domingo, 31 de janeiro de 2010

Borges Sentimental

Encerrado na biblioteca de seu pai, da qual julga nunca mais ter saído, Jorge Luís Borges ouve a explicação do paradoxo de Zenão de Eleia, que nasceu 495 anos antes de Cristo de Nazaré. Para auxiliar a compreensão, o pai utiliza um tabuleiro de xadrez.
O paradoxo conta-se através da história de Aquiles, o mais rápido corredor da antiga Grécia de então, e da tartaruga: por mais que corra, partindo ambos do mesmo ponto, Aquiles jamais alcançará a tartaruga, porquanto no momento em que estiver mais perto dela, já ela terá avançado um pouco mais, pois «para completar os 100 metros, ele terá que completar a metade destes (50 metros) e para alcançar os 50 metros deve alcançar a metade destes também, isso infinitamente».
Em termos numéricos é assim: «supondo-se que a distância de A para B é 1, a distância que Aquiles deve percorrer é a série 1/2 + 1/4 + 1/8 + 1/16 + 1/32 + 1/64 + 1/128...» e assim sucessivamente e neste advérbio está a chave do problema.
A gravidade do paradoxo de Zenão é a constatação de que, para alcançar a tartaruga, Zenão teria de percorrer todos os infinitos pontos até alcançar o último, pelo que a sua vitória seria a demonstração da absurda finitude do infinito.
Eis o ponto em que um homem se interroga sobre os limites da sua própria convicção: quanto mais certeza houver sobre o ponto em que se encontram cada um destes tresloucados corredores, mais é incerto o momento em que isso está a suceder.
Só o  tempo tornaria inescapável o espaço e, no entanto, há Deus e com ele a convicção de um infinito incontável. A degradação do número em relação à geometria tornou insondável o drama da incomensurabilidade. Neste contemporâneo mundo, digital e quantificável, o aviltamento do homem e o afundamento da sua História demonstram-se assim.
Eis na sua simplicidade a tragédia da existência. «Na circunferência do círculo o começo é o fim», disse Heráclito de Éfeso. Ao morrer, o humano julga-se, arrogante, excepção a essa reiniciação cósmica.
Escrevo tudo isto por ter começado a ler a extraordinária biografia sentimental que Solange Fernández-Ordóñez escreveu e a que chamou «O Olhar de Borges, uma biografia sentimental».
Uma sensação de urgência povoa os céus. Cada vez mais os números são mais pequenos, as fracções progressivamente maiores em grandeza, menores em extensão.
Envelhecer é isto, ter em cada instante mais idade e menos tempo, até ao inalcançável dia zero da existência, o único que restituiria a paz da imobilidade, a ausência do perpétuo movimento.

Uma escada para o céu

Eu sei que há a nossa Lello no Porto, e será que esta é a nossa Lello no Porto?

Livros de cabeceira

Já não é propriamente estender a mão para a mesinha ao lado em busca de um livro que nos leve ao adormecer ou nos retire do adormecimento. Aqui são eles que entre a vigília e a dormência ali estão presentes e acompanhantes, entre a inspiração e companhia.

Navegando em revoltas páginas

É um anúncio de uma livraria em Praga. Chama-se Anagram. Fica aqui. Vê-se, e um súbito arrebatamento de viajar possui-nos, despertando aquela parte de nós onde mora o desejo de ler, abraçando-nos nocturnamente. São noites de insónias fustigadas por ventos adversos, ficcionais, a vela grande da imaginação a todo o pano, os pés fincados no convés da leitura com pavor que ao voltar de uma folha se ouça em prosa marítima o grito de homem ao mar.

O estrondoso momento do «este é para ti!»

Entra-se numa livraria e estão ali todos aqueles livros a olharem para nós e nós a olharmos para eles, num volteio ora tímido ora atrevido, cortejando-nos e tocando-nos, divididos entre os desejos, as necessidades e os poucos meios, aquela dança de vontades e de recalcamentos, o tropel de sentimentos de entusiasmos e pena, a luxúria de ter e a fantasia de ver, e de repente percebemos que nos estão a oferecer um livro, comprado ali expressamente à boca da caixa, fumegante de amizade pura e gorgorejante de satisfação por dar. E não é um qualquer livro é o livro instantes antes visto e no mesmo momento deixado para trás, o livro que abandonáramos e ele a olhar para nós, com mágoa e muita pena a pedir leva-me contigo, não me deixes que me dói a solidão de ficar aqui, livro por ler, no meio de todos os outros. Pudesse eu trazia-os todos. Assim trouxeram-me com este para a luz solar de um dia que ameaçava chover.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Ne varietur

Não sei o que se passa. Muitos blogs sobre livros estão parados. Ou os seus autores não estão a ler ou não têm tempo ou paciência para escrever. Apesar de tudo o que possa parecer por causa dos que estão por aqui dia e noite, a blogoesfera não é a vida. Há, por isso, cadeiras vazias, computadores à espera. 
Também eu quase não tenho lido, nem tenho vindo aqui deixar nota alguma da escassa leitura. Mesmo em matéria de escrita ando absolutamente relapso, apesar de haver em alguns casos compromissos assumidos, a chamada escrita por obrigação.
Quanto à escrita voluntária, a que surge sem se pensar nisso porque se sentiu isso que é o seu tema ou o seu pretexto, também está parada.
Por vezes lê-se o livro que se iniciou para se tentar ganhar ânimo para reiniciar ou lembrar onde se interrompeu. Mas não é assim que as coisas acontecem sempre, pois há o errático, sem nexo, o inesperado e o disperso, mesmo quando com organização.
Por outro lado há quem escreva não sei quantas horas por dia, há quem escreva um romance por ano. São os chamados escritores.
Comigo os números são outros: é só uma vida por existência, um só e mesmo livro que vou revendo até que um dia sem ter dado conta se chegou ao ne varietur por já não ser possível emendar o que seja, o estilo, a semântica, a grafia, o tema da capa ou a vontade de o dedicar. Por isso evito reler para não ter de me reescrever.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

O salgado e o insosso


Se isto fosse um blog sobre crítica literária eu viveria o pesadelo da avaliação, a obrigação de ter um juízo público, pior o dever de estar actualizado. Leria ao ritmo acelerado do que se publica para poder opinar ao ritmo do que se julga ser lido.
Mas isto é um blog de um simples leitor. Ora um leitor, «este leitor que sou eu» como se exprimia ontem o Mário Zambujal, não tem de ter uma opinião, porque pode ler silenciosamente para si mesmo, não tem de estar actualizado, porque pode ler sobre o que já saíu das montras e as livrarias devolveram, bem pode poupar-se ao juízo público, porque a sua livraria é a única publicidade para os que lhe visitam a casa e não há essa categoria de seres humanos, pode inclusivamente dizer que não tem de falar sobre o que espera que os outros leiam ou recusem ler, porque não faz pedagogia, nem tem espírito de proselitismo, de catequese, de propaganda, nem ânimo de maledicência.
Blog de livros este procura ser amável talvez porque muitos que são da crítica literária tendem a ser ríspidos. Há em muitos dos chamados críticos aquela doença de alma do crítico gastronómico do filme Ratatouille. São temíveis quando imprevísiveis, respeitados pois que inesperados. Estão zangados com as letras e desconfiados dos que escrevem. Alguns tendem a ser polícias do gosto, outros defensores dos seus iguais. À força de serem procuradores da república ou advogados oficiosos inutilizam-se para serem juízes. Pior: incapacitam-se como escritores, a imaginação roída pela inveja, a criatividade minada pela desilusão.São pessoas tristes, que gostavam de ler por prazer, mas escrevem com agonia. À força de criticarem o gosto perdem o gosto de criticar. Quando não está salgada, a comida sabe-lhes a insosso.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Nome de rua




