sábado, 30 de agosto de 2008

Calor tropical

Cinco anéis, três na mão esquerda. Fatinho colonial, abrasileirado, de uma sarja bera que já fora branca. Sapato a condizer, peitilho esburacadinho para ventilar calores tropicais que por aqui não há. Aclimatado, um coletinho em lã a desdizer tudo, um transistor à orelha encostado, em volta de um relato de bola quase inaudível, no meio da algazarra geral. Falava esganiçado, aflautado, saracoteante. Na mesa ao lado, soturnos, densos, conspirativos, de poucas falas, boné leninista, os da velha guarda do Partido olhavam-no com cautelosa desconfiança. Foi no Café Central, que atirava para a rua o grito de uma tabuleta: «o seu café». Foi então que ela entrou. Esguia de felina, ondulante de jibóia, possante de palanca, mulata espectacular. Fizeram-se tréguas por um instante. O do fatinho nem olhou, os camaradas não tinham orientações para poderem olhar. Todos os demais, casais aparelhados e solitários por vocação, embabascaram-se, absortos nela e do sábado esquecidos.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

A minha bagagem

Há biografias que são simultaneamente a vida dos autores e das obras que os fizeram extraordinários escritores.
Passa-se isso com a notável biografa da Franz Kafka escrita por Pietro Citati.
Kafka é o Celibatário, o grande Solitário, o homem em «vertiginosa claustrofobia», Citati é um espírito puro em liberdade, um escritor numa «fuga grandiosa em relação ao infinito».
Momentos há no livro em que, porém, se indiferenciam, o biógrafo já transformado no biografado, o discurso quase directo, o leitor a ler nos lábios de Citati, como se folheasse cada um dos livros deste advogado asilado na Literatura.
Há neste livro rasgos de génio construtivo, como a apresentação teológica de O Processo, a Lei como a casa de Deus, o Tribunal a emanação de Deus, a Justiça labiríntica «a luz ofuscante», um «Deus verídico e enganoso, próximo e afastado, acessível e inacessível, aberto e fechado, luminoso e tenebroso».
Josef K. espera à porta da lei, perde-se nos corredores da Justiça, cumpre «a felicidade do castigo» da condenação da sua culpa: é a culpa que é a «afinidade entre a acusação, vítimas e juízes» e o Tribunal está sempre atraído pela culpa e é o estigma da culpa que atrai o culpado ao Tribunal.
Mas há sobretudo nesta obra única a constante de uma densa humanidade, como a de Gregor Samsa, que um dia acordou em Metamorfose transformado em insecto para viver, enfim, a oportunidade do amor com a única pessoa que o amava no que indiferencia o humano do bestial, o escritor como animal, o mundo como covil, o corpo como miséria, lastro de uma alma ansiosa de plenitude.
Minado por fundas depressões, querendo «altíssimas paredes» que o defendessem dos humanos, Kafka é um dos mais inteligentes escritores do século XX. Morreu em 24 de Junho de 1924.
Viveu como empregado de uma companhia de seguros, deixou uma obra que, tal como a sua Muralha da China «mantém tensas as cordas da alma». Escrevia até altas horas da noite, em estado de semi-inconsciência, descendo cada vez mais fundo às crateras da sua alma, arrebatado, vivendo uma tensão trágica constante, como se numa Colónia Penal. Incapaz de uma relação conseguida no casamento, chegou à noite do noivado, em Berlim, doente ou imaginando estar. «A minha bagagem compõe-se de insónia, peso no estômago, enxaqueca e dores no pé esquerdo», escreveu à irmã da sua noiva, no preâmbulo da «comédia do matrimónio sem matrimónio».Toda a sua vida é a sublimação dessa incapacidade de não ser um homem só, no Castelo do seu refúgio, vivendo como sentimento o terror nocturno da «madrugada dos funcionários».

