livro pequeno, brochado, mas ainda com os fólios cosidos, que pertenceu a uma qualquer biblioteca, talvez particular, de quem o numerou com uma vinheta, daquelas que se colavam com goma arábica. Um livro impresso - e cito tal e qual está no seu frontespício - na «Typographia Editora José Bastos», que era no número 100 da Rua da Alegria em Lisboa.
Um livro que saiu sem data, mas que tem um prefácio datado de 17 de Outubro de 1915. Um livro que se chama À Sombra e tem como subtítulo e de novo a grafia da época «versos colligidos em 7 mezes de preso político no Limoeiro».
Imagine-se ainda um livro que tem aposto no verso da capa um ex-libris, que é coisa do tempo em que a propriedade dos livros se assinalava assim, um ex-libris que tem o logotipo de uma caravela, ornado com uma pedra de armas cujo lema é «tole lege». Um ex-libris que nos diz que pertenceu ao contra-almirante João Correia Pereira. Um livro autografado pelo autor.
Imaginem-me agora à procura de saber quem é o autor desse livro e descobrir que «natural de Portimão. A profissão de empregado comercial era complementada com a prática da escrita, que cedo desenvolveu. Foi colaborador de vários jornais e revistas, fundador e director da revista "O Algarve". «À Sombra» foi o seu único contributo literário. A nível político, continuava a defender os ideais monárquicos, o que o levou a ser perseguido e preso no início do actual regime. Membro do Partido Regenerador. Fazia parte do conjunto de figuras políticas notáveis de Portimão na segunda metade do século XIX».
Só mais um esforço. Imaginem-me, só para terminarmos, à procura de quem foi o almirante João Correia Pereira e descobrir que publicou um estudo chamado A Marinha de Guerra e o Império na Revista do Ultramar, em 1948.
Voltemos à realidade, deixando a imaginação. É este o prazer dos livros, a teia que se urde em torno deles, fios de vida que se espalham entre as paredes da biblioteca, pelos quais passeia a aranha da fantasia.
Ah! O autor chama-se «Jeronymo Negrão Buisel». E os versos, coitadinhos dos versos que são tristes suspiros de uma alma agrilhoada. Cito um, por amigável compaixão: «Amas a Nosso Senhor/que morreu por toda a gente,/e a mim não me tens amor, que morro por ti somente». Chama-se Ciúme.
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