domingo, 27 de dezembro de 2020

Um bicho de afectos


Suponho que difícil é escrever a biografia de alguém que tenha ainda vivos parentes mais directos, por haver o risco de ferir susceptibilidades, ao ir além em revelações embaraçosas e suponho também quanto não seja fácil escrever a biografia de alguém com uma personalidade de extremos e tudo é o caso de Fernando Assis Pacheco: é, pois, tarefa difícil para que não torne a biografia ficção, amputado o biografado da sua completude.

Não poderei concluir que esta o conseguiu, porquanto, para formular juízo, precisaria conhecer aquele cuja vida fica assim relatada, mas talvez me entenda comigo, entre o que julgo ser o que os outros dele pressupõem e aqui se esclarece agora ao ler, e aquilo em que eu estava, afinal, errado e tive, enfim, a oportunidade de descobrir.

Os que o consideraram Assis Pacheco jornalista, no Diário de Lisboa e em O Jornal, para não mencionar a República e tantos outro periódicos, acertaram, mas muitos, reduzindo-o assim, talvez tenham esquecido o escritor, da ficção à poesia, passando pelo ensaio, e sobretudo escritor que na prosa jornalística de distinguia pelo cuidado na fórmula, pela ironia no modo de dizer.

Os que lhe conheciam o estilo, irreverente até na maleabilidade que dava à língua portuguesa e ao modo de surpreender pela construção frásica, talvez ignorassem quanto se perdeu no domínio da ensaística académica, nomeadamente na Literatura alemã, em que não completou os estudos que iniciara sob a direcção de Paulo Quintela.

Mas são aqueles, os do estado de conhecimento de muitos desses vectores da pessoa que são, afinal, parte subsidiária de uma vida exterior, resíduo apenas da densa interioridade que define o ser, os que precisariam de um livro como este para nele acharem as contraditórias pulsões, as do amor e do sofrimento, da ternura e da cólera, da irrealização e da meticulosidade. Para saberem que ao terem-se rido ou irritado com a sua presença em A Visita da Cornélia, talvez não tenham pressentido quanto há de lastro dorido das vivências da guerra que lhe vincaram a sensibilidade.

O que a biografia de Nuno Costa Santos me trouxe e por isso a breve epígrafe levada à contracapa, frase de Miguel Esteves Cardoso, a considera maravilhosa por ser verdadeira, foi a revelação do que será para muitos um pormenor, não fosse uma daquelas surpresas que a vida nos revela, restituindo-nos à humildade do pouco que sabemos e mostrando quão precária é a aparência de que fazíamos certeza.

Tinha lido dele os Trabalhos e Paixões de Benito Prada, publicado em 1993, pela Asa. Fui dar, outro dia, na estante, para além da edição com encantadora encadernação, de que aquela editora fez imagem de marca, uma outra, de bolso, capa mole, afinal aquela que lera em primeira mão. E logo no arranque do livro a prosa me ficou para todo o sempre, com ela o espasmo violento daquela forma tão brutal de começar: «Quando o padeiro velho de Casdemundo teve a certeza de que o Manolo Cabra lhe desfeiteara a irmã, em dois segundos decidiu tudo [...]».

Foi com esses olhos que encomendei à Tantos Livros, essa carinhosa livraria que fica ali pela Marquês de Tomar, ao chegar-se à Duque de Ávila, e o li em três fôlegos nocturnos.

Supunha-o galego, de uma Galiza que tivesse sido local de nascimento, fosse em si a origem e o modo de ser. Foi, pois, a biografia sobre a qual escrevo que me devolveu afinal ao conhecimento de que o livro foi caminhada em retrogressão, em busca da ascendência avoenga, tal como uma outra obra não concluída sobre um avô paterno que viveu anos em São Tomé.

Restituída a criatura à sua realidade, não se esgotou ela em menos verdade, nem em menor riqueza. 

Construído a partir da vida documentada e das memórias relatadas, o livro traz-nos esse «pasmado sem cura», sôfrego de vida, e que a viveu em grande parte nesse «mundo em Azert» para retomar uma frase de um falecido querido amigo, o Cáceres Monteiro, seu colega de jornalismo, meu colega de curso.

Não digo mais. Lido um livro, chegando o momento de o trazer aqui, fico sempre com a ideia de ter ficado por partilhar a riqueza do seu conteúdo, aquilo que dele retive, os momentos que me foram dados viver com a sua leitura. Se há nessa omissão propósito, ele é o de apelar os outros  a que leiam.

