terça-feira, 31 de janeiro de 2006

Pilhas de graça!

Depois de terem mudado a pilha à chave do automóvel, a que abre o sistema centralizado de fecho das portas e mais a ignição e não sei o quê mais, explicaram amáveis os da oficina: se não funcionar à primeira, agora que a pilha é nova, carregue cinco vezes. Não disseram porquê, nem me atrevi a querer saber. Se fosse, em vez de uma chave, uma pistola para eu me matar, preferia uma corda pendurada ao pescoço. Se não funcionasse à primeira, sempre mudava de ideias. Logo à noite, quando entrar na garagem, talvez leve uma gazua, não para assaltar o que é meu, mas para tentar não chegar tarde ao jantar, ainda por cima por falta de pilha.

domingo, 29 de janeiro de 2006

Começa um vida

A Irene Lisboa escreveu sob vários pseudónimos, um deles, o masculino «João Falco», por julgar talvez que um livro de homem teria mais aceitação junto dos leitores. Em 1940, em plena guerra, a «Seara Nova» editou-lhe o «Começa uma vida», que a Maria Keil do Amaral ilustrou. O livro é modesto de tamanho e de cuidado tipográfico e, por isso, aquele que, maravilhado e grato, tenho esta noite nas mãos, ameaça desfazer-se a cada momento do meu cuidadoso folhear. Não se trata de uma biografia, mas há muito de próprio e de intimista no que ali se diz, prenunciando uma escrita de tristeza e de solidão que seria, afinal, o seu modo de se exprimir em literatura. Ainda, sem saber como, consegui uns minutos hoje para começar a lê-lo até ao momento em que descrevendo o seu internato num colégio de freiras e relatando «despoeticamente» o seu viver sentimental de adolescente, partilha com quem a lê: «descobrira o prazer da tristeza, a sua espécie de função masturbante, ou de irritação e conformidade, de devaneio».

sábado, 28 de janeiro de 2006

Rebelo da Silva

Talvez nem seja da família. Nunca pensei nisso. Também não tem interesse para o que se pretende. Começou hoje, aqui, uma forma de o recordar.

A pequena escala

Acordar pelas doze com a horrível sensação de metade do dia estar esgotado, sendo mau, ainda é, em pequena escala, mais suportável que aos cinquenta e seis termos percebido que, não vivendo até aos cem, já foi vivido quase tudo o que havia para viver. Aí, não há hipótese de tomar banho a correr, sair à rua ofegante e já estar esgotado, afinal, o próprio jornal do dia.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2006

O deleite e a desarrumação

Há dias em que verdadeiramente penso, tal como o António Alçada Baptista, que «a cultura é uma palavra-sótão, onde se arrumam os trastes que não somos capazes de meter noutro lugar». Lembrei-me desta, quando depois de dormir pouco por sonhar muito, acordei pelas sete, meio estremunhado, e ainda a cambalear, enfiei um valente biqueiro num molho de livros que se acumulam, dispersos e desconexos, ao lado da cama, eu na ilusão de ainda os ler e já na desistência de os arrumar.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2006

Nós outros

Os que dizem «nós», em vez de «eu», nem sempre o fazem pelo plural majestático, às vezes é só pelo eco que neles causam as suas próprias palavras. No Governo usa-se muito, para dar a ideia de que cada um diz o que pensam todos. É uma ilusão. No jornal seguinte, desmentem-se logo e «nós» ficamos totalmente esclarecidos.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2006

Salve-se a geometria!

