quinta-feira, 3 de junho de 2010

Agostinho da Silva: as memórias do amor

Assina como se fossem as Memórias de Mateus Maria Guadalupe. É Agostinho da Silva. As pessoas conhecem o filósofo, sobretudo o conversador. Pelo estilo vadio das conversas muitos pensam-no como um entertainer, como aquelas estrelas dos talkshows. A profundidade das ideias, a originalidade das observações, essa escapa. Os media nivelam por baixo, a TV nisso é assassina quando clownesca.
Herta, Teresinha, Joan é uma sua obra de ficção. Viu-a publicada em 1953, Surge agora pela mão amiga da Biblioteca Editores Independentes, numa edição em oitavo, cuidada, bem impressa.
São três histórias de amor, as únicas histórias que merecem, afinal, ser contadas e perpetuadas.
São três histórias de fidelidade, aquela que há quando na diversidade se persegue o mesmo amar sob variadas formas de amor. Amor arquetípico, o que Agostinho da Silva nos conta, paradigma universal do sentimento ansioso, reiterado, persistente, nunca desconsolado mesmo na impossibilidade, pois há o arrebatamento e a espera.
«Cumprido amor» mas não consumado amor, com Herta Bikensrheim, estranha viajante naquele iate «fino e forte, audacioso e calculado, pronto para todas as surpresas e audaz para todas as aventuras», sentimento guardado pelo barbudo marujo, «português do Algarve», que é uma outra forma de ser-se português, «diabo de português que em todo o mundo vais e vês», afogado em «um Martini seco e em razoável miséria de conversa», luxuoso, nas docas de Montevideu, em Recife e em Dacar, afinal a vida indiferente à geografia feita só espaço para além do tempo. Herta de olhos verdes, como ele não vira outros se não em Ferragudo no instante agónico do poente quando o sol sangra, casada com um pintor cego não por lhe faltar a visão mas porque «nunca pinta o que vê», por achar que «imaginar e pintar é o mesmo, fora a técnica». Narrativa de alicerces no acaso porque «temos errado muito e do muito que temos acertado, da metade que temos feito por nós e da metade que Nosso Senhor tem feito apesar de nós».
Amor bárbaro, do beduíno puro à azulácea celta, amor de espectador «um bom espectador, o que significa uma estrita obrigação, uma quase ética obrigação, pelas próprias essências do teatro, de colaborar no espectáculo» e o espectáculo é assistir, terceiro, ao enamoramento sem história de Joan e Andrew, condenado a morrer e a guerra mata-o, matando-o a ele, amor feito de espera e tempo, um dos possíveis amores porque «eu, afinal, namoro todas as meninas do mundo», irrisório quando «o que ela estava talhando não era o meu casamento, era o casamento dela», e em tudo isso a «somenos importância». História de quem sabe que o tempo o come e não se pode comer o tempo que nos aborrece.
Enfim, Teresinha, magnífica, conto de meiguice e de minúcia, acaso para um amor de quem sabe que «namorar é um fim em si mesmo» e que «casarem-se as pessoas não tem nada que ver com as pessoas que se casam», para aquela menina e «aquela menina não havia de poder dizer a São Pedro, num longínquo dia, que só vivera no nundo para reparar nos outros, e que nela ninguém reparara, nos seus discretos encantos, e talvez nas audácias, mais escondidas e internas. E que ninguém a servira».
Enternece ler tudo isto.
E no remate, a fronteira do gostar, esse aquém do amor e dele evasiva: «Estaria eu gostando de Teresinha? Pareceu-me que não e me parece ainda hoje. Do que eu gostava era disso mesmo, que Teresinha estivesse comigo».