Há o hábito de dizer contemporâneo quando se quer dizer mais do que moderno. O vício vem da História que no meu tempo de liceu se classificava em Antiga, Moderna e Contemporânea e ainda havia a Pré-História, como se fosse uma espécie de pré-vida.
Vem isto a propósito do Ruben A. Gostaria de ser capaz de ler os volumes todos das Páginas, mas estou devorado pelas obrigações e diminuído pelas desilusões e é um livro que exige que se esteja livre e se possa ficar contente.
E vem a propósito porque o Ruben A. trouxe-nos uma modernidade na forma de escrever que os seus contemporâneos desconsideraram, recusando a mudança. Com ele a contemporaneidade foi antes da modernidade. Impossibilitado de escrever em progressão paralelizou com o romance Caranguejo. E disse: «tudo que é novo em Portugal precisa de ser arranjado, então as canalizações já são construídas entupidas de nascença».
Detestaram o modo de escrever e a tal ponto do desdém que a coisa meteu autoridades públicas, entidades oficiais e o próprio Presidente do Conselho de Ministros, António de Oliveira Salazar.
«Eu sou sempre mais moderno do que eu. Sinto-me aos saltos espirituais num rebolar peripatético. Quero escrever as aventuras do Cavaleiro de Barbela». E escreveu mesmo, em 1964 barrocamente desconcertante.
Correram-no então de lugares oficiais. Com o 25 de Abril fizeram-no Director-Geral e outras coisas públicas, com pouca convicção de ambos. Mas ele tinha escrito: «a vida pública ou semipública cria-me caspa. Para se realizar é preciso não participar dos serviços públicos ou municipalizados». Abriu excepção para si próprio, o que é uma forma triste de uma regra ser quebrada.
Ficou um extraordinário escritor, capaz de escrever às cores.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Era uma vez um homem...


Fonte do quadro «Excursão à Filosofia», de Edward Hopper [1959]: O silêncio dos livros.

domingo, 24 de janeiro de 2010

A sinuosa língua


É uma língua de humildes: «arranja-se uma mistazinha não se arranja, senhor João, se faz favor, obrigado, bem tostadinha?».
A forma reflexa «arranja-se» evita confrontar o interpelado com a obrigação de arranjar, com o dever de proceder ao acto, invectivá-lo a ter de fornecer, além disso amplia o universo dos que são destinatários da frase, que deixa de ser aquele, o senhor João, mas passam a ser todos os possíveis «senhor João» e mais aqueles que se devem substituir ao «senhor João», os subrogados de facto ao «senhor João», eu, tu, tutti quanti irmanados agora em torno da ideia da «tostazinha mista», do seu conceito, da necessidade, do preparo da dita, do arranjar modo de ela passar de ideia a realidade, do como é que se desenrasca isto.
O próprio verbo «arranjar», que é o motor da língua, é ambíguo, pois tanto dá para querer dizer «fornecer novo» como «reparar» o que já vem mal de origem, como se a frase admitisse um serviço de má qualidade, defeituoso, com erro, a carecer de oficina logo à saída so standI, uma tosta a precisar de arranjo.
Depois é o diminuitivo «mistazinha», para tornar insignificante o que se pede, no caso uma tosta que em vez de ser normal de tamanho pode ser pequenina, em vez de ter queijo e fiambre pode ter uma coisinha de um e um poucochinho de outro e, ao limite, nada de coisa alguma e um nadica de qualquer coisinha.
Enfim o «não», o «não se» no «não se arranja?», como se mesmo no acto de dar a ordem «arranja-se», e esta mesmo assim já interrogada dubitativamente, isso equivalesse a não a dar através do salvífico «não se arranja», como se o dizer, já gaguejado, «arranja-se» tivesse de se complementar inexoravelmente com o «não se arranja», que logo ali o anula, como se, em suma, o ser ordenante se transforme necessariamente primeiro em solicitante e no fim em coisa nenhuma, sumindo-se no universo gramatical.
Ah! E os agradecimentos antecipados, o «obrigado» antes de ter recebido e mesmo que se não receba, e o «se faz favor» mesmo quando o acto é devido, a cortesia aqui a ser o genuflexório do Direito das Obrigações, o ficar uma pessoa obrigada ante aquilo que devia ser, afinal, a obrigação do outro.
É uma língua de tiranos feitos obedientes, melífluos, raramente sinceros, a hipocrisia uma forma verbal transitiva de se ser um pouco menos do que velhaco e um pouco mais do que cínico.
Mas no fundo, nos meandros das suas línguas sinuosas, há um latejo que as calças arregaçadas verbais mal esconde, de desejo pela tostazinha, sobretudo se mista, quanto mais se possível e então se bem tostadinha!

O diabo à solta...


Em 1965 perguntaram-lhe «quanto ganhou com o seu primeiro livro?» e ele respondeu: «o primeiro livro que eu publiquei foi Páginas I, na Coimbra Editora, em 1949. Como aconteceu com os livros que publiquei a seguir, perdi sempre dinheiro. A minha obra literária não vive da pena, vive apenas. Dos volumes de Páginas I venderam-se uns trinta e poucos exemplares nos primeiros anos. O meu estilo, a maneira de contar, a expressão directa, um mundo novo que não se comprazia com as amenidades do clima, dificultaram sempre a procura das minhas obras. Tenho investido dinheiro em mim próprio numa obra de fomento».
Quatro anos depois perguntaram, agora com mais redondo no modo de perguntar «com base na sua experiência pessoal, qual a principal dificuldade que um escritor encontra na edição da sua obra?» e ele respondeu, mais anguloso ainda: «papel, tinta, tipos de composição, máquina de imprimir. Editar uma obra à própria custa é o diabo à solta em Moscavide»