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

A alma desperta

Há momentos em que nos saturamos mesmo dos chamados «grandes vultos» da Literatura. Aconteceu esta noite com o David Mourão-Ferreira. Lia, meio estremunhado, o conto O Viúvo, quando uma súbita vontade de chegar ao fim me acometeu e o texto é curto, a narrativa breve, mas o sono imenso. A monotonia da história dava então mãos à vulgaridade do modo de a contar. A somar ao desespero descobri nestes contos, que juntos formam a antologia Os Amantes, a obsessão pela palavra «luvas».
Achei-o logo no primeiro, Nem Tudo É História, quando o automóvel capotou, na frase «mas era afinal a minha mão, coberta de sangue, que saía do interior dessa luva rasgada»; revi-o neste irritante O Viúvo quando «Adriano começou, pausadamente a descalçar as luvas», ao chegar ao hotel na praia e reencontreio-o quando, chegado a casa de Rita, aberta a porta por «uma criadita, novita e feia, assarapantada como uma borboleta», Adriano «devagar, meteu as luvas no bolso do sobretudo»; voltaram as luvas quando, num diálogo de ciúme assassino, Rita ironiza que a prenda que Paula, a amante de Adriano, agora viúvo de Elsa, lhe haveria comprado era «um par de luvas»; perseguem-me quando, já no limiar da porta «Adriano resmoneia, de cabeça baixa, enquanto começa a calçar as luvas» e sai de cena «muito mais com o aspecto de um órfão».
Enfim, saturara-me de «luvas» e do livro e do escritor quando, já a escrever este post para dizer isso e bem pior, à procura então de mais luvas para justificar a minha embirração tropecei no magnífico Ao lado de Clara, e nele «Ippolita debruçar-se-á sobre o pescoço de Gorella, depois de cuidadosamente lhe amarrar os pulsos atrás das costas; e tratará então de ir colocando, no pescoço de Gorella, com lentidão exasperante, um apertado colar de lascivas mordeduras; e, a seguir, sempre com os lábios entreabertos, vorazmente subirá até à altura do queixo de Gorella; e, por fim, no instante em que a sua língua deixar de obscenamente se revolver (...)».
Parei, hirto e inesperadamente desperto! Esqueço as luvas, perdoo a monotonia, a vulgaridade, foi-se o sono, «enquanto Giorgio, deliciadíssimo com a cena, se lhes terá reunido e as abraçará pela cintura».
Há alturas em que se descobrem, inesperados, magníficos e excelentes «grandes vultos» da Literatura Portuguesa. Era de noite e custava-me dormir. A leitura é uma excelente forma de manter a alma desperta, começando por descalçar as luvas. Obrigado David.

O genial duelo

Encontrei-o na Livraria Simões, em Faro, casa de magníficas surpresas: um livro de Manuel Anselmo, editado pela Sá da Costa, em 1937. Chama-se Antologia Moderna. Firmado em Matozinhos, o meu exemplar tem uma dedicatória quase ilegível. Anselmo tinha então 25 anos e a obra significou para o seu autor recomeçar a actividade de «ensaísta de compreensão literária».
Anselmo tem sido votado a um profundo ostracismo, talvez por ser politicamente de direita, teórico doutrinador do regime deposto em 25 de Abril. A sua lembrança, ainda hoje suscita reparos.
O livro abre com um artigo sobre o «panorama intelectual e literário do escritor Oliveira Salazar». Deixemo-los. Detive os olhos, sim, no seu magnífico estudo sobre a poesia de José Régio sobre quem escreveu: «Nada evitará, jamais, ao Poeta, esse genial duelo entre o seu sonho de grandeza e a consciência da sua pequenez».
Coincidência, tenho vindo a ler, aos poucos, outro livro, encontrado por acaso na mesma livraria a Evocação de José Régio de Joaquim Pacheco Neves, diário dos últimos dias do autor de Benilde, a Virgem-Mãe. A narrativa começa no dia 9 de Outubro de 1969. Nessa noite Régio seria acometido de um enfarte. Faleceria no dia 22 de Dezembro desse mesmo ano. Todo o livro é escrito para contrariar a ideia de que ele seria um suicida passivo, «conivente», a quem a morte conveio no momento em que já não podia mais viver.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

