sábado, 17 de junho de 2017

Robert Musil: qualidades e perturbações

Tentei, por várias vezes, lançar-me na leitura do livro que em português se tem chamado, com imprecisão reconhecida O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil. Imprecisão que nasce da circunstância, admitida pelo finalmente encontrado tradutor directo do alemão, João Barrento, de ser essa palavra ambígua para designar o título original Der Mann Ohne Eigenschaften, pois que o termo na nossa língua tanto se refere a «atributos», ou «particularidades distintas do ser», digo eu, como a características positivas de algo, virtudes e valores apreciáveis.
Não consegui, porém, mas estou certo que o conseguirei, os três volumes a aguardarem-me na estante. 
A escrita é simples, não se colocam dificuldades de vocabulário que se tenham de vencer, tempos de narrativa assíncronos que reclamem atenção constante do leitor. Sucede que, de tão aparentemente fácil, a narrativa prende, cada página é um valor maior de conceitos que contêm em si mesmo noções que permitem multiplicar sentidos e propiciam reflexões e um sentimento de pertença e de aprisionamento, e o leitor seduzido pela agrilhoamento à leitura, por ela esgotado, progride cada vez mais lentamente como um comboio a aproximar-se do local do seu estacionamento. 
Por isso me decidi a optar por um outro livro seu, igualmente traduzido do alemão, também por João Barrento, editado em português antes daquele, já em 2005, há doze anos, portanto.
Gostaria de ser daqueles que estão sempre com o último instante, le dermier cri da cultura. Mas não é assim que a vida me sucede. Leio, pois, o que tantos clamariam estarem já a reler. Sem vergonha, eu.
Terminei, eis quanto quero portanto dizer, a leitura do livro As perturbações do pupilo Törless.
Pode-se dizer dessa obra o local da narrativa, porquanto tudo decorre dentro de um internato para estudantes, antigo seminário, não pode é, com palavras nossas, restituir-nos, por aproximação sequer, o conteúdo, menos ainda a importância. Seria como quem ao descrever um corpo humano supusesse ter descrito a pessoa.
Dizer que ali se contam as perversidades, vícios, e a sádica violência, liberta ante cativeiro escolar, é dizer pouco. Acrescentar que estão em presença dois mundos, o linear, cinzento, monocórdico e repetitivo universo da banalidade feita professorado e o incerto, plural, informe ainda mundo de jovens em formação, pulsões à solta, personalidades a rasgar-lhes o corpo, libertando-lhes a alma em ódio e amor, ainda é ficar aquém. Que o também austríaco Sigmund Freud, seu contemporâneo, se encontraria em tantos dos passos da forma de ver pela qual a história se exprime, teria interesse, mas leva a menos do que devia, na fertilidade das pistas interpretativas que o escrito proporciona, das quais o ter a novela conteúdo biográfico não é, sobretudo para algum voyeurismo literário contemporâneo, pela sordidez atraído, moscas, um somenos.
É que tudo se passa, convocando-se lugares narrativos tão incomuns como na matemática a incompreensível aparência dos números imaginários, na geometria o encontro no infinito de duas paralelas que se prolonguem indefinidamente, na teologia a própria noção de um Deus que não esteja em cada uma de todas as coisas, na filosofia Immanuel Kant como se fosse a impossibilidade de se pensar mais do que o já pensado.
Tenho o estranho hábito de procurar no que leio em ficção, longa que seja a exposição, o local onde está a palavra levada a título; no caso, ei-la precisamente na última página, atingida depois de várias sessões de leitura, esta noite: «ele envergonhava-se de ter passado por essas perturbações». Aqui outra ambiguidade, «perturbações» sendo no original «verwirrung» que houve quem traduzisse para este mesmo livro por «confusão», e assim sucedeu com a obra de outro austríaco - e como são tantos e magníficos todos - Stefan Zweig, em língua portuguesa Confusão de Sentimentos, na língua original Verwirrung der Gefühle.
Poderia deixar aqui excertos, tantos são, sublinhados para quem como eu lê com um lápis, sublinhando o que merece ser recordado, a frase, o parágrafo, a página inteira, em traços horizontais e verticais de perícia incerta.
Ao colocar o livro no lugar do seu repouso, vagueei quanto a poder organizar uma biblioteca com um único critério: lado a lado os livros já lidos, a distinguirem-se, indistintos e variados fossem dos que ainda faltaria ler, precisamente o sentido da vida, o já vivido ao lado do que falta viver com a diferença: naquela ao contrário do que seria na minha insólita biblioteca, o valor do tempo sobejante é progressivamente menor, tal como Musil assim viu, ao colocar a perplexidade das divisões que progredindo indefinidamente, deixam sempre resto, como se o zero fosse inatingível, a total ausência um paradoxo, afinal, da existência.