quinta-feira, 10 de agosto de 2006

O mais azedo dos suores

A vida é feita de acasos. Terminei, enfim, a leitura do livro de memórias do José Gomes Ferreira. E como decidi abolir a diferença entre os dias de férias e aqueles em que trabalho, como quem vive feliz uma infelicidade, depois de ter ido consultar, nesta tarde de calor, um processo a um qualquer desses tribunais, passei por uma biblioteca pública onde encontrei «A Gaveta de Nuvens» outra obrinha sua, de crónicas e apontamentos. Sentei-me, anónimo, num canto a ler. A meu lado, um anafado munícipe usava aquele local de cultura para ler os anúncios do imobiliário, secção «condomínios, vendem-se».
José Gomes Ferreira também tirou o curso de Direito e tentou, sem continuidade ou empenho, a advocacia. Passou como obscuro cônsul na Noruega mas foi a viver da pena, escrevendo de tudo, desde anúncios publicitários a traduções para o cinema, no meio disto um livro policial como autor anónimo, que trabalhou «na escravatura do suor mental (o mais azedo dos suores)», escrevendo andante, em intervalos.
Voltei há pouco à casa onde estou, com a cabeça cheia de pensamentos sobre tudo isto. E eu que escrevo curto, por ser feito daquela «carne tímida» de quem acha que tem pouco a dizer, encontro-me hoje, nesta tarde andarilhante, com a cabeça toldada de ideias, que se atropelam.
Primeiro, que pouco vale uma vida literária. Impressionou-me, comoveu-me mesmo, ver, pela sua palavra, trazidos do pó indiferente do esquecimento, tantos nomes de escritores e artistas, génios no seu tempo por um critério exasperado e exigente e hoje absolutamente olvidados. E causa-me funda impressão, pela razão inversa de o ter lido, a ele Gomes Ferreira, desejoso por raiva de apedrejar as montras das livrarias de Lisboa onde se não encontrava então nem um só dos livros do Teixeira de Pascoaes, já só nos alfarrabistas «para educação das traças».
Depois, neste «labirinto de conversa inútil», dou comigo a pensar o nada que vale um livro. No caso, os dele, editados pela Moraes, que já faliu, pela Portugália, que já morreu, e de que hoje se encontram nas chamadas «livrarias», que mais não são do que armazéns de papel temporário, os mais ridículos, os menos característicos, os que menos dizem do grande escritor de quem falamos. Mas fere-me, sobretudo, o meu livro, este exemplar seu que li e sublinhei e a que quase arranquei as folhas de tanto o ler, onde consta o sangue arrefecido de uma inscrição, manuscrita por alguém, para quem este volume já foi um momento qualquer na sua vida: «Na Parede, 8 Set. 66, quando os anos não têm sido uma parede». Assina: Guida. Não sei quem é, ela não sabe que eu a encontrei. Entre nós, se ainda estamos ambos vivos, há o acontecimento morto que lhe atirou o livro para um adelo, onde o comprei, ao desbarato, amarelecido e esquecido, como se escrito por olhos enormes «da existência de milhões e milhões de lágrimas do mundo por chorar». Tudo isto faz com um homem não queira ser aquilo que é.