sábado, 30 de setembro de 2006

O mundo lá fora

Comecei ontem ainda, já de noite. Mesmo a propósito, «As noites brancas», e logo na primeira folha o «será possível viver sob este céu gente zangada e injusta?». Continuo hoje, sábado de manhã, extenuado, criatura intermédia, fazendo, tal como o sonhador do livro, de mim mesmo um inimigo. Vou na terceira noite. Lá fora o mundo deu em chover.

sábado, 23 de setembro de 2006

O Outono

Esta madrugada começou o Outono, a chover copiosamente. De manhã a cidade estava desolada, com areias espalhadas, esgotos entupidos, folhas a revoar, e os velhotes que acordam cedo sem saberem para quê, a arrastarem-se pelas ruas desertas, a caminho de tanto faz. Por vezes voltam com um saquito de pouco para um almoço de nada. Amanhã é domingo, ainda é pior. Seria o dia de lhes chegar a família, que raramente vem.

quinta-feira, 21 de setembro de 2006

Maria

Eu se não acredito na transmigração das almas, sou um crédulo no símbolo de um acaso. Ela chama-se Maria e baptizou o seu endereço no msn com uma palavra. Ela chama-se também Maria e é a personagem do livro que esta noite leio para o apresentar amanhã, a surpreender-se em Moçambique com tantas vezes ouvir essa mesma palavra. A palavra de que faço bandeira ao acordar e esperança para o dia seguinte quando me deito é Hakuna Matata. É o «carpem diem» africano, o aproveita o teu dia, mote tristonho numa vida despediçada.

quarta-feira, 20 de setembro de 2006

O adelo da vida

«Não me lembro de nada anterior aos livros». Quem o diz é Cruz Santos, um homem que viveu no mundo da edição. Cada vez são menos estas pessoas que ao livro dedicam uma vida sacrificada. Encontrei outro dia um desses, alfarrabista filho de alfarrabista. Ali andava ele de feira em feira, entre os gananciosos das primeiras edições, e as viúvas a desfazerem-se, envergonhadas da sua miséria disfarçada, do que restava na defunta estante lá de casa. Quantas vezes me dói quando vejo, no adelo da vida, uma dedicatória amorosa que o destino atirou para o acaso de alguém que a lembre. Salvei muitas e guardo-as no silêncio recolhidas da minha livraria, devoções a indiferentes, amores esquecidos, na forma de um autógrafo sentido.

segunda-feira, 18 de setembro de 2006

O efémero

Estamos em época de estudos bocageanos ou estudos «bocagianos», como diz uma brochura da Câmara Municipal de Setúbal que mão amiga me mostrou. Bocage, não o que dá nome à rua onde está o meu escritório, que é o botânico, mas sim o outro, o poeta, o «incapaz de servir num só terreno». Morreu desgraçado, condenado ao efémero do deboche, esquecida a grandeza do génio. Não há imbecil que não conheça dele a despropósito uma anedota!

domingo, 17 de setembro de 2006

O vagão fantasma

«Na sequência das greves dos ferroviários e sabotagem aos comboios como medida reivindicativa, o Governo determina a utilização do “vagão–fantasma”, um vagão aberto cheio de grevistas presos, utilizado à frente da locomotiva, para impedir a sabotagem da via férrea». Foi em 1919. Assim pareço eu agora, colocando-me, aprisionado, à frente da locomotiva da vida, para evitar sabotá-la.

sábado, 16 de setembro de 2006

O dia dos jornais

Lembro-me. Era um adolescente, estudava o liceu em Viseu e queria ser culto. Por isso lia na Biblioteca Municipal coisas que não entendia, requisitava na carrinha biblioteca itinerante da Gulbenkian livros que o funcionário me perguntava se eram para algum outro, mais velho. Mas lembrei-me hoje de quando íamos, pelo fim da tarde, a pé, perto precisamente da Biblioteca, esperar, ávidos de saber, a camioneta que trazia os «jornais de Lisboa». Àquela remota província chegavam, atados, vindo da longínqua e inacessível capital do saber. Disputavam-se os poucos exemplares. Depois, eram uns velhotes de ar endurecido e desconfiado a esconderem, conspirativos o «República», debaixo do casaco, nós, uns jovens vaidosos de atrevimento, a mostrarmos orgulhosos, no café, que líamos o «Diário de Lisboa». Tudo isso já acabou. Já acabou o «República» do Raúl Rego, o «Diário de Lisboa» do Ruella Ramos, o «Século» do Pereira da Rosa. Já acabou o «Diário Popular», já acabou «A Capital». Hoje voltei aos meus tempos do liceu em Viseu. Vou esperar aqui em baixo que cheguem os jornais de Lisboa, para que não esgotem. A diferença é que eu estou em Lisboa, são todos em muitos exemplares e eu não sei se ainda tenho a mesma alegria ao trazê-los para o café.

sexta-feira, 15 de setembro de 2006

Sem outra lei

Tentei não ler o Borges em português, para esperar o dia em que pudesse lê-lo no original. Encontrei-o agora, em livrinhos pequenos, daqueles que se transportam na pasta ao lado do que pesa como obrigação. Ainda por cima o Jorge Luis Borges escreve textos pequenos com ideias grandes, como se tivesse pena de quem tem pouco tempo. Hoje, nem sei como, lá foram mais umas folhas vividas e numa delas o que poderia ser um modo de viver, não fora o moralismo endémico da infância, o sentido do dever da juventude, o sentido dos limites desta idade: viver a vida «sin otra ley que la fruición y la indiferencia inmediata».