Fernando Assis Pacheco morreu em frente à Livraria Buchholz. A verdadeira Livraria Bucholz morreria depois: «Morre-se praí/morre-se num instatemente de nada/morre-se a morte mocha/sem a gente dizer ai», escreveu no poema O Mocho e o Macaco.


segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

A inesperada maravilha


Ter nas mãos um livro inesperado por não se saber a razão pela qual se adquiriu, ver nele, como autor, um nome que logo se alcança ser pseudónimo, autor que mesmo depois de desvendado, não há dele vestígio conhecido. Lê-lo, e nele descobrir magnificência no modo de escrever, riqueza vocabular e a estilística que convoca do real a existência e da fantasia a possibilidade. Chegar ao termo com o coração apertado pela tragédia humana que o sentimento de quem o escreveu soube encontrar e a que não fugiu, e tudo isso trazer eco de memória. 

Eis quanto encontrei ante o livro China, País da Angústia, assinado como de Ruy Sant'Elmo, afinal Abílio Augusto de Brito e Nascimento, personagem ignoto mas que consegui saber ter sido juiz em Macau. A obra, com capa de Fong-Iôn-Chi foi impressa em 1938 e publicada pela Parceria António Maria Pereira.

São contos, Kakemonos, lhe chamou o autor, como «a pintura chinesa, executada em peças móveis de papel ou seda, colada sobre um tecido ou papel mais forte, que lhe serve de moldura e se prolonga pela parte superior, terminando por um rolo de madeira». 

Mas não só: há a apresentá-los uma rememoração de alguns dos conceitos taoístas, e tanto eles regressam como luz interior ao conteúdo de cada narrativa, trazendo-lhes, nesse «o quer que seja»  um outro sentido para além do imanente conteúdo narrativo, o mundo na sua identidade em constante transformações, pois, em todo esse seu mundo aparente de sombras, dor e agonia, «não há senão vida...Transformação incessante...A morte não existe!».

Tanto há no que li que traz recordação e presença, logo o título, a convocar o Angústia em Pequim de Maria Ondina Braga, que, tal como ele, soube embeber-se dessa alma oriental no sentido da máxima melancolia e da íntima compreensão, mescla que em outros convidaria ao distanciamento, almas geminadas de Camilo Pessanha e Wenceslau de Morais, que a vida amaldiçoou, martirizando-os até ao supremo exaurimento.

No momento de vir aqui, não sei o que vos traga do que li. 

São as excelentes formulações, formas de ver ante o que se lê, como ao falar da orografia local e seus montículos se lhes refere como «o dorso das eminências, zebrado de clareiras», ou a propósito dos tormentos infligidos por ordem do mandarim, «cevando a raiva apavorada da reivindita», ou, cruzando-se, indiferente, com a carpa agonizante junto da folha verde-jade dum golfão azul «o estertor da morte, a convulsa agitação dos opérculos, faziam estremecer as escamas que tremeluziam em lucilações cor de brasa», ou, enfim, a velha e seus «olhos pequeninos, sumidos entre papulusidades refranzidas das suas pálpebras oblíquas, que perscrutavam o insondável».

É a recriação da língua, indo surpreendê-la em vocábulos raros mas que arrastam, alguns pela onomatopeia, ideas, factos, sensações, como a «bruma glutinosa», o «ar bochorno», a «poeira exil das fumaças» de ópio, a «fauce hiante» dos leões de Fó, as «curvas alvorescentes» da delicada figurita de rapariga, a «nevoeira incoercível» cor de zinco, as «arnelas dos dentes à mostra», a «tremulina murmurante da sua ondulação».

Mas é sobretudo a natureza invulgar, surpreendente, insólita mesmo dos costumes e suas tradições que são o rasto da narrativa, ao trazer-nos, invulgar, o necessário casamento para um morto e assim se não perde a linhagem, ao contar-nos o inquestionado modo de a ida ao templo trazer a prenhez da mulher do homem estéril, que no silêncio resignado quanto ao modo de ela ter sido alcançada, encontra, sim, meio de procurar o que pretendia, afinal, a descendência, ao afogar-nos os sentimentos pelo ópio que não mata, mata sim a insaciedade do viciado, ao relatar, com grandiloquência o suicídio vingativo de quem não poderia, sem perder a face, bandido embora, sofrer derrota às mãos alheias.

Muito mais haveria nesta obra dedicada a Leal da Câmara.

É preito de respeito que, ao falar do que se leu, não se estrague o prazer a quem puder  vir a ler. Livro raro este, será improvável que haja quem eu possa assim ofender contando mais. Fica, no entanto, apenas este excerto por uma outra legítima razão, a de a minha escrita sobre quanto li ficar aquém e ficará seguramente muito aquém de quanto li e me trouxe a inesperada maravilha.