sábado, 23 de janeiro de 2010

Trabalhos e Paixões


Dizem os editores que um livro muitas vezes se vende por causa do modo como começa. O leitor fica com o paladar no palato e depois quer devorá-lo todo. Senti isso há uns bons anos quando tive nas mãos o livro Trabalhos e Paixões de Benito Prada, do Assis Pacheco. É a história de um galego, a história carinhosa e raivosa de todos os galegos, dos aguadeiros, dos tasqueiros, dos carregadores e amoladores, dos que entraram na História Universal por se chamarem Francisco Franco (Bahamonde), de Ferrol, ou Fidel (Alejandro) Castro (Ruz), de Birán, ou coisa nenhuma com muitos «xes» e outras sibilantes em nomes de vogais fechadas de dentes cerrados. Uma história de gente sacrificada, vindos de uma terra que é com Portugal uma só Nação, plantados num país com uma língua cheia de diminuitivos familiares, gente de emigração.
Pois, voltando ao livro, ele abre assim: «Quando o Padeiro Velho de Casdemundo teve a certeza de que o Manolo Crabra lhe desfeiteara a irmã, em dois segundos decidiu tudo. Nessa mesma noite matou-o de emboscada, arrastou o cadáver para o palheiro e foi acender o forno com umas vides que comprara para as empanadas da festa de San Bartolomé. O irmão do meio encarregou-se de cortar a cabeça ao morto. O Padeiro Velho amanhou-o e depois chamuscou-o bem chamuscado. Às duas da manhã untou o Cabra de alto a baixo com o tempero, enfiando-lhe um espeto pelas nalgas. Às cinco estava assado».

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Ganhar a vida


Está aqui tudo, a ingenuidade, o sonho, a esperança, a resistência, a indiferença, a risonha e idiota inconsciência, a mão estendida. Estamos todos, a preto e branco, a raiva vermelha num país que se tornou cinzento. Luís Cília, aqui. Num restaurante em Paris, em 1966.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

O livro do silêncio


Um blog de um escritor é mais fácil de gerir porque o escritor escreve sobre si e sobre a sua obra. Anuncia projectos, enfrenta críticas, ensaia ideias. Ou diverte-se a passear sobre acontecimentos comuns da vida corrente ou excepcionalidades da vida decorrente.
Se for um blog aberto a comentários há o campo aberto para se conversar ou para se desconversar.
Ora este é um blog de um leitor que escreve. Quando não tem tempo para ler não escreve. Fica assim uns dias a ostensividade da omissão.
O silêncio é tão importante quanto a palavra. Tem a vantagem de permitir todas as interpretações possíveis. É o melhor livro que se pode escrever, por ser o mais fantástico que se pode ler, aquém mesmo do murmurar de palavras.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Os bichos em 16 mm



Estranha e incómoda situação, embaraço em confessá-la. Mas a imagem era muito má, o que é um crime para um filme sobre uma pintora, e o som era péssimo, o que é uma ofensa quando Sophia de Mello Breyner lê um poema seu, e uma agressão para os espectadores que querem entender quando as falas são em francês, e há muitas e longas e extensas e sem planos de corte.
E depois, tenho de admitir, há num qualquer labirinto de mim uma rejeição funda para com a pessoa do Arpad, na mesma medida em que há um denso apreço estético pela Vieira da Silva. Não sei. Talvez o olhar, a pose, o conjunto. Talvez o vê-lo velho numa altura em que se tem medo do que aí vem com a velhice.
E depois não encontro o livro que a Agustina escreveu sobre eles e temo tê-lo perdido, mas eu nunca perco livros, resta-me tê-lo emprestado.
Foi o documentário de José Álvaro Morais. Rodado num tempo em que as calças eram à boca de sino, como se nota no final quando a ficha técnica está ilustrada com fotogramas dos próprios. E os cabelos compridos. E as barbas em desalinho. Em 1977, com um apoio da Gulbenkian que meteu «intrigalhada e desavenças pelo meio».
João Bénard da Costa gostou muito do filme e ele era critério. Eu detestei-o muito e sou apenas espectador, aquele para quem os filmes são feitos.
Ficaram as cores, sobretudo o azul. E ficou-me a cena íntima em que, sentados lado a lado, na proximidade de um sofá, Maria e Helena e Arpad, o plano recortado de modo a que se pressente mais do que se vê, e se nota a sua mão acariciando o que se julga ser a mão do seu companheiro, cujo olhar extasiado raia o lúbrico objecto do prazer, e, afinal, é um gato, o bicho, que ela acaricia, meiga, doce, dedicada.
Ma femme chamada bicho, assim se chama o filme. Oitenta minutos de nervos. Agora que acabou, onde está o meu livro, em capa azul petróleo, editado pela Guimarães, onde a Agustina conta o que viu, sentiu e pressentiu  e o filme não chega sequer a surpreender?

domingo, 17 de janeiro de 2010

O Espelho, de Machado de Assis



Epilético, gago, tímido, modesto funcionário, filho de pais pobres, um extraordinário escritor. Leio em Machado de Assis o conto O Espelho. Um das duas centenas de contos que escreveu. A narrativa traz como sub-título «Esboço de uma nova teoria da alma humana». A espécie «alma humana», dentro da categoria maior «alma» já fala por si. Mas é a afirmação de que cada criatura traz duas almas consigo que é a raiz da história: uma que olha de fora para dentro, outra, a exterior, a que olha de dentro para fora. Esta pode ser «um espírito, um fluído, um homem, muitos homens, um objecto, uma operação». Em Camões foi a Pátria portuguesa com a qual morreu, em César e Comwell o poder.
Irónico, Machado de Assis sabe, porém, que «há cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de irmandade».
Para o narrador, um homem que, paradoxalmente - e em Assis abunda este modo de contrários conviventes - , se chama Jacobina, «a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem». O posto de alferes. «O alferes eliminou o homem».
Vivendo a angústia do aprisionamento de uma das duas almas pela outra mais velhaca, só o sono lhe dava alívio «não pela razão comum de ser irmão da morte» mas porque «o sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava actuar a alma interior».
Um dia olhou-se ao espelho. Viu do rosto as linhas difusas, as «próprias feições derramadas e inacabadas».
Fardou-se, então, para deixar ao mundo o seu reino, ao ser a sua reintegração.
É um final triste, a história de um homem que regressa a si, impondo-se um exterior que o anula, um conto magnífico, uma lição dura de aprender.

sábado, 16 de janeiro de 2010

A exacta proporção: Maria Gabriela Llansol



Hoje enchem a boca com o seu nome. Mas 1980, no seu retiro na Bélgica, escrevia, a justificar-se: «A lembrança de fazer volumes legíveis deste diário, começado em 1974, nasceu da crise profunda da não publicação dos meus livros. Estava quase no fim do texto definitivo de Causa Amante, e a principiar um livro em versículos quando o aumento incessante da escrita não chegada a seu destino começou a transformar-se num motivo permanente de tristeza». É Maria Gabriela Llansol (Nunes da Cunha Rodrigues Joaquim). Hoje, porque morreu, está sujeita a tantas homenagens quanto a medida do desinteresse que lhe votaram em vida. Uma escrita entrecortada, em que o nexo do efeito suplanta a deconexão do que lhe dá origem, uma lógica interior de uma vivência desgarrada em espanto, torrencial, imperfeita como é a vida, feita de arestas e de espaços interrompidos.

