sexta-feira, 17 de outubro de 2008

A ilusória inutilidade

Sentei-me num banco do passeio público a ler. Fazia-o sem óculos. O passeio público era o corredor do Centro Comercial Colombo. O conseguir ler apenas com os meus olhos foi porque o corpo de letra era maior. Trouxe-o agora para casa, um livro que Georges Simenon não escreveu. Dois anos antes decidira não mais escrever. Estas memórias ditou-as. Chama-se Lettre à ma mère. É uma récita nostálgica, amorosa, de um amor feito de ausências. Inicia-o por descobrir que ao refugiar-se no mundo interior que lhe era familiar Henriette Brüll parecia estar já no outro mundo. É assim que vêem os olhos dos outros. Vou seguir com os meus, desta vez com óculos. Tinha-os aqui, esquecidos, por uns momentos ilusoriamente inúteis.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

David Levine

O que faz a cultura de uma pessoa? Tanta coisa miúda, dispersa, atípica, fora do contexto da vida, longe do expectável, às vezes reles outras grandiloquente demais para a própria capacidade. Lembrei-me disto a propósito de um enorme artigo que não tive a coragem de ler até ao fim. O tema era o jornal literário New York Review of Books. Pensei e foi um caudal de recordações neste fim de tarde em que tenho de sair para rua, sem vontade. Primeiro, ainda com o artigo aberto diante dos olhos, o ter comprado tantos exemplares desse notável jornal, regularmente, dobrando-os muito cuidadosamente na pasta para não vincar indevidamente o papel, hábito nascido do meu psiquismo obsessivo e de ter aprendido a estimar o que é caro, como no tempo em que se forravam as capas dos livros para os não sujar ao lê-los. Depois, a imagem evanescente da menina de olhos negros da banca de revistas ali nos Restauradores, de uma beleza triste esmaecida num sorriso bonito, a mesma que oferecia cromos gratuitos, excedentes das promoções, ao meu ansioso Afonso, tão miúdo então, e que já nem perguntava nada ao estender-mo, mais o seu irmão europeu, o Times Literary Suplement. No meio desta nuvem nostálgica de lembranças, a memória de que o NY nascera de uma greve do New York Times que deixara sem trabalho os críticos literários e outros colaboradores culturais que se reuniram em torno da ideia de uma publicação autónoma que não apenas um suplemento dentro de um jornal. E, enfim, enfim não!, porque a verdade é que foi por aí que comecei e me entristeci e por causa disso aqui estou, foi saber que está praticamente cego o David Levine, cujo explêndido traço caricatural valia mais do que tanto artigo de opinião, tanta recensão, tanta doutrina, tanto do que eu, regular comprador de um jornal que nunca assinei [«eu sei que é mais barato, deixa lá!»], não lia, guardava para depois, um depois que nunca houve até um dia, vivia por empréstimo numa casa na Rua das Trinas, deitei tudo fora, ou deixei lá ficar quando saí, é o mesmo. Não sei porquê, talvez porque fossem os seus desenhos que em cada jornal que comprava me rasgavam os olhos iluminando-me a alma sobre quem era cada um daqueles que a sua pena resumia a linhas enoveladas de uma caricatura, o David Levine tornou-se uma figura inesquecível; criaturas da cultura, da política, do mundo, personagens de um mundo de ironia, suspensos num instante fugaz de existência. Ao contrário do escultor, que é a mão da posteridade, o caricaturista é a dedada de um instante: ali a arrogância da intemporalidade, aqui a humildade de um instantâneo. Está cego, acho que os leitores começaram a notar os sinais, pela incerteza do traço, o tremer-lhe a mão na assinatura. Se há Deus, é para que não veja mais. A Natureza também é assim, poupa-nos ao limite da dor.
P. S. Se alguém quiser entristecer-se, o artigo está aqui, o jornal lê-se aqui. Abre-se e o cartoonista é outro. A vida segue, inexorável. Desculpem-me sugerir isso, o compartilharem um mau momento.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

O homem que via passar os comboios

Viajar de comboio e no comboio ler O Homem Que Via Passar Os Comboios é uma experiência única, o treca-treca da composição a marcar o compasso do ritmo da leitura. A história é uma narrativa de aprisionamento e de libertação. A personagem é um funcionário de uma empresa holandesa de produtos marítimos, com cartão de capitão mas que a monotonia amarra à mediocridade de um emprego em terra. O acaso da falência fraudulenta da empresa, a que ligara tanto a sua vida que nela resumia a própria vida, lança-o no caminho da aventura. Mata por um acaso, ao não aguentar ouvir rir a dançarina de cabaret com quem sonhara dormir. Quando cheguei ao meu destino, uma mulher que alugava afagos fazendo trottoir em Paris ajudava-o a encontrar refúgio que a sua imprudência torna perigosamente precário. Ele tinha-a querido apenas por companhia, num hotel barato das imediações. É um livro de George Simenon, sem Maigret. Apenas o comissário Lucas, no Quai des Orfèvres, da Polícia Judiciária, mesmo assim, discretamente: o crime é apenas um pretexto, um décor para a alma humana mostrar a sua verdade. Foi ter visto a jovem mulher do velho patrão em camisa de noite, o corpo à transparência, que desencadeou tudo. O tempo futuro nasceu de um tempo possível, que nunca viria a existir.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

O tempo simultâneo

Disseram-me que estava esgotado. Talvez por isso quando o encontrei comprei-o. Tinha-o lido há muitos anos. É dos livros cujo breve enredo é difícil esquecer. No caso vi que a tradução era do João Barrento. Lê-se depressa. A escrita é fácil. O efeito explosivo vem depois quando já nem se pensa no que se leu. Ontem, entre três linhas de Metro, a amarela, a azul, a vermelha, consegui alcançar as folhas finais. Depois foi ter-me enganado no que li e vir para casa ruminar contra o que supunha ser um erro. Com o meu pobre alemão fui ao original que está on line. Lá estava o mesmo. Na página quarenta e quatro do meu exemplar a jovem personagem era uma criança de dezassete anos. Duvido que se seja propriamente uma criança com essa idade, mas adiante. Aos dezanove quantas ainda são infantis. Uma delas ia comigo no Metro. Não fosse o corpo a saltar-lhe atrevido de dentro da roupa, supor-se-ia, pelo que dizia, uma garotinha. A mãe dava-lhe cinco euros por semana de semanada, ela deu um cigarro a cada um dos vorazes rufiões da sua idade que a acompanhavam, de mau semblante, piores ideias. Mas na página quarenta e nove pareceu-me ter visto que a mesma personagem, a da minha leitura, sem que o tempo da narrativa tivesse mudado, tinha dezasseis anos.
Só a noite passada venci, voltando a ler, a minha dúvida.
Trapalhão a escrever, trapalhão a ler. Não era a mesma criatura com duas idades simultâneas. Dezasseis anos tinha a criadita, dezassete a filha da patroa, Grete, a irmã de Gregor, exactamente esse, Gregor Samsa, o caixeiro-viajante que um dia acordou transformado em insecto. No seu quarto as paredes eram altas, o céu distante.