A vida aos repelões

Depois de ter gozado mais do que a lei manda, Luiz Pacheco dedicou o Diário Remendado «ao Senhor Doutor João Pedro George, colaborador impecável, meu biógrafo improvável», que escreveu o que chamou de «posfácio» de tal obra. O mesmo George edita-lhe agora, com uma introdução, algumas das pachecais entrevistas, num livro tirado pela Tinta da China, belíssimo como todos os livros dessa editora. Vale a pena ler a introdução. E vale a pena notar o aparente fair play de quem foi tratado, precisamente numa entrevista ao JL por «uma espécie de índio chupista». E como se já não bastasse, arrumou-lhe com: «O gajo sabe mais de mim do que eu. Mas isso do posfácio também não interessa: a malta lê meia dúzia de páginas do Diário e larga, ninguém chega ao posfácio».
Interessante, sim, a introdução dizia eu nesta manhã meia confusa de ideias, a escrever depois das onze como se fosse pelas onze de ontem. Nela João Pedro fala de Luiz a propósito da «comercialização da excentricidade», refere-o como «escritor maldito» quando fala na «maldição como estratégia de legitimação», trá-lo a nós leitores como alguém que tem «um grau de liberdade a cujo luxo os outros não se podem dar». Estão quites eles também.
O livro chama-se O Crocodilo Que Voa.
P. S. Uma coisa é interessante, sim, esquecia-me. João Pedro George desmascara quantos andaram a provocar o pior de Pacheco, a viperina língua, o escárnio permanente e quantos fizeram à sua conta manchetes e títulos de sensação! Desde o célebre título de primeira página no defunto O Independente:«Santana só fez merda na Câmara de Lisboa, mas eu acho graça a isso», até ao perguntar: «Quantas coisas fizeste de ilegal ou de condenável?» [Baptista-Bastos], «E vontade de matar alguém, já tiveste?» [idem], há de tudo. Um um crocodilo que voa, sim, mas por vezes muito baixinho.

domingo, 24 de agosto de 2008

Os amantes

Dizem que os editores não gostam que os autores se viciem em contos. Têm talvez a ideia de que estão a dizer concentradamente o que podiam engrossar num livro, diluindo-o.
Num conto talvez seja tudo mais rápido, mais intenso, mais breve, como um beijo numa noite de chegada por contraposição a uma noite de amor na hora da despedida.
Vem isto a propósito do último parágrafo de um conto de David Mourão-Ferreira, chamado Os Amantes, escrito em 1968: «E finalmente deito-me a teu lado. Não sei bem se a teu lado se dentro de ti».
Vi-o esta manhã, por ser capa do livro que comprei ontem. Lê-lo-ei esta noite. Acabei agora, com a noite a chegar, o primeiro dos contos, onde está: «É preciso inventar? Ou contar a verdade? Só o que invento me comove; só a verdade te emociona. Temos então de deitar à sorte: ainda não sei qual de nós merece agora reaprender a chorar». Chama-se Nem Tudo É História. Uma única e a mesma história.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Pese a admiração...

Eugénio de Andrade deveria detestar António Botto como poeta e por isso escreveu: «como poeta desde há muito que o tenho em pouca conta». Eduardo Pitta, que organizou o volume das Canções, lembra isso e lembra mais: que quando escreveu aquilo, ele ainda não era Eugénio de Andrade, mas sim «José Fontinhas». E para que o leitor perceba bem acrescenta, em nota de rodapé, que José Fontinhas é o «nome civil do poeta Eugénio de Andrade».
Ficam quites, pois, Andrade e Pitta e o leitor, basbaque, a ver.
Ah! Esquecia-me: ainda a propósito do brevíssimo apontamento biográfico que faz sobre o autor do poema «Ama sim, mas não obrigues a alma», diz Pitta que Botto, «homossexual assumido» acabaria erradicado do funcionalismo público, onde teria «modesto emprego», em 1942, «num tempo em que os mecenas não punham Fundações aos poetas».
Ora aí está a piadinha assassina! Atirado Fontinhas ao chão, há que pôr-lhe o pé no pescoço. O tiro de misericórdia vem a seguir. Citando-a à obra de Fontinhas enquanto Andrade, ressalva Pitta: «pese a admiração que por ela nutro».
Naturalmente, nem seria preciso dizer, porque o leitor nesta altura já está esclarecido quanto a ser imensa a admiração.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