A invisibilidade do ser


Está numa página de um Diário contemporâneo de Marcello Duarte Mathias: «Francis Bacon: o ódio à condição humana. E a raiva de lhe pertencer». Uma frase não explica uma vida, mas ajuda a compreender uma obra, a perdoar a quem está a acabar. Li-a este início de tarde para entender também que «a velhice é um muro que sobe lentamente à nossa volta - a princípio, nem se nota - e que nos vai isolando aos poucos até por fim nos tapar a vista por completo. Os outros já não nos vêem e, nós, a eles, também não. Envelhecer é morrer emparedado. No fundo feitas as contas, não há razões para queixas ou queixumes, bate tudo certo: chega-se ao fim com vontade de lá chegar!»

Se acaso é livro..


Jesué Pinharanda Gomes apaixonou-se pela obra de Dalila Lello Pereira da Costa - o seu primeiro livro assinou-o como Dalila L. Pereira da Costa - quando lhe visitou o livro O Esoterismo de Fernando Pessoa e disso fez uma crónica que publicou em 29 de Outubro de 1971 no jornal Época, que Manuel Anselmo fundara, num suplemento cultural que Jasmins Pereira dirigia. Mas foi a sua recensão ao livro Os Jardins da Alvorada que me comoveu. Publicada no jornal Pátria - outro que não vingou - em 1981 considerou-o «livro impassível de juízo, por não ser livro nem literatura; também não será excatamente poesia, nem rigorosamente profecia; como não é poesia nem prosa». «Ignoramos que livro é este - se acaso é livro», acrescenta», em genial intuição.
Estou com ela por companhia na sondagem do ser, em apelo à intrepidez e lucidez, em expectativa tensa de uma brilhante noite de sol.
Li tudo esta manhã. O artigo nos materiais do colóquio Dalila Pereira da Costa e as Raízes Matriciais da Pátria. Editado pela Fundação Lusíada. Com um desenho de Margarida Cepêda. Um quadro seu ilustra este postal.

Salvo excepções, as "livrarias"


Houve tempos em que as livrarias eram uma certa e específica realidade. Procurava-se pelo Alexandre Herculano e havia ainda O Bobo ou O Monge de Cister. Tentava-ae o Nemésio e lá estaria pelo menos o Mau Tempo no Canal. Encontrava-se o Húmus do Raúl Brandão, o Domingo à Tarde do Fernando Namora. Isto para além das novidades que mesmo quando vendiam pouco iam ficando.
As livrarias eram lugares de convívio entre obras em vai-vém porque os livros encontravam muitos compradores, identificados pela voz do livreiro «não temos de momento mas estamos a receber ainda esta semana», e aqueles que esperavam encontrar esperançadamente um futuro comprador e foi assim, com esses livros expectantes, que fui compondo a minha tantas vezes reiniciada biblioteca.
Hoje não há isso. É tudo um carrossel de livros em rotação. Chegam, mal aquecem o lugar e são devolvidos se não se vendem em pouco tempo. O leitor que perdeu a novidade já não o encontra. É remetido para a editora, algumas vezes com um «nem sei se existe, ah sim está aqui no computador, tenho ideia sim...».
Muitas das actuais "livrarias" são, como no imobiliário e na hotelaria, um negócio de venda de espaço. As assoalhadas com melhor vista são mais caras. Editor que queira livro na montra paga. Para o livro estar não na horizontal repousante do escaparate mas sim na erecção que o torna mais visível, paga-se; de outro modo se o editor entra na lógica do «não pagamos» vai para a estante e aí se a lombada não for visível com letras garrafais e contraste de cor o livro perde-se de vista.
Alguns livreiros que são homens de cultura ainda têm consideração pelos leitores que procuram o passado e pelas edições antigas que procuram o presente. A regra é a rotação de stocks, a gestão do cash-flow. A cultura está dominada por auto-proclamados socialistas que gerem capitalisticamente o seu negócio.
Os livros hoje são iguais aos produtos do supermercado. Chegam em carrinhas e saem em carretas. Funerárias claro. Os contratos de edição prevêm que se não foram vendidos são guilhotinados. Tal e qual.

A Alegria, a Dor e a Graça, de Leonardo Coimbra



Sant'Anna Dionísio escreveu: «foi um verdadeiro delito colectivo a vida forçada de professor do ensino secundário de Leonardo Coimbra».
Apto para o Absoluto teve de viver a condição do relativo. A criação fulgurante era o seu modo de ser. O seu pensamento era um drama em acção, a sua vida a fecundidade da Natureza feita homem. Viveu às guinadas. No final da vida rendeu-se à Fé católica, entregando-se assim Deus. Foi no Natal de 1935, pela mão do Padre Cruz.
Morreu como vivera. Um desastre de automóvel levou-o. «Grande é o homem que conserva sempre em si a luz das primeiras horas, é água à boca da fonte, fogo interior aflorando em jeito de afeiçoar a terra» escreveu no seu livro extraordinário A Alegria, a Dor e a Graça. Publicado em 1916 é um poema em prosa. José Marinho chamou-lhe «um poema metafísico».
Antes de o seu corpo ser abandonado à terra foi um ser irredutível. Ficou a obra. Sobreviveu, pois.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Conta Corrente, de Vergílio Ferreira



Encontrei hoje o número quadrimestral da revista Colóquio-Letras, dirigida agora pelo Nuno Júdice. É o que segue aos que sairam em homenagem a Eduardo Lourenço. Retoma a tradição da revista. Os olhos cairam-me no pequeno estudo que Hélder Godinho dedicou aos diários de Vergílio Ferreira, a sua Conta Corrente. E a pergunta saltou do porque escreveria ele este relato do seu quotidiano íntimo para o porque escreveria ele afinal tudo quanto escreveu.
Retornado a casa, era para o vir citar mais longamente aqui a esse número da revista que a Gulbenkian edita se não me tivesse esquecido dele na cadeira de trás do automóvel. E era para ir tentar encontrar num dos volumes do diário do autor da Aparição, que como sabe saíu em duas séries, a confissão ruminante da sua hesitação em continuar a escrever essa doentia ipseidade e o momento em que ali citava precisamente o Eduardo Lourenço como conselho sensato para que desistisse de prosseguir, não se desse o caso de me ter dado preguiça ou vencido o cansaço e não ter forças para andar a folhear.
Mas o mundo é pequeno sem dúvida. A própria pergunta com que me cruzei pela hora de almoço faz sentido agora se foi a hora do jantar: para quê escrever? Este post, por exemplo... para quê e para quem, para já não perguntar porquê?

