sábado, 23 de abril de 2016

Fernando Namora: retalhos de um povo


Muitos médicos dão em escritores. O drama humano é o seu quotidiano, ou pode sê-lo se à profissão juntarem sensibilidade de alma para os que sofrem e para a vida de onde provêm. No caso de Fernando Namora a isso somou ter iniciado carreira pelo interior do País. A sua escrita traduz crises de existência, as contradições de classe que soube exprimir com sinceridade.


Ao reler Fernando Namora com os olhos de quem sabe, pela aura que em torno de si se criou, espera-se ver literatura crítica para com os poderosos, condoída pelos humildes. E terá alcançado essa posição em algumas das suas obras, não propriamente nesta, que escolhi como tema de crónica.

Lidos com os olhos actualizados, comparados com quanto foi escrito por muitos seus camaradas das letras, estes contos, editados em 1949, são manifestação integral de um homem que ainda não encontrou equilíbrio entre a vida coimbrã de onde proveio, misto de boémia e Arte, e as asperezas do mundo, sovado e iletrado, para o qual se lançou no exercício da sua clínica.

Oriundo de uma família de modestos recursos, natural da aldeia de Monsanto, Fernando Gonçalves Namora soube trazer para a Literatura, porque o reconhecia como seu, tal como Vergílio Ferreira, o vocabulário rural que faz com que, os mais snobes considerem esta escrita como “regionalista” e assim a tentem apoucar, como tentaram com gigantes como Camilo ou Aquilino Ribeiro.

Mas não é isso que importa, nem isso que o ultrapassa mesmo num mundo de hoje em que há cada vez mais que fale com menos palavras do dicionário. O interessante é a crueza, crueldade mesmo da sua verdade.

O médico que ele ali relata, que um leitor segue como sendo o próprio autor que pela ficção escrevesse a sua autobiografia, é um ser que assume amiúde facetas detestáveis. É o domínio do mando, o médico que «se sentia feliz por dispor dos receios ou das lamúrias dos camponeses», o dono da vida e dono da morte.

Autoridade e soberba, diga-se, que sabe quanto isso concita de desprezo, logo o do funcionário de justiça, por exemplo, para quem «nós médicos éramos uns porcalhões, uns tipos endurecidos. Gostávamos de remexer em imundícies», mas desprezo afinal também o dos que a sua prática médica não convencia, antes de não curar. 

Mundo cão, mesmo o seu, profissional, é caldeirão de rancores, vilezas, intrigas, embora o que haja ao longo da narrativa, e dite estes sentimentos negativos, seja o pulsar errante de um jovem médico, inseguro ante a doença, presa fácil do meio hostil e que dá de si a pior face: «O médico – escreve – é, na aldeia, um ornamento público, como a igreja, o padre, o bosque de madeiras afamadas», pois «os camponeses vinham ao consultório para admirar a face imberbe do novo médico ou para concretizar desconfianças».

Reciprocando, a personagem dos Retalhos não se coíbe de dar voz, e uma vez mais supomos ser o autor que fala através dele, a um desprezo pelos naturais onde exerce a sua medicina. É o alentejano para quem «o homem do Norte é (…) o galego» porque «quando arribam os ranchos do Norte, já raros, chegam como inimigos», os alentejanos que «dão nabos às vacas, enjoam a hortaliça. Não têm flores, não têm nada de mimoso»; é o pai, de mulher a esvair-se na agonia de um cancro, enxotar os filhos «com a voz e com os pés, como se enxotasse cães»; as mulheres «glutonas da vida alheia», os camponeses «esses labregos atemorizados» ante os quais ele se sentia «feiticeiro medieval», o homem «bexigoso e amulatado», a «ladroeira dos ciganos», que «eram tão nojentos que causavam ânsias».

Não é fácil assim ler Fernando Namora. Primeiro, porque os seus livros caíram no esquecimento, mesmo este que deu um filme de Jorge Brum do Canto, depois porque, quem puder achar um, duvido que não se sinta com este modo, verdadeiro é certo, de viver a vida com todos os demais.

Trata-se, porém, importa sublinhar, de um grande escritor. Momentos há em que a forma de dizer o mostra em alto nível. Quem, de entre tanto vulgar hoje com livro impresso e fama fácil, escreveria: «O vento gania de saudade de outros lugares, molhava-se de chuva e tristeza, e tudo isso, prisão e desespero, escorria também da minha face».

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Texto publicado na coluna Ler em Português no jornal Mundo Português, um semanário dedicado à emigração.

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Fernando Assis Pacheco: Trabalhos e Paixões


Chegaram a Portugal pobres, os galegos. Aceitavam os trabalhos mais modestos, mais duros. Mas o seu espírito empreendedor porfiou. Hoje, muitos lugares na restauração, no comércio, na indústria até, têm a sua marca. Fernando Assis Pacheco, jornalista, soube dar-lhes voz, por ser um de entre eles.

