domingo, 30 de dezembro de 2012

A fossa trituradora

O livro é tremendo. Breve mas lento ao ler-se, porque aleija, porque vai encharcando a alma de sentimentos, rememorações, pensamentos. Há nele uma narrativa que lembra o mundo enclausurado de Kafka, também ele checo.
O subterrâneo é o seu lugar alegórico, qual caverna de suplícios, porão de escravidão operária. Mas é um livro sobre a vida.
Hanta trabalha numa prensa que reduz papel a um compacto que, depois de reciclado, dará novo papel. Trinta e cinco anos de trabalho e uma identificação do homem com a sua máquina, da função com o seu destino. Lentamente adivinha-se o final daquele homem tornado carcaça, carcomido pela dor e pelo dever, minado pela contemporaneidade.
O triturado é amálgama do que mais diverso seja papel, sejam sacos poeirentos de cimento, embrulhos sanguinolentos de talhos ou bibliotecas inteiras jogadas para o fosso da inutilização, às quais retira, sem que isso interesse a quem seja, preciosidades que o génio humano encerrou em livro, salvando da morte a ideia como se resgatasse da guilhotina a cabeça que a gerou.
É neste cenário que Bohumil Hrabal constrói esta sua magnífica narrativa, afinal um ensaio sobre a transcendência onde ela menos se espera, feita de asco e de sublimação. Um livro de que se não pode revelar o segredo, pela impossibilidade de o transmitir intacto.
Todos os seus livros são auto-biográficos. Depois deste encomendei outro, agora em edição espanhola e uma sua biografia. O primeiro chegou antes deste fim-de-semana alongado. Lê-lo-ei depois, não sem que deseje voltar a este, a "Uma Solidão Demasiado Ruidosa", publicado já em 1992 pela Afrontamento. A história de uma fossa trituradora, afinal a alquimia essencial do que vive provindo do que morreu.

sábado, 29 de dezembro de 2012

Ruben A. em biografia

 
Ainda vou a meio e lerei tudo. Estou naquela fase em que raramente deixo um livro por terminar, mesmo quando arrasto a leitura por um longo tempo. É a biografia de Ruben A., escrita por Liberto Cruz e Madalena Carretero Cruz.
É difícil, eu sei, o género biográfico, porque se pode ficar prisioneiro de simpatia ou antipatia pelo biografado, escurecendo os seus maus momentos ou acentuando dele os piores instantes. No caso é mais difícil porque o biografado é um ser incerto, que viveu em desconcerto e em modo errático, porque nele a graça da blague obnubilou muitas vezes o sentimento profundo e as ideias invulgares. Mas sobretudo porque se trata da biografia de quem escreveu a sua própria memória, através dos três volumes do livro O Mundo à minha Procura e os seis das Páginas, tudo narrativas centradas sobre o que viveu e viu viver, entre o luxo fulgurante da abundância de vida e a precariedade dos meios de subsistência com que tantas vezes se viu perseguido, nessas guinadas de altos e baixos dos que verdadeiramente são. De quem escreveu livros que quase ninguém leu e fez disso chiste como consolo.
Talvez falte ao livro aquela chama de alma que Ruben A. colocou em tudo quanto escreveu, aquele modo de ser diferente em que muitos viram o snob outros, não o dandy da Linha, mas sim a manifestação radical, meio anarquista, da estética do absurdo, a provocação, a modernidade. Compreendo que não é fácil captar-lhe do espírito a essência e, nessa faceta, a biografia é por isso mais o relato da viagem do que a dos sobressaltos do viajante. Para se alcançar o pulsar irrequieto daquele cérebro e a síncope daquele coração, que o trairia, é preciso ir-se directo às fontes, à sua ficção, aos diários e reflexões, mesmo ao recentemente editado teatro - para mim o seu género menor, ele que o cultivou como interessado e culto espectador na sua Londres vista a representação de que antes lera o argumento, os estudos académicos sobre o seu D. Pedro V. Os biógrafos foram mas o leitor terá de ir. Visto, assim, a biografia enquanto cronologia cumpriu a sua missão: alicia. Dá vontade de ler do biografado a obra, mesmo àquele que já a leu.
 

domingo, 23 de dezembro de 2012

E que eu sorri

Precisamente neste dia, 23, no ano de 1992, Vergílio Ferreira encerrava a sua "Conta Corrente", o controverso diário, que saiu em duas séries, pela Bertrand. 
Controverso porque intrinsecamente verdadeiro naquela força interior, surgida das entranhas dos sentimentos, mesmo os mesquinhos, que um Homem integral não é só feito de grandeza, a fomentar desencontros e rancores, vindictas mesmo. 
Era uma quarta-feira. 
«Quando é que acaba com isso», perguntara-lhe, amigo, Eduardo Lourenço, dorido por sabê-lo enclausurado na obsessão e vítima do próprio vício. 
Acabaria no final desse mês não sem uma íntima revelação do que seria, depois disso, um seu livro póstumo: «A propósito. Desisti definitivamente das "Cartas a Sandar". Estou fora de jogo».
Terminou o que fora, em vida, uma "Alegria Breve": «Seria, aliás, edificante, que à aproximação do Natal eu acabasse em cânticos à alegria», desejou-se ele, bem sabendo que visava o impossível. E tanta coisa. «E de na execução da minha vida sem sentido poder dizer como Deus que tudo está bem».
De todos os livros que julgo ter lido, e de que me vou esquecendo até dos títulos, de todos quantos se interiorizavam em mim fazendo o que sou, escolhi este. «Alegria, alegria. Vou pensar com muita força que ela existe e me pegou ao colo. E que eu sorri.»
Bom Natal a todos.