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

O regresso da existência



Comecei um novo livro. É uma narrativa ficcionada. Hesito em chamar-lhe novela, talvez me digam que não é um romance. Começa assim:

«Escrevera um livro sobre sentimentos com uma história ficcionada. Quando o leu, temendo-o autobiográfico, viu que era sobre a vida que poderia ter tido. Agora, sentado num cubículo da existência, imaginava um livro sobre ideias. O medo da ficção levava-o para a tentação da realidade. Havia nele algo de essencial que tinha, porém, deixado de existir.
Todos os dias, pelas quatro da tarde, era a hora de visita. Esperou a sua vez meses a fio, certo que a existência o descobriria. Até ao momento derradeiro em que todos os outros regressavam taciturnos, ainda que consolados, do acto triste que é ser-se visitado, nunca desistiu de pensar que um dia isso também lhe sucederia, tornando-se possível. Foi então que Deus teve piedade. Transformou-lhe o mundo existente no mundo dos conceitos. A vida tornou-se uma ideia.
Naquele local, diga-se, Deus não era uma questão de crença, uma eventualidade da fé, sim um produto da gestação humana. Nascera prematuro e devia a vida à pouca medicina de um enfermeiro, que acorreu quando a mãe, a esvair-se, pedia que se trocasse a sua vida por aquela vida. Foi assim que ocorreu o facto de ter sobrevivido, ainda que sem saber hoje para quê.
Tinha cinquenta e oito anos, um rosto escalavrado os olhos recolhidos a esconderem o interior de uma vida incógnita. Nunca se lhe ouvira uma história sobre a família que era justo que tivesse tido, nem o relato daquela outra gente que afinal tivera, querendo-os até que o não quiseram.
Dizia que se chamava João de Deus. Quando ali dera entrada, vindo de uma esquina que ajudara a conspurcar com a sua miséria, tornando-a tão repelente como o desinteresse dos que se agoniavam consigo, não trazia documentos nem queria dizer onde se poderiam encontrar. Iniciara-se aí o vazio que faz agora todos os outros sentirem-se uma excrescência na sua vida em nome do qual dizem nada terem a ver consigo.
Em vez de ter inventado uma biografia, fantasiou um corpo. Fez-se homem para poder ser Deus.
Como todos os deuses também ele tinha um Céu. A diferença é que dizia que o tinha perdido. Passava noites olhando, absorto, o firmamento, mesmo quando as nuvens lhe roubavam as estrelas.
Uma vez alguém divertido com humilhá-lo perguntou-lhe se no seu Céu havia anjos. Foi a primeira vez que, ao olhá-lo, a Humanidade de todos os demais se perguntou se não seria cego, a expressão imóvel, os olhos indiferentes. Era, porém, uma Humanidade pequena em número e escassa de subtilezas.
Naquele lugar, a Humanidade era o nome de uma ala das enfermarias onde se arrecadavam os mais mansos, que podiam passear a sua indiferença pelos corredores desertos do antigo convento, à espera de alguma coisa que tivessem oportunidade de evitar.
Era um local de indivíduos que tinham deixado de ser pessoas. Conheciam-se pelo número da cama, antecedido pela letra da camarata. Os números mais altos eram os dos mais velhos, porque ali a lotação era contada e quando se chegava a um percebia-se que não podia haver zero.
Havia noites em que o silêncio fazia medo, dias em que a algazarra dava vontade de gritar. Uma dia um deles suicidou-se e por umas semanas a Humanidade ficou triste só porque faltava um número e ninguém sabia quem o substituiria para que o zero não surgisse e assim o horror do vazio.
Talvez tivesse sido o oblíquo do sol e o reflexo da sua luz num instante do imenso vitral. O arco-íris, soma refractada de uma luz branca que é calor, projectava-se, inevitável, na parede em frente do refeitório, onde as bocas ruminantes mesmo até as desdentadas almoçavam sopa de couves tristes e uns peixes em escabeche que só um mar ignoto e ressequido de salinidade poderia ter albergado, mumificando-os para os tornar de vida em alimento rude. E Deus sorriu, uivando como um cão.
Naquele dia começou esta história. Aquele sorriso feito de animalidade e assim uma ternura feita só de carinho sem mais razão, momento inaugural da felicidade entre os homens, era a devolução da paz que, como um fogo primitivo, aos homens tivesse sido roubado.
Alumiando-se pelas noites de eucaristia pagã, palmilhando os corredores e seu labirinto, enclavinhando nas mãos tochas fumegantes, velas cuja luminosidade bruxuleava mesmo no segundo em que, incertas, quase se lhes fenecia o sopro de luz, indecisas acendalhas, havia homens que saíam de lugares desconhecidos caminhando errantes para parte nenhuma, celebrando a comunhão da substância num corpo sacrificado. Um pacto de silêncio, as bocas contidas, um crime feito expiação de todos os outros crimes por expiar.
Agora, porém, contagiados pelo riso, como crianças para quem a irrequietude é contentamento, agitando no interior dos seus corpos incumpridos o rugir da existência, vogavam pela terra da ilusão, mãe da arte de marear.
João de Deus contou-lhes então uma história de um homem que era marinheiro e encontrou Cristo, filho de pescador.
Tinha sido tudo numa praia, praia como todas as praias arenosas, ainda que sem banhistas, praia de gaivotas sonolentas e um mar feito só rebentação e rochas descarnadas, em que tudo acontece. Naquele dia era Inverno. A Natureza proporcionava-se, fêmea.
Penso que o Cristo já não existe e a praia talvez já nem esteja assim. Ficou, porém uma ideia, precisamente a génese deste livro de ideias de quem receou um livro sobre sentimentos. Mesmo uma história fictícia de sentimentos reais».

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

A Nau e o Graal, de Dalila Pereira da Costa



Há autores que, trepando às árvores da sabedoria, conseguem escapar à voragem dos predadores da cultura alheia, salvando as suas obras do saque dos sacrílegos rapinantes da reflexão dos outros.
Lembro o espoliado Pessoa, citado até às náuseas, palhaço hoje de tantas instalações e outras medíocres representações, um mundo ainda por se saber.
Míseros todos quantos passam a moda, autores que citados se tornam sinal de distinção cultural, pedra-de-armas de aristocracia literária, senha e santo para o clube exclusivo daqueles cuja opinião conta.
Pobres dos possuídos e dos apropriados, dos transcritos, dos bibliografados.
Pensei nisso ao ir buscar à estante um livro da Dalila Lello Pereira da Costa. «Uma mística ecuménica» lhe chamaram já com carinho. A sua obra está impregnada de beatitude e de uma exaltação mansa. Passeia-se por ela como por um jardim de delícias amorosas, um carmelo de rosáceas purificadoras.
Num qualquer instante surge o milagre extático da consubstanciação. O acto de mistério é o abraço do divino. «Buda então é vencido pela saudade», o eterno retorno perde, liberto, a maldição da fatalidade.
Originária do Céu, Dalila surgiu no Douro. Uma voz subtil fala através de si, ecoando pelos lugares insólitos de uma corografia sagrada palavras humanas que são símbolos angélicos antes de serem conceitos terrenos e de que só temos uma ambígua noção adivinhando-lhe o sentido oculto que esconde dos olhos o aparente exposto.
Lê-la é uma iniciação. A alma suspende-se.