A Torre de São Patrício

Há no Monte Estoril um Museu da Música Portuguesa. Fica numa casa que Raul Lino desenhou. A bem dizer é mais um arquivo sonoro e de documentação do que um museu. Expostos estão alguns instrumentos musicais que faziam parte da colecção de Michel Giacometti. Poucos. E pouco mais. A casa recebeu também o espólio de Fernando Lopes Graça, mas dele pouco está exposto.
Há em Cascais um casa que inicialmente era a Torre de São Patrício e hoje se chama Verdades Faria em homenagem à mulher de Mantero Belard, seu proprietário, pois adquiriu-a em 1942 e benemérito, porque a doou ao município para que ali continuasse a promoção cultural.
Visitei-a.
Ora há na Biblioteca de Arte da Fundação Gulbenkian, junto a minha casa, o projecto pelo qual em 1919 Raul Lino projectou a «reconstrução da casa do Exmo. Senhor Jorge O'Neill», que era a edificação original da casa de Verdades Faria.
Há pois entre a casa em que vivo e a casa que visitei a distância entre o estar e o ir, entre a necessidade estática de um lugar e a satisfação remexida de uma ideia.

sábado, 16 de agosto de 2008

Uma espécie de Pessoa

«O Destino é uma espécie de pessoa, e deixa de nos falar se mostramos que não nos importamos com o que ele nos faz», escreveu Fernando Pessoa a Ofélia Queirós em 28 de Maio de 1920, no Arcada, perto da hora do jantar. E acrescentava: «Por isso tu deves ter força de vontade de só pensar nisto: gosto do Fernando, não há mais nada».
Pessoa conheceu Ofélia Queirós por esta trabalhar como escriturária no escritório da firma Félix, Valadas & Freitas, Lda., na Rua da Assunção, n.º 42, 2º, de que um seu primo, Mário Nogueira de Freitas, era sócio. Sobrinha do poeta Carlos Queirós mudar-se-ia mais tarde para a C. Dupin & Companhia. Por essa altura o autor da Ode Marítima, morava em Benfica, primeiro no Alto da Belavista e depois na Avenida Gomes Pereira.
Vinte e dois dias antes, Pessoa tinha-lhe escrito: «Então o meu Bébé fez-me uma careta quando eu passei? Então o meu Bébé, que disse que me ia escrever ontem, não me escreveu? Então o meu Bébé não gosta do Nininho? (Não é por causa da careta, mas por causa do não escrever)».
Talvez isto não tenha propósito nem outra grandeza que não seja a da sua pungente humanidade. Talvez por ter acordado cedo, deu-me para ler isto e para isto escrever. Sem mais complicações, é um modo como qualquer outro de começar uma manhã.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

A Lebre

Álvaro Guerra escreveu em 1970 A Lebre. Conheço-lhe mal a obra posterior, mas temo que perca excelência. Verei à medida que lhe encontre os livros, sofrendo o mau para valorizar o sabor do bom.
Talvez consiga acabá-lo hoje. O livro é breve, mas estou a lê-lo devagar. Em cada folha vem ao de cima uma hesitação quanto ao haver ainda mais que se diga depois de escritas como estas. Talvez inventando. «E o que não sabemos inventamos. E o que não inventamos nunca será», diz-se na página 42.
A Lebre é um cenário, de predações cruzadas, Miguel e Sofia «a conjugal mentira - mentira conjugada a dois», Inês, «uma aguda sensação de prazer na ponta dos dedos», António que «aos vinte anos ainda não se luta contra o tempo, luta-se a favor do tempo». Notável.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