Eu tenho por aí um blog que anda a vegetar e que se chama «Geometria do Abismo». O nome fui buscá-lo ao «Livro do Desassossego» do Fernando Pessoa. A princípio era uma espécie de metáfora de um mundo euclidiano escrita por um homem que vive humanamente só com operações aritméticas das que dão resto zero. Depois, o blog foi ficando num marasmo tal que hoje é um asteróide morto no ciber-espaço. Hoje descobri que ele ainda tem salvação, como os quadros daqueles pintores que raspavam as telas e as pintavam por cima. A ideia essa eu tenho-a e nítida na cabeça e tempo, como se sabe, é coisa que não me falta. Por isso, agora, vai ser só o mãos à obra. Veremos o que sai daqui. O Almada Negreiros descobriu qual era a ordem dos painéis do Nuno Gonçalves ao olhar para o chão e ao ver como estava pintado o ladrilho. É mais ou menos assim: com os olhos no chão, ainda chego lá!

Crónica da hora que passa

Uma leitora disse uma vez em estilo de amabilidade, ao ler o que por aí escrevinho, «as coisas que lhe passam pela cabeça!». É! Sou assim a modos que um passador. Não por andar passado de todo, mas por tudo aquilo por que já passei. Passar por passar, escrevo isto e lembro-me do personagem do livro do Sttau Monteiro, o Luís Infante de Lacerda Sttau Monteiro, o que escreveu «Um homem não chora», que andava sempre com um pacotinho de passas no bolso: num caso, como no outro, carências de açúcar e excesso de afecto.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2006

O quem era e o porque é

Vim para casa carregado com os quatro volumes das «Obras Completas» do Delfim Santos, para verificar ontem que, afinal, já os tinha. Encontrei num alfarrabista, com infinita alegria o «Prazer e Glória» da Agustina para encontrar em casa uma edição igual. Para rematar, até um do Alçada Baptista eu já tinha, só que desta feita o que veio é a primeira edição, a da Moraes. Isto sucede assim porque em Portugal quem quer ler compra livros livros para os ler um dia, porque no dia em que lhe apetecer a leitura não os encontra em sítio algum. O mercado da livralhada hoje é assim: entram uns nos escaparates e uma semana depois somem-se para os armazéns dos editores, substituídos por uma nova remessa. Dizem-me que, neste país de iletrados, saem quarenta novos títulos por dia. A 30% nas livrarias, a 60 e mais nas grandes superfícies, eis o comércio na sua melhor expressão. O autor com sorte, esse chega à ilusão dos 10% e à desilusão de raramente os receber. Amanhã vou tentar que mos troquem, quando não espalho-os pelos amigos. Se algum se perguntar a que propósito leva com uma resma de Delfim Santos já sabe: escusa de perguntar quem era, que eu nem digo porque é!

domingo, 22 de janeiro de 2006

Clientes de mão

Lembrei-me agora deles, ao ler o que o José Cardoso Pires escreveu sobre o Fernando Assis Pacheco, ambos mortos: os galegos, de tempos que também já foram, a cuja modéstia serviçal Lisboa tanto deve. Eram os amoladores de tesouras e navalhas, sombrinhas e chapéus de sol, assobiando os ares com o trinado de uma gaita de beiços que os anunciava, de rua em rua; os carregadores de pianos, animais de carga, corda enrolada a tiracolo, ajoujando escada acima cargas bestiais, em troca de uns vinténs; e eram, enfim, os das carvoarias e tascas, casas de pasto e por vezes pensões de curta permanência. A Lisboa gastronómica chique do «Gambrinus» a eles se deve, o popular «João do Grão», a eles pertence. Com uma variante que Cardoso Pires recorda: o João do Grão tinha os talheres presos à mesa com correntes, «para evitar distracções do cliente de mão sem escrúpulos». E o que por aí há mais são distraídos.

Uma vida que começa

Partiu, ontem, cedo na manhã. Uma vida adulta que enfim começa. E em mim, na desolação solitária daquele instante, no que eu gostaria de ter sabido converter em lágrimas, o desejo profundo do melhor dos mundos para ela. Hoje, neste domingo dorminhoco de Inverno, um estranho vazio acompanha-me. Escreveu-me, uma mensagem breve, daquelas em que tudo se diz no pequeno écran de um telefone. O texto é curto, diz que chegou bem, começa com a palavra pai.