O livro lê-se com um sorriso, embora nem tudo nele seja alegre; sucede que a pena do autor consegue captar no ar a alma daquele povo, resistente, carinhoso nos sentimentos e no vocabulário, em que avultam os diminutivos, gente que em tanto se identifica connosco, os portugueses.
O subtítulo da obra dá o mote àquilo de que nele se trata: Benito Prada é o «galego da Província de Ourense, que veio a Portugal ganhar a vida».
Do que li, há muitos anos, ficou-me na memória a frase com que inicia: «Quando o Padeiro Velho de Casdemundo teve a certeza de que Manolo Cabra lhe desfeiteara a irmã, em dois segundos decidiu tudo. Nessa mesma noite matou-o de emboscada, arrastou o cadáver para o palheiro e foi acender o forno com umas vides que comprara para as empanadas da festa em San Bartolomé». Cortada a cabeça do corpo, o Padeiro «chamuscou-o bem chamuscado», pelas duas da manhã «untou o Cabra de alto a baixo com o tempero, enfiando-lhe um espeto pelas nalgas. Às cinco estava assado». 
Este arranque, trágico, violento, cómico na sua rudeza primitiva, marca o tom da escrita. E logo o remate, que estoira com um foguete de lágrimas e risos: «”Caramba”, disse o irmão do meio, que admirava todas as invenções do mais velho, “é à segoviana!”».
Escrita por quem foi jornalista, do extinto semanário “O Jornal”, a obra é um pequenino prodígio quanto ao modo de dizer, de observações acutilantes. É o Grego «que nascera para vender a pele do diabo se lhe dessem percentagem conveniente», é a filha do Manca perante a qual «Benito começou a fazer-se distraído das mãos, a tocar-lhe num ombro, depois num braço, quando a estreitou pela cintura com a desculpa de ver como ficava um saiote de lã (…)», o próprio animal de nome bíblico, «Noé, o mulo (…) um perpétuo sobressalto» e ele, Benito, «em menos de um fósforo estava (…) a tirar a minga dos calções e a mijar bem mijada a palha do almoço de Noé, que se encanitou com o ultraje desenhando um coice», enfim, tantas frases em que o leitor se detém para melhor as saborear.
Dir-se-á que o livro, como todos os romances e novelas tem uma história. Mas que importa ela quando é mais o modo de a contar que interessa? É essa a diferença entre a grande e a mínima Literatura. Hoje, como afinal, sempre, desde que pelo século dezanove a figura do romance ganhou vida, existem livros espessos em que o escritor vai pura e simplesmente contando, cenas, lugares, vidas e lembranças, amiúde com pormenor cinematográfico, fazendo o leitor ver através das letras o que passou a observar melhor quando surgiu o animatógrafo que deu em cinema: são estendais feitos para entreter, em que um sala é inventariada quase que de bibelot em bibelot, os amores infelizes relatados, começando-se pelo tempo em que aos amantes lhes nasceram os avós.
Nada disso aqui. As figuras são reais, mesmo na sua brutalidade, e o picante da sua linguagem picaresca é porque o leitor é transportado para o pequeno mundo onde tudo isso é possível. Que melhor exemplo que o padre Oyarbide que, virando-se para Filemón Prada, pai de Benito, que achava o ritual da igreja uma maçada, o admoesta, primeiro, com um «mas é assim, meu filho, e quem somos nós para mudar uma coisa que vem dos alçapões do tempo?» mas logo a seguir, piedoso e tolerante o absolve: «E também te desculpo a má criação de faltares à missa, porque mais vale não te ver enfastiado e a coçar as partes quando celebro Deus».
Voltarei e este autor assim como voltarei àqueles sobre os quais escrevi as duas crónicas anteriores, Vergílio Ferreira e Fernando Namora: é que decidi-me falar aqui de livros e cada um deles escreveu muitos livros. Dir-me-ão que são livros difíceis de encontrar e sei que é verdade. Mas eis o meu propósito: tornar a leitura procura, como quem sai pela manhã por entre matos e planuras em busca de perdizes, longa sendo a caminhada.

Fernando Santiago Mendes Assis Pacheco, que se definia como «portugalego», morreu em 1995. Neto materno de Santiago Doallo Álvarez, galego da aldeia de Melias, Ourense. Tanta falta faz.

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Esta é uma das crónicas que tenho vindo a publicar no semanário "Mundo Português", cujos leitores são essencialmente os portugueses emigrados. Porque ao contrário do que tantos pensam merecem melhor do que serem tidos por incultos e tratados com o desdém de quem, por ter ficado aqui, se julga mais.