Quando eu li Eric Rohmer


Soube esta madrugada que morreu o Eric Rohmer. Há pessoas que, cinéfilas, falarão sobre todos os seus filmes com propriedade e sobretudo com pormenor. Eu lembro-me do Ma Nuit Chez Maud, porque o vi em 1969 numa sala-estúdio e porque nessa altura o cinema era parte do crescimento da alma e do engrandecimento dos sentidos, quando não era um lugar de militância cívica. Tudo isso foi antes de me ter saturado do intelectualismo de algum cinema francês, a sua retórica palavrosa e inconsequente, rendido irreversivelmente à estética da cinematografia italiana.
E lembro-me também porque vi, numa sala de cinema que já fechou, a do Nimas, aqui na 5 de Outubro, L'Agent Triple, um dos seus menos conhecidos filmes, rodado em 2004, e isso ter acontecido em circunstâncias excepcionais.
Na altura escrevia um livro, a biografia de uma russa branca chamada Nathalie Sergueiew, nascida em São Petersburgo em 1912 e que faleceria nos Estados Unidos da América em 1950, depois de uma vida notável. Alguém me avisou que estava em exibição um filme em Lisboa que tinha ingredientes que me poderiam interessar. E estava.
Sucede que para peparar esse livro eu tinha estado em Paris a estudar o ambiente dos russo brancos no exílio, as suas organizações políticas e sociais, as tentativas de infiltração da União Soviética a partir da Finlândia, a luta que, nas condições de maior penúria, todos levavam a cabo para salvar l'honnneur de la Russie, como se exprimiu tão bem Andrei Korliakov. Em Zurique tinha-me encontrado com alguém que me pusera em contacto com a vida do general Dénikin, do general Wrangel. Tinha reconstituído os raptos dos generais Kutiepov e Miller, dirigentes das ROV's, a organização dos antigos oficiais czaristas, perpetrados por um comando da OGPU, o serviço secreto antecessor do KGB, os mesmos que assassinariam Lev Trotski no México.
Imagine-se-me agora sentado no cinema a ver na tela, passo a passo, aquilo que eu conhecia por ter reconstituído com base nos documentos, toda a trama a do rapto do general Evgeny Karlovitch Miller, o envolvimento do general Nikolai Skobline na armadilha, o complot com a Alemanha nazi. Imagine-se mais, o poder notar, ao ver o filme, as pequenas diferenças que na ficção havia relativamente à realidade. Imagine-se ver na tela um capítulo o meu livro ainda por publicar, assinado por Eric Rohmer.
Esta madrugada ele morreu. E o meu livro, que é um dos livros que considero melhores, está quase morto. Um dia destes entrego-o a um alfarrabista ou vendo o papel a peso. A tristeza é a mesma que sinto agora que estou a escrever. Tudo morre.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Abertos à leitura


Para além deste, escrevo em outros blogs: um dedicado à Clarice Lispector, outro à Irene Lisboa, enfim um terceiro sobre a Maria Ondina Braga. Ah! E um outro com o meu nome que durante uns anos foi alimentado com «leads» do que eu escrevia numa pequena plantação de outros blogs que, como cogumelos, foram nascendo, alguns a esmo, uns quantos de curta duração, todos parasitas dessa ânsia de dizer. Esses estão suspensos, à espera de melhor ver.
Essa proliferação de escrita levou a que surgisse uma exposição intimista nem sempre desejável e que se prestou não sei quantas vezes a vários equívocos. Acontece o mesmo quando se escrevem livros de ficção: o leitor toma-os frequentemente como se fossem auto-biografias disfarçadas. Na blogoesfera o efeito é, porém, mais potente.
Quando não eram escritos de intimidade devassável e adulterável, alguns desses blogs tinham ingénuos e pouco conseguidos objectivos de intervenção cívica, ou na área social e política ou na área jurídica, por causa da minha profissão. Sucede o mesmo a tantos que julgam que transformam o mundo a partir da blogoesfera quando por vezes alcançam apenas um aceno de concordância dos já convencidos. A blogoesfera amplifica essa vaidade de opinar, permitindo a cada um a vaidade de ser o director e o jornalista - e quantas vezes o solitário leitor - do seu próprio jornal.
Tudo visto achei num certo momento que era bom parar. A verdade é que o meu mundo mudara e eu mudara-me por causa disso para a casa das letras, com um blog que é este onde se fala de livros e de ofícios correlativos à escrita. Dei-lhe o nome que é parte do meu nome e que já usei como pseudónimo literário. Para além de espaço de leitor, o blog trata do que a cultura assume como fazendo parte da família.
Viciado em ler e iniciado na arte de escrever, dei comigo agora a ser editor, que é uma forma de se conseguir que surjam os livros de que se gosta. Tudo isso, que é o meu presente e será talvez o meu futuro anda à solta por aqui.
Uma só coisa mudei e vim aqui dizê-lo: reabri ontem à leitura os blogs que antes existiam.
A minha ideia ao tê-los encerrado foi virar a página desse tempo e recolhê-los para o interior ignoto como quem corre gelosias. Só que a menção que aparecia a quem tentava aceder-lhes era que doravante cada um daqueles blogs só podia ser consultado por leitores convidados. Ora essa ideia elitista e por isso selectiva não correspondia ao meu pensamento nem ao meu sentimento. Mas era o que as pessoas retinham com toda a sorte de confusões. Como diria o o outro «um certo mau aspecto».
Pronto aí está tudo de volta, taipais soerguidos.
Mau grado algumas cartas que recebi, continuo a pensar que a minha intervenção cívica não justifica em resultados que possa ter a pretensão vaidosa de imaginá-la útil. Quanto às crónicas do quotidiano prefiro abster-me. Não tenho segredos, quero ter é sossego. O que for ficção, ficcionar-se-á. Fiz publicar um romance estou a escrever outro.
Em suma os blogs agora legíveis ficam no estado em que estavam, cometas imóveis num espaço em que o tempo parou.
P. S. Para mostrar que tudo na vida tem um tempo, ilustro este post com uma fotografia. É a Avenida 5 de Outubro aqui há uns tempos atrás. Imagine-se que o cavalo pensava que a carroça, que era inevitável para ele mais aos que nela se alapavam, era uma exigência do futuro!

domingo, 10 de janeiro de 2010

Cicatriz do Ar, de Jorge Fallorca



O seu nome na rádio era já só uma reminiscência. Encontrei, porém, o livro que se chama A Cicatriz do Ar. Penso que esse é o nome de um capítulo de versos, que acabou por dar nome à obra. Os primeiros textos são dedicados à escrita e ao acto de escrever. «Às vezes acho que escrever é um acto solitário; outras, considero-o como o único momento em que se não está só», diz Jorge Fallorca, poeta e tradutor, em irremediável vagabundagem pelos territórios luminosos do Sul.
Li o livro todo. É pequeno. Foi impresso numa tiragem de duzentos exemplares porque lê-se pouco, diria, em Portugal.
Ficou-me de memória este excerto: «No metro uma miúda estrangeira serra as cordas do violino à medida das suas necessidades». Acompanha-a um outra, pedinte de moedas, que invectiva os passageiros: «estende-lhe um sorriso que termina num pequeno gorro, onde as moedas se recusam a repousar, alheias ao esforço da violinista em domesticar os sons (...)»