O único e o singular de cada amor

Não tinha chegado a dizê-lo, mas o «Diário Íntimo» do Manuel Laranjeira, li-o há dias numa biblioteca pública, aproveitando o tempo durante o qual muitos outros almoçam. Mas ontem que foi sábado, encontrei-o, muito escondido e como se agachado num alfarrabista do Chiado. E esta manhã, ao acordar tarde, com a angústia de já passar das dez, um súbito ímpeto levou-me a ler-lhe o prefácio, o que na altura desconsiderara. Escreveu-o Alberto de Serpa. O prefaciador conheceu o prefaciado e sente-se que o absolve, àquele «pessimista místico», desencontrado com Deus, aquele que viveu «pedindo à existência terrena perfeição e paz que nunca podem ser dela» e morreu com as próprias mãos. Mas um «Diário Íntimo», um diário de amores, é algo de tão próprio, tão único e tão singular, que editá-lo é como que vingar um morto, ante a nudez embaraçosa dos vivos. Mas quando há delicadeza e carinho pelo outro escreve-se como ele escreveu, a justificar-se: «um quinquagenário sabe já bem quanto meio século é pouca coisa, e por tal fui-me às inciais, aos prenomes e aos apelidos com que Laranjeira indicou personagens femininas de ainda possível descoberta, e dei-lhes uma simples letra».

terça-feira, 17 de janeiro de 2006

Mau parecer

A imprensa noticia que o Brasil está a exportar para Portugal anti-rugas falsificado. Percebe-se agora porque andam todos de semblante façanhudo: até a nossa aparência verdadeira é falsa.

Uma víscera ruim

Manuel Fernandes Laranjeira compôs em 1908 um «Diário Íntimo» onde anotou que, afinal, a alma é uma víscera ruim. Pouco antes do regicídio escreveu uma série de artigos, que Luiz Pacheco viria a editar-lhe, em trezentos modestos exemplares, na Contraponto. São notas soltas sobre o «pessimismo nacional», sobre as «quadrilhas messiânicas», sobre a «enfermidade congénita» dos portugueses, maleita que é um sintoma alarmante «de uma doença infecciosa grave», toda «de natureza parasitária». Manuel Laranjeira suicidou-se em Espinho no dia 22 de Fevereiro de 1912, com um tiro na cabeça, como era inevitável. Dele disse Miguel de Unamuno que «a vida o matou e ele deu vida à morte», como à de Portugal uma «Nação morta destinada a ser devorada pelas Nações vivas». Numa carta a Amadeo de Souza-Cardoso, Laranjeira, médico, diagnosticou a sua doença, a dos que sentem «morrer a vida» por não talhar a vida ao seu ideal.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2006

Um dia

A indelicadeza é isto, visitarem-nos e nós não retribuirmos, falarem em nós e ser como se nem tivessemos dado conta. A selvajaria, porém, é tudo isto acontecer e um dia, a dois de Janeiro, ter morrido alguém e isso ser como se nem tivesse acontecido. Claro que há um sentimento de remorso. Confessá-lo não resolve, é uma forma apenas de me envergonhar publicamente.

domingo, 15 de janeiro de 2006

É só carregar no «on»!

Groucho Marx considerava a televisão um meio muito educativo: cada vez que alguém a ligava, ele ia ler um livro. Hoje, com a proliferação de canais, é caso para se dizer, podem ler-se bibliotecas inteiras.

Nos teus olhos altamente perigosas

«Tu não poderias ficar presa comigo à roda em que apodreço, apodrecemos». Hoje é domingo, ouve comigo Alexandre O'Neill. A alegria sonâmbula, o modo funcionário de viver, a miséria de uma noite gerada por um dia igual.

Saudades do gasolim

Na selvajaria de que se faz vida há lugares magníficos onde não vamos, momentos de beleza que perdemos, recantos de sensibilidade que esquecemos. Hoje voltei ao gasolim ultramarino, para matar saudades.

