domingo, 29 de outubro de 2006

A inteligência das horas

Hoje, domingo, acordei com a hora mudada. É sempre este o momento em que me confronto com o carácter rudimentar da minha inteligência, ao ter de fazer contas quanto a saber que horas eram quando agora são as que são. Desta vez acho que consegui perceber o que se passou: o relógio atrasou. Já não é mau que até aí ainda chegue. O que não consigo entender é se com isto fiquei a ganhar mais tempo de vida, ou mais perto do fim. É a vantagem dos estúpidos, viverem felizes, ignorando quando chega, afinal, a sua hora.

quarta-feira, 25 de outubro de 2006

Pomposamente serventuário

Hoje de manhã olhei para ele. Parece que interrompi a sua leitura há uma eternidade, encarcerado que estou na colónia dos trabalhos forçados. Fui buscá-lo, arrrastando-me para o canto da mesa onde, paciente, me esperava. São assim, silenciosamente disponíveis, nossos amigos, os livros. Abri na última crónica que lera, texto risonho, de uma malícia inteligente, uma escrita refinada. Nela falava-se no «affaire» que «a mãe» tivera há muitos anos com um cangalheiro de Delft «cuja empresa enterrava nessa altura metade do País Baixo e tinha infra-estruturas para enterrar o resto». Graça estava, porém, no lema do seu amante gato-pingado, que podia ser o meu nos dias actuais, os de desespero serventuário: «tudo no fúnebre, nada nas pompas!». São os «Bilhetes de Colares», daquele que os assinou como A. B. Kotter.

domingo, 22 de outubro de 2006

As mil e uma noites

Depois de uns dias a trabalhar dia e noite, sem tempo para ler quanto mais para escrever, consegui, nem sei como, uma sexta e um sábado para vir a Londres, aos arquivos britânicos, para acabar o meu próximo livro. Perto do hotel havia um restaurante persa. Chamava-se Sherazade, a história daquela que se amarrou ao cruel destino de ter de contar intermináveis histórias, para escapar à morte certa. De algum modo é assim também comigo. Quando cheguei aqui definhava em agonia, já sem nada para contar.

sábado, 14 de outubro de 2006

Gente, fazendo gente

Eu vejo por aí gente que tem, todos os dias, imensas coisas que leu. Eu tanta vez nem jornais leio. Eu sinto que há por aí gente que tem, a todas as horas, carradas de coisas para dizer. E eu tão frequentemente estou vazio de pensamentos. Eu vejo por aí gente que se adorna, para vir mostrar aos da rua do pescoço para cima e dali para baixo. E nisso eu que há dias em que nem saio de casa nem arrisco o pescoço. Eu vejo que há por aí gente, muita gente, essa gente, toda a gente. Olhando para o mundo, como se batendo à porta de uma retrete, um tipo espera ouvir, numa voz alteada da multidão apinhada lá por dentro: está gente!

terça-feira, 10 de outubro de 2006

Estudos cansados

Ando a coleccionar e a jurar que hei-de ler uma série de livros organizados pelo Pedro Calafate, o mesmo que dirigiu a notável «História do Pensamento Filosófico Português» e a que ele chamou «Portugal como problema».
Não tenho nenhum dos livros aqui. Mas depois de mais uma madrugada a trabalhar e poucas horas de sono lebro-me que, ao folheá-lo, dei conta que o Frei Manuel do Cenáculo Vilas Boas, franciscano e filósofo, apóstolo da Razão, a propósito dos estudos seus antecedentes lhes chamava os «estudos cansados».
Como eu, que não sou propriamente um paladino da razão geométrica, o compreendo muito bem!

sábado, 7 de outubro de 2006

Uma vida adverbial

Hoje estive a olhar para um gato. Dei comigo a pensar o que será passar o dia molemente a dormitar e acordar para preguiçosamente comer. Tudo isto dissolve, tudo isto apetece. Não sei é porque me assaltam estas observações: talvez, raivosamente, por ter uma vida de cão.

segunda-feira, 2 de outubro de 2006

O aprendiz das letras

A Bertrand, sem vergonha, deixa esgotar Mestre Aquilino e nem sequer o reedita. Só num alfarrabista consegui encontrar «Um escritor confessa-se», a sua auto-biografia, escrita em 1972, de que me ficou um exemplar num momento da minha vida desfeita. Tem, na edição de 1974, em que o adquiri agora, um prefácio do José Gomes Ferreira, notável pela ironia, a brincar consigo próprio, ele o «aprendiz das letras», a imaginar o livro e o seu intróito numa promoção que dissesse «inútil nota preambular de José Gomes Ferreira postfaciada por 400 páginas de Aquilino Ribeiro». Como este mundo de comedimento morreu, substituído pela impante arrogância, de pomposos prefaciadores de obras que nunca seriam sequer capazes de esboçar.

domingo, 1 de outubro de 2006

A negação

Encontrei um diário incompleto. No dia 14 de Maio de 2004, uma sexta-feira, escrevi: «Hoje o dia soterrou-me. Regressei a casa a cambalear por fora e a rastejar por dentro. Lembrei-me da frase do Milôr Fernandes «se você não consegue realizar seus sonhos, realize ao menos seus pesadelos». Lá vim, por isso, escrever estas linhas a este diário. Amanhã é sábado». Leio isto e copio a frase, letra a letra, hoje, domingo de tarde. Penso que é possível ser-se tudo, até negar-se a si próprio o direito de o ser.