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

A loucura de endireitar o mundo


Quando não se lê folheia-se. Na televisão zapinga-se [e porque é a palavra não haverá de existir? ou terei de dizer zapa-se?], na blogoesfera clica-se.
Em passeio madrugador fui parar aqui. O homem foi um daqueles que achava que com a moralidade e a polícia conseguia endireitar o mundo.
Permito-me citar a seu respeito este excerto ilustrativo, retirado do blog visistado: «José Daniel nasceu em Colmeias – Leiria a 31de Outubro de 1757, donde cedo saiu. Chega a Lisboa aos dois anos de idade, onde falecerá a 7 de Outubro de 1832. Sob o pseudónimo de Josino Leiriense, que usava nas tertúlias da Arcádia Lusitana, Rodrigues da Costa teve uma vida de notoriedade social e intelectual, testemunhadas em várias obras literárias que publicou, quase sempre sob a forma de folhetos, que se vendiam como “livros de cordel”. Foi promovido a Major da Legião Nacional do Paço da Rainha. Gozando da protecção do Intendente-Geral Pina Manique empenhado em manter a ordem social e reprimindo os ideais iluministas da Revolução Francesa».
O mundo que ele combateu triunfou. Ficaram amarelecidos  os folhetos combativos que hoje são raridade bibliófila de coleccionador. Um dia será tudo pó.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

A Mãe, de Brecht


A Mãe de Bertolt Brecht. Sem margem para ambiguidade, sem espaço para subtileza, sem escapatória para os sem partido. É o território da luta e da causa, do sacrifício e da bandeira.
É sobre a crença na virtude da mudança: o seguro não é seguro, como está não ficará.
Glorificação do proletariado, legitimação da revolução blochequive. Passada como testemunho, mobiliza. «A minha avó também esteve presa», dizia cá fora um jovem, explicando-se a uma extasiada companhia.
Vi-a representada pela Companhia de Teatro de Almada. No fim, a apoteose da militância, do trabalho, o triunfo da camaradagem.
Na sala não havia um lugar vazio. Se me perguntassem que me acompanhava diria: a consciência histórica do operariado, essa força universal em armas.
«O hoje nascerá do jamais».

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

O fim da macacada


Segue e persegue. Não tinha lido nunca mas faz que lê. Não conhecia mas parece que passou a conhecer. Copia, cabula, finge. A ideia é parecer.
A net ajuda porque permite o picanço. A ignorância disfarça-se, a familiaridade simula-se. Chama-se copy paste.
Depois é só gozar das delícias do faz de conta. Os ingénuos acreditam, porque não notam o papel químico. É o domínio de um animal internáutico da família do macaco de imitação. Símeos antropóides.

A tradição e a tradutor


A tradição do «quantas vezes mal recebendo»... [Maria Ondina]

O Intérprete Grego, de Arthur Conan Doyle

O Intérprete Grego não é um grande conto de Arthur Conan Doyle nem nele Sherlock Holmes tem uma grande intervenção.
Há, porém, uma surpresa. O lendário detective tem um irmão. Mycroft Holmes. «Era muito mais alto e corpulento do que Sherlock. O seu corpo era realmente volumoso, mas o rosto, embora maciço, mantinha qualquer coisa da agudeza de expressão que tornava tão notável o de seu irmão. Os olhos, de um cinzento agudo, particularmente leve, pareciam conservar sempre aquela aparência longínqua e introspectiva que eu observava em Sherlock quando exercia os seus plenos poderes».
Bom, deixemos a diferença fisionómica e de corpulência. Consegui encontrar uma imagem sua, tal como fantasiado por Sidney Paget. Quem quiser saber mais pode ir aqui ou mais resumidamente aqui.
Há só uma coisa que me fez confusão e vim aqui escrever. É a frase «esperava ver-te a semana passada para me falares sobre aquele caso de Manor House», diz Mycroft a Sherlock quando se encontram.
É que se o médico Watson era o companheiro íntimo da sua misógena e celibatária pessoa, partilhando a mesma casa alugada e sendo confidente de todos os pequenos mistérios e todos os momentos do quotidiano, como é que nunca se teria apercebido das visitas de Sherlock ao Clube Diógenes, abrigo de Mycroft, lugar ambíguo de concentração dos acanhados e dos misantropos, «que abriga os homens mais insociáveis e menos gregários da cidade», sítio «onde são proibidas as conversas, seja em que caso for, salvo na Sala dos Estranhos» e onde, claro, não há perfume de mulher.

domingo, 3 de janeiro de 2010

O pícaro

Literatura pícara no sentido próprio do termo. Quem é o pícaro di-lo o prefaciador Ricardo de Saavedra.
Personagem «de baixa extracção social, vagabundo, burlão, farsante e um pouco ridículo, servidor de vários amos e ofícios», «o seu objectivo é subsistir», «é o anti-herói, comprometido em alimentar a sátira social e a ironia», «autónomo, individualista, ardiloso, despreza as leis do Estado e apenas tem em vista os seus somíticos interesses», «mistura de estóico e de cínico».
São assim os contos de José Manuel Couto Viana., no livro Que é que tenho Maria Arnalda?, a que esta manhã voltei para mais umas folhas lidas.
Abre com o provocador título «canta puta de merda!», que terminará, após acto de justiça social, de que não desdenharia o mais apiedado neo-realismo, em «toca, cabrão de merda!», segue, pé cá no vernáculo, pé lá na cinzelada arte, com o Nélinho «a apanhar às mãozadas, dos ferros da bicicleta, do boné do bagageiro, do avental, das nádegas e peito da sopeira, grossos bocados de pudim que metia à boca, com gozo e avidez, gritando: - É bom carago! É doce!».
É uma escrita por sobre a sordidez, a boçalidade trazida à estética, um mundo rude ainda que verdadeiro, como o do «Lopes da Conservatória» que no alcouce da «Rita Rebola», casa pública que «abria as portas à concupiscência, à lascívia, à luxúria, ao delírio da carne», segundo as confidências das raparigas «de vida quilhada» sobre as taras do clientes, só se excitava quando lhe metiam «um lápis no rabo» que, transformado o lugar dos seus encontros agora em novo antro, após mão decoradora, num «seralho oriental, com a profusão de reposteiros, tapetes felpudos, o fofo acetinado das almofadas, o espelho pendurado no texto sur un lit carré», esse mesmo «deu um uivo selvático quando, ao pedir o lápis das erecções, a Antónia lhe entregou uma caneta de tinta permanente Parker».
É clássica resistência à mudança, mesmo no trágico lupanar.