A Praça de Espanha

Hoje o dia deu em chuva. Por ser domingo parece que chove mais e de modo que mais encharca. Refugiado num patamar de uma rua sem cafés, pesa-me tudo o que poderia estar a fazer a esta hora. Um casal de turistas pergunta-me pela Paça de Espanha. Condenando-o à desilusão do inóspito com que se vão surpeender quando lá chegarem, digo-lhes que é ali, mais em frente, sempre em frente.

Ler, rir e viajar

Há nos jornais suplementos sobre viagens, que parecem publicidade encapotada dos departamentos turísticos das embaixadas estrangeiras, quando não das próprias agências de viagens. São todos tão informativos como o «Guide Michelin», alguns sóbrios como o «Rough Guide». O que raramente são é divertidos. Ler e rir nem sempre acontece. Mas sucedeu hoje. O artigo é sobre o homem que atravessou um país inteiro durante uma semana, conhecendo-o detalhadamente. O país chama-se Andorra.

Tempus fugit

Há um livro onde se explica porque é que o tempo parece correr mais depressa à medida que envelhecemos, demonstrando como por o nosso relógio biológico, com a passagem do tempo, andar com mais vagar, tudo o resto parece decorrer mais rápido. Será um livro interessante, mas seguramente é daqueles que não vou ler, só por já não ter tempo para isso. Há pouco ainda me parecia ser sábado, amanhã já é segunda feira. Um vizinho desce a escada apressado, o autocarro em frente arranca veloz, um jovem casal, abraçado, corre ágil para fugir da chuva.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2006

Alça daqui!

Viaja-se no espaço Schengen, e são os acordos de Schengen, e não há cooperação judicial que não seja a de Schengen, nem questões sobre passaportes em que não se fale de Schengen. Nesta maçada institucionalizada que é a Europa, uma coisa fantástica está na parede de uma igreja, a caminho da feira da ladra: «Schengen, sai deste espaço!». Assim, sem mais nem menos, a bazar! Um cão tristonho, pelo rente e ar desiludido, alçava ali pata, regando a dita parede. Vadio, ele era, em quatro patas, a imagem da excepção a Schengen: nas suas deambulações por este seu mundo de caixotes do lixo, é a liberdade de circulação total!

quarta-feira, 11 de janeiro de 2006

Um furo!

Tive um furo, ou melhor dizendo, o pneu do meu carro furou! E então são aqueles momentos da descobertas das maravilhas do nosso mundo moderno. Primeiro, fica-se a saber que antigamente o pneu sobressalente era um pneu igual aos outros e agora é uma rodinha ridícula, a vergonha de todas as rodas que se prezam, mais pequeno que os outros pneus e pintada a uma cor absurda, com um letreiro garrafal a dizer que não pode andar a mais de oitenta à hora. Já não basta o embaraço de ficar no meio da estrada naqueles propósitos, ainda se segue depois aquela humilhação do olha aquele furou! Mas há mais! O macaco que vem no carro é um verdadeiro saguí, o liliput de toda a genealogia simiesca, espécie de alavanquinha absurda com a qual se tem que alçar o carro à força de braço, na singular posição de estar metade do tempo de cócoras e outra metade de joelhos, os intervalos agarrado aos rins. Ainda por cima, para ajudar à festa, a coisa tem todo o ar de se desconjuntar a todo o momento e cair-nos o carro em cima de um pé. Agora com os coletinhos verdes fosforecentes, um tipo nestes ademanes vê-se à meia-légua. Dirá quem me lê que o meu problema foi ter sido apanhado nesta. Não, não foi, porque consegui arrumar-me para uma ruela sossegada. Ironia do destino era em frente de uma escola de condução, onde se calhar ensinavam num quadro como mudar teoricamente um pneu. O que mais me desassossegou foi uma amiga minha dizer-me num amigável e carinhoso «coitado de ti só te faltava esta» que «um furo, que é coisa que quase não há». Pois é, minha querida, quase não há mas houve: e foi hoje e comigo, na estrada de Sintra. E não foi ao volante de um Chevrolet, nem pela estrada do sonho!