quinta-feira, 14 de setembro de 2006

O problema do se

Eu sabia que havia uma lagoa das sete cidades, descobri hoje que havia três cidades dentro de uma cidade e várias pessoas dentro de uma pessoa. Num mundo assim, um homem tem muito por onde passear-se. Assim mesmo, reflexamente.

segunda-feira, 11 de setembro de 2006

Chevalier servant

Mimadamente disperso, como diria uma amiga minha, ando a ler a esmo o que os outros já leram há séculos. E ainda por cima não tenho vergonha de o dizer. Ontem estive com os «Bilhetes de Colares», escritos entre 1982 e 1987 pelo A. B. Kotter, esse fantástico pseudónimo que parece autêntico, e que o ainda sobrevivente jornal «Semanário» editou há dezasseis anos. São textos curtos, que se lêem antes de dormir e que dão um sonho risonho. O lido ontem, antes da «deita», era sobre um tal fictício Henri de Beaucul de Monfart, amanuense de Paul Bourget, «chevalier servant» da mamã do autor entre 1937 e 1939. A prosa é doce de estilo e picante de ironia: «Fauxcul, como nós lhe chamávamos», escreve o Dr. Kotter, «por ser mulherenguíssimo, dizia sempre que a Mãe submetia a ortografia à fonética porque pensava com o coração». E continua, a rematar: «Esta causalidade chocha, assim metida a martelo, só enganava, julgo eu, a própria Mãe, vaidosa como todas as mulheres, e era a maneira de Fauxcul se insinuar, felino, entre os lençóis da Senhora sem deixar de luzir nos olhos de Bourget». Ora aí está uma maneira agradável de se começar o dia, a rir. Tem de ser, porque tenho de ir trabalhar! Mimadamente disperso, entre outras coisas trabalho numa profissão que é uma espécie de condenação às galés.

domingo, 10 de setembro de 2006

Ausência de si

«Há dias, em que o rosto até se pode transformar e se ausentar de si mesmo... », li isto aqui -»., a propósito do chão de prata. Li e perguntei-me, como se a um espelho me visse, reflexamente, que poderia eu mais dizer.

sábado, 9 de setembro de 2006

O cemitério da razão

A frase dizem-me que é do Albert Camus, o homem revoltado: pode ter-se razão e perder. É por isso que a verdade é um combate diário e corpo a corpo e os cemitérios estão cheios de cruzes de reconhecimento póstumo. Há muitos que preferem ficar vivos. A sua sobrevivência é a demonstração da sua vitória.

quinta-feira, 7 de setembro de 2006

A grilheta do dever

Havia no Jardim Zoológico um elefante que a troco de uma moeda tocava um sino. Ensinado, recusava, jogando-as fora, as moedas escuras, só aceitando as prateadas. Os miúdos riam a bandeiras despregadas. Amarrado ao inferno de ter ganhar assim o que lhe davam para comer, o animal metia dó. De vez em quando soltava aquele som lúgubre, de aflição, como se lhe faltasse a naturalidade do seu mundo ao qual o haviam raptado. Lembrei-me dele esta noite e do sentimento de profundo desapontamento irritado dos meus pais ante a minha tristeza. Acho que já morreu, ou pelo menos matei-o na minha memória, esgotado de ter pena.

quarta-feira, 6 de setembro de 2006

Anrique Paço d'Arcos

Vi na passada semana no JL que passariam no dia 2 de Setembro cem anos sobre a data em que nascera Anrique Paço d'Arcos. Em 1993 a Imprensa Nacional editara-lhe as «Poesias Completas», que vai agora republicar. Irmão do escritor Joaquim Paço d'Arcos estavam ambos praticamente esquecidos. Do Joaquim, que foi funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros, ainda se encontram pelos alfarrabistas algumas edições do «Tons Verdes em Fundo Escuro», escrito em 1946, do seu magnífico conto «Samovar», e mesmo a história de «Venâncio», na qual todos os funcionários públicos se revêem e o seu inevitável «Ana Paula». Agora do irmão Anrique é que pouco aparece. O «Dicionário da Literatura Portuguesa no Mundo» ignora-o, a História da Literatura do Óscar Lopes e António José Saraiva que eu tenho dos tempos do liceu nem nele falava. Claro que eu esforço-me por acreditar que não há acasos. Mas como explicar que tenha encontrado durante as férias, deambulando já nem sei por onde, uma terceira edição do «Amores e Viagens» do Joaquim, em terceira edição da defunta Parceria António Maria Pereira, publicada em 1943, e ver nele uma comovente dedicatória ao irmão Anrique, aquele que «deste rancho de irmãos que entrou na vida rico de todas as ansiedades». E como explicar sobretudo, ao ler, precisamente no JL a ligação de Anrique a Teixeira de Pascoaess, dos quais ali se publicam duas cartas, que eu não me lembrasse sequer que, precisamente em nome do acaso, escrevera já, curiosamente neste mesmo blog, então a celebrar «minha intrínseca tristeza, essa forma melancólica de viver, connosco por companhia», isto mesmo, que hoje reli, como se outro o tivesse escrito! Perplexo parti à descoberta, para me cruzar, no espaço poético com a magnífica ave-azul.

terça-feira, 5 de setembro de 2006

Enfronhado

Dei conta ao reler-me, o que raramente faço, pois nunca tenho tempo: uma pessoa regressa de férias, enfronha-se na profissão, cheio de bons propósitos organisativos, a querer que ela seja apenas uma parte da sua vida, necessária mas que não ultrapasse o suficiente. Vejam o resultado: nestes últimos dias quase só falo de Direito, do que está, do que virá, do que tomara que viesse. A continuar assim, a coisa dá para o torto.