O Mercado das Letras



Às vezes é nos lugares mais improváveis que se encontram as referências mais insólitas.
Comprei ontem o livro Autores, Editores e Leitores, escrito pelo Francisco Vale, fundador da Relógio de Água.
Tenho uma especial predilecção por livros escritos por quem está no mundo dos livros. Anda por aí por casa uma pequena biografia do Serafim Ferreira, li com gosto a história penosa do Alçada Baptista e suas desventuras no mundo editorial. Não consigo deixar de gostar da Conta Corrente do Vergílio Ferreira esse diário do cárcere que era a sua vida de escritor.
Só desprezo os arrogantes, os grandiloquentes no verbo e ostensivos na pose, os que escrevem livros para mostrar a imensidão da sua erudição, escrita de desamor e de ressabiamento. Como gosto de ler o Eugénio Lisboa a trazer-nos com desvelo a vida de quem escreveu através do que foi escrito!
Voltando ao Francisco Vale. Não é uma biografia são apontamentos daquilo de que fez vida. Dispersos porque a vida não é sistemática.
E que me ficou nesta manhã que acordou a chover desapiedadamente?  Ver o Alçada Baptisa, falido financeiramente o seu projecto editorial «que teve de pagar quase até ao fim da vida os prejuízos, através de descontos no seu ordenado», o Wittgenstein «que ofereceu a fortuna aos amigos ricos para que não houvesse mais pobres corrompidos», que «a nossa lei de direito de autor estipula que, na ausência de especificação, a vigência de contrato é de 25 anos e os direitos autorais de 25 por cento».
Não sei se ria se chore. Claro que o livro ensina: falando da muliplicidade de edições diz: «há mesmo grupos editoriais qu praticam esses excesso de produção para asfixiar concorrentes»; referindo-se aos livreiros acrescenta: «por sua vez os livreiros tentam impor condições que dificultam a vida às editoras mais exigentes, aumentando as "margens", exigindo pagamento de espaço e montras, cobrando a publicidade nas suas brochuras duas vezes mais que a New Yorker e procedendo às devoluções num prazo que não permite que a crítica possa ter efeito nas vendas»; reportando-se aos críticos revela: «claro que não são raros os críticos que recorrem a estratégias que implicam perda de rigor, sobretudo em "início de carreira", como a de escolherem um autor consagrado para se distinguirem, reduzindo a pó ou declarando baudelairianamente paixão por certos escritores»; tratando, enfim, do mercado dos livros traduzidos ilustra: «por cada exemplar vendido, as principais livrarias recebem pelo menos 38 por cento, o distribuidor 22 por cento, o autor 8 por cento, o tradutor 16 por cento e o editor 16 por cento. Se a tiragem se esgotar a percentagem do tradutor desce para 12 por cento».
P. S. nº 1: ao menos na página 46 encontro bálsamo para estas chagas de mendigos literários, pedintes à porta do mercado das letras: «A História Universal da Infâmia de Jorge Luís Borges poderia acrescentar à sua longa lista também a infâmia que lhe sucedeu, pois vendeu dezoito exemplares quando surgiu na Argentina».
P. S. n.º 2: a fotografia «piquei-a» do blog magnífico que se chama O Silêncio dos Livros e está aqui.

sábado, 2 de janeiro de 2010

Dans leur sauce


Convenci-me! A culinária é arte para quem ler o Pantagruel ou a Dona Maria de Lurdes Modesto. Ou mesmo a Cozinha Económica da margarina Vaqueiro. Cozinha é aventura para quem siga livros de receitas e se arrisque para além do «q.b.». Mas cozinha pode ser acaso e inspiração no acto.
Compram-se potas em tiras. Congeladas servem. Descongelam-se no micro-ondas. Vêm molhadas. Enxaguam-se em papel absorvente. Do que se vende em rolos de cozinhas. Tipo papel higiénico em formato A3 e com melhor picotado.
Frigideira com azeite. Deixa-se ferver. Mete-se o sal no azeite para que ferva tudo melhor. Sal frito? Conheciam? Nem eu até ter feito.
Jogam-se as potas ao banho fervente, caldeirão infernal, Belzebu na cozinha à solta.
À medida que fritam prensam-se. Com uma colher de pau. Para não riscar o fundo do tacho...ora!
E prensam-se porquê? Para largarem o seu conteúdo líquido, a humidade. São potas húmidas, potas como devem ser.
Nesta altura já a confusão é total. A fritura passou a cozedura. As potas volteiam-se «dans leur sauce», uma mistura branca e esverdeada.
Então joga-se dois esguichos nas potas. De vinagre balsâmico.
Mexe-se em tudo. Ficam côr de molho inglês. Ou de soja do restaurante japonês.
Corta-se em cubos.
Acompanha com risotto al pomodoro. Vende-se pré-feito, atenção. Ninguém nota a diferença.
Duvida? Pois foi o meu jantar e dos meus. E nisso, gaba-te cesto, sou melhor que este marmelo aqui.
P. S. Eu disse «marmelo»? Qual marmelo! Nabo!

A nostalgia da existência



Senti ao ler porque tinha sentido ao ter vivido. Não! Digo a verdade: senti mais, lendo, devido ao modo arrebatado como está escrito. Stefan Zweig tem aquele dom de desventrar aquilo sobre que escreve. As biografias que escreveu são a revivescência do que nunca morre, um forma de Fénix ser através da Literatura.
Tinha encontrado num alfarrabista de rua os «Encontros». Editados pela Livraria Civilização em 1938. Uma tiragem encadernada, em oitavo.
Esta manhã estive com a sua conferência sobre «o significado e a beleza dos autógrafos», proferida a convite do jornal britânico The Sunday Times em 1935. O jornal já não é o que era porque o mundo mudou.
Extasiado sobre a carta que Beethoven escreveria já nos últimos dias da vida, esgotado, e disso já incapaz, que com esforço sobre-humano conseguiu a custo assinar, dirigindo-a à London Philharmonic Society, carta em que, respondendo ao convite para ali apresentar as suas obras, apenas já diria «sinto-me tão cansado, já nada mais posso dizer», diz Zweig, esmagado ante a assinatura firmada em «titânico esforço, os seus dedos trémulos, inermes»: «não foi só Beethoven quem traçou esta palavra, - aqui a morte escrevia também».
O genial compositor alemão, essa «garra leonina» era naquele instante «o moribundo que não sabe que é forçoso morrer». A alegria de viver possuía-o, a morte tornara-se o instante de nostalgia da existência.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

O génio


O canal franco-alemão Arte está a passar filmes de Charlie Chaplin. Muitas pessoas já viram muitas vezes os filmes de Chaplin. Muitas pessoas julgam ter visto os seus filmes.
São, é claro, momentos de génio na arte de representar, instantes no modo de fazer rir, a mestria do burlesco. Mas é a ternura, a bondade, a fome de ser amado, o que muitos não sabem que existe, do que tantos têm necessidade que exista, o tango do filme City Lights.