A caderneta escolar

Tenho pudor em dizer a quem pertencia. Mas ali estava, no chão, à venda, entre bugigangas diversas, a caderneta escolar de uma mulher de quem se disseram já coisas civicamente maravilhosas. É assim a Pátria agradecida e assim são as famílias que, morta a criatura, lhe despejam os papéis para o lixo. Se é para isto que serve ter família, antes ser sozinho, ou morrer pobre, sem nada para deixar.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2006

O homem de Manhufe

Consegui estar este fim de semana em Amarante, por causa do Amadeo de Souza-Cardoso. A casa da família, onde viveu, está fechada a visitas. Para a descobrir é preciso perguntar e muitas vezes. Muita gente da terra nem sabe onde é Manhufe. Mas, enfim, de curva em curva, entre rotundas e inversões de marcha, lá acertámos. Já na rua da pequeníssima localidade, hesitante, abordei um passeante nos seus sessentas, que pela samarra e passo vagaroso me parecia um habitante da terra: «a casa do Amadeo Souza-Cardoso é aquela ali em baixo?», perguntei. «É sim», respondeu-me, solícito, o meu interlocutor, acrescentando, prestável: «mas olhe que ele não deve estar em casa, pois costuma ir até Lisboa». Pois costuma, pensei eu, mas a última vez que isso aconteceu foi em 1916. Pensei mas não disse, talvez com receio de ouvir como resposta um «Ah! Bem me parecia! Por isso o não vejo há tanto tempo».

domingo, 8 de janeiro de 2006

Sendo-se justo

Acabei, enfim, a leitura do «Diário» do José Régio. Hesitante quanto ao que pensariam os seus leitores sobre as pessoas quanto às quais ele formulava, nesse gotejar de pensamentos íntimos, opiniões tão vincadas e sobretudo em que medida se influenciariam irremediavelmente em função dos seus tão vivos juízos de desfavor, Régio prevenia quanto ao que havia de circunstancial nessas suas mordazes opiniões. Vítima de críticas nem sempre respeitosas, desabafou, entretanto, por escrúpulo, num momento de verdade que difícil é ser-se justo quando se é vítima de injustiça.

sábado, 7 de janeiro de 2006

Cantam as nossas almas

O meu pai, hoje faria anos. Nasceu há dois séculos, em 1898. Era mais velho do que o pai da minha mãe. Sempre tive um pai mais velho do que o meu avô. Tudo isso me deu uma noção da precariedade do tempo, do relativo da idade. Absoluto só o nascer, mesmo a morte conta pouco. Hoje, a estar cá, estaria de parabéns. Era o seu dia. Ao nascer, nasci, a possibilidade de mim na forma do ele.

A intranquila sensação

Cheguei com a cidade tragada por um nevoeiro gélido. Acordei com ela devolvida a uma luz crua do sol. O acordar tarde, uma sensação de estremunhamento, a angústia do tempo perdido, a ansiedade do pouco tempo que resta, os sentimentos habituais da intranquilidade. A quatrocentos quilómetros de casa, ou no quotidiano da minha monótona aldeia, sempre a mesma ideia pesecutória do mundo por haver. São quase dez e meia da manhã. A rua vazia, em redor a pacatez dorminhoca de sábado, todos indiferentes ao pecado do dormir demais.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2006

Uma escrita exaurida

Há homens que ficam amarrados ao que parecem. No José Régio são os Cristos de antiquário, a fazer supor que ele era um beato católico, quando ele nega o catolicismo, declarando-se cristão; é a escrita familiar, intimista e dorida, a sugerir que ele fosse um conservador, quando ele se confessa socialista. Mas o que mais espanta é sobretudo aquele ar de eterno celibatário e misógeno, quando no seu Diário o surpreendemos nas suas obsessões sexuais e, quando calhava, a dar-lhes livre curso, até à exaustão. Há homens que parecem, enfim, amarrados ao que ficam.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2006