A inefável união

Hildegard Bettencourt e Fernando Lopes Graça traduziram «Tristão», um magnífico pequeno conto de Thomas Mann.
É uma história de um amor trágico, vivida num sanatório. Li-o esta noite, impressionado com a força narrativa com que o autor de A Montanha Mágica consegue acompanhar o caudal dos sentimentos amorosos, ao mesmo tempo que a personagem feminina da história arranca do piano o equivalente a todo arco orquestral do segundo acto de Tristão e Isolda, e surge então, o mistério sagrado da consumação o «despertar da paixão» subindo e elevando «em êxtase até à inefável união», uma música e um momento em que «duas forças, dois seres distantes aspiravam, no sofrimento e na felicidade, à união, e abraçavam-se num desejo louco e arrebatado do eterno e do absoluto». Gabriela morre, de tísica e de aniquilamento, consumida pela «vida vulgar, ridícula e, contudo, triunfante» de um casamento infeliz, uma vida profanada pelo «irritante simplismo», pelo «quotidiano vulgar», pelo que é, em suma, a «eterna antítese e o inimigo mortal da Beleza».
Lê-se como se seguisse a pauta da partitura, a poética e a música uma e a mesma forma de dizer.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

A Terra Nova

Há daquelas coisas de que uma pessoa se esquece o que são e depois, quando as reencontra, se penaliza pela amnésia. Uma delas aconteceu hoje, ao comer uma coisa gelatinosa e fibrosa e quase nada saborosa, em que o dente tinha dificuldade em entrar e que no final da refeição deixou o sentimento do vazio que é o prenúncio da fome.
Chamam-se caras de bacalhau.
Ora eu, que nem faço má cara à comida, porque desde pequeno aprendi a lição o que tu pesquinhas há muito quem queira, foi só mesmo em nome desse princípio que lá ingurgitei as ditas caras, empurrando-as com feijão verde, uma batata e ovo cozido na esperança de criar lastro, como se faz no porão dos navios que vogam sem carga.
Regressado, aqui estou com um vago sabor a bacalhau no palato e, por associação de ideias, um travo de Terra Nova, sonho de novidade vivido na solidão de um dóri, de pescador à linha.

sábado, 9 de agosto de 2008

Saltos altos

Eu vinha por um caminho estreito, gradeado, paralelo à linha férrea, ladeado por um muro velho e outras velharias, no qual cabe uma pessoa de cada vez e quando se cruzam um tem de pedir licença e o outro tem que lha dar. Ela ia adiante, num caminhar tal modo miúdo que, mau grado o peso que transportava, um saco numa mão, a pasta na outra e a alma carregada de angústias, surpreendi-me ao alcançá-la. Sucedeu no momento em que o acanhado corredor se abriu num baldio descuidado, pedregoso, terreiro feio que dava acesso, enfim, à estação.
Iniciou-se-lhe aí o momento complicado. Alçada nos seus sapatinhos de salto alto, qual insecto de andar bamboleante, pé aqui, pé ali, dir-se-ia uma aranha em forma de mulher. Visivelmente míope, daquelas para as quais, a não existir a vaidade, se exigiriam óculos, franziu a testa para melhor acertar no local da brita que se ensarilhava nos sapatos e a fazia escorregar, em risco até de cair.
Parei até que se decidisse.
Foi então que tomou uma decisão heróica, demonstrativa que ainda sobeja força de alma neste país anémico: deu dois passinhos atrás e ei-la que contornou pelo largo, assentando os delicados sapatinhos num bocadinho que a Natureza atapetara de relva, em apreço a tão frágeis criaturinhas. Resoluta seguiu em frente. O mundo aplaudiu silenciosamente.
Momentos depois ali estávamos, cada um em sua plataforma, ela a caminho de Meleças, o tic-tac dos sapatos a marcarem a sua presença, na plataforma número dois. Transformara-se numa leoa, lançando em redor ondas de volúpia, do alto dos seus sapatos, do cimo da sua arrogância.