Morreu

Saudava-o com um «olá, autor de Fast Lane», que fora o seu primeiro livro de ficção. Ele, com a bonomia tranquila expressa num sorriso, respondia com um «olá, ilustre causídico». Hoje morreu, no livro da realidade. E o ilustre causídico, agrilhoado ao remo de mais um julgamento, nem tempo terá para ir ao seu funeral. Olá Cáceres Monteiro, autor de «Fast Lane, um exercício de sedução», esta será a tua última reportagem, em busca de um Deus desconhecido.

terça-feira, 3 de janeiro de 2006

A cidadela sitiada

Uma alma inquieta, mesmo contemporânea, é como uma cidadela medieval, sitiada pelo exterior das suas muralhas defensivas: confinada a si, morre de fome, saindo ao exterior é assassinada. Nisto não há nada melhor do que viver de portas abertas em convívio ameno com os nossos invasores. Claro que há nisso o risco de, num minuto de distracção, se morrer atropelado ou, num momento de distenção, nos miscigenarmos com eles.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2006

A definição de uma alma

Talvez porque o António Telmo fale no José Régio, dei comigo a ler-lhe o diário que o António Maria Lisboa, seu estudioso, compilou e que se chama «Páginas de um Diário Íntimo». E ali encontro a excepcionalidade de uma definição que em si contém, em extensão e densidade, todo o conteúdo de uma alma única: «eu sou, a meus próprios olhos, um doido que por acaso nasceu com juízo». Em Régio a neurastia é aparente, surge apenas como a obsessão da sua inquietude, o seu «furioso desejo de Nada».

Adivinha quem vem jantar?

Nada como a companhia de um livro quando se janta sozinho: o livro evita-nos ter de olhar para os outros, o livro poupa-nos a ter de reparar que estão a olhar para nós. Esta noite foi uma entrevista de António Telmo a José Manuel Viegas, que ele compilou num livro a que chamou, talvez por causa do Agostinho da Silva «Viagem a Granada». Tinha acabado a sopa, uma sopa invernosa e espessa, excelente para um dia de frio, quando a frase chegou: cada português transporta dentro de si a pátria portuguesa.Telmo diz, numa outra entrevista, que Fernando Pessoa é um «poeta enorme». Do ponto de vista do que contém e deixa perceber, esta frase também.

Um tiro às escuras

A referência vem aqui, num artigo sobre a adaptação ao cinema de histórias previamente contadas em livro. Uma das graças é que «no livro as imagens são sempre melhores do que no cinema». Mas o que me ficou foi a menção a Tchekov, quando, a propósito ainda do teatro, dizia, a propósito dos tempos cénicos, que se há uma arma na primeira cena, ela tem que ser disparada na segunda. A atentar em algumas peças de teatro, o risco é serem disparadas sim, mas da plateia sobre o palco. O mesmo se diga do cinema, mas com menos sucesso.

Um homem em fuga

Sempre a fugir do calendário e a tentar fintar a agenda, fazendo da noite dia, e dos minutos horas, lá tento ler, quando posso e sobretudo quanto posso. Claro que, há umas semanas, estava a ler «As intermitências da morte», comprado logo no dia em que ele saíu. Hoje, que o tempo passou sem eu dar conta, continuo a lê-lo, no mesmo sítio onde ia. Saramago falava na folha que eu agora abri, dos que morrem de «morte parada». Também os há, eu sei, e por causa disso, o melhor é eu ler amanhã. Em matéria de leituras intermitentes, hoje fico parado.

domingo, 1 de janeiro de 2006

Dias assim

Só um aceno. Cheguei há momentos. Não tenho nada para dizer e não quero ouvir coisa alguma. Há dias assim, completos!