quarta-feira, 30 de setembro de 2009

À Sombra, de Jerónimo Negrão Buisel


Imagine-se que se compra um livro num alfarrabista. Um livro pequeno, brochado, mas ainda com os fólios cosidos, que pertenceu a uma qualquer biblioteca, talvez particular, de quem o numerou com uma vinheta, daquelas que se colavam com goma arábica. Um livro impresso - e cito tal e qual está no seu frontespício - na «Typographia Editora José Bastos», que era no número 100 da Rua da Alegria em Lisboa.
Um livro que saiu sem data, mas que tem um prefácio datado de 17 de Outubro de 1915. Um livro que se chama À Sombra e  tem como subtítulo e de novo a grafia da época «versos colligidos em 7 mezes de preso político no Limoeiro».
Imagine-se ainda um livro que tem aposto no verso da capa um ex-libris, que é coisa do tempo em que a propriedade dos livros se assinalava assim, um ex-libris que tem o logotipo de uma caravela, ornado com uma pedra de armas cujo lema é «tole lege». Um ex-libris que nos diz que pertenceu ao contra-almirante João Correia Pereira. Um livro autografado pelo autor.
Imaginem-me agora à procura de saber quem é o autor desse livro e descobrir que «natural de Portimão. A profissão de empregado comercial era complementada com a prática da escrita, que cedo desenvolveu. Foi colaborador de vários jornais e revistas, fundador e director da revista "O Algarve". «À Sombra» foi o seu único contributo literário. A nível político, continuava a defender os ideais monárquicos, o que o levou a ser perseguido e preso no início do actual regime. Membro do Partido Regenerador. Fazia parte do conjunto de figuras políticas notáveis de Portimão na segunda metade do século XIX».
Só mais um esforço. Imaginem-me, só para terminarmos, à procura de quem foi o almirante João Correia Pereira e descobrir que publicou um estudo chamado A Marinha de Guerra e o Império  na Revista do Ultramar, em 1948.
Voltemos à realidade, deixando a imaginação. É este o prazer dos livros, a teia que se urde em torno deles, fios de vida que se espalham entre as paredes da biblioteca, pelos quais passeia a aranha da fantasia.
Ah! O autor chama-se «Jeronymo Negrão Buisel». E os versos, coitadinhos dos versos que são tristes suspiros de uma alma agrilhoada. Cito um, por amigável compaixão: «Amas a Nosso Senhor/que morreu por toda a gente,/e a mim não me tens amor, que morro por ti somente». Chama-se Ciúme.



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terça-feira, 29 de setembro de 2009

Estilhaços, um livro de...



Quando se arrumam livros descobrem-se neles coisas extraordinárias: são os que tiveram importância e hoje já não sabemos porquê, aqueles que nunca tiveram qualquer espécie de relevo e que comprámos sabe-se lá a razão, aqueles que de súbito ganham um momento de atenção no nosso quotidiano.Eis o caso.
Não sei como classificar o livro Estilhaços. Sei que foi escrito por um advogado que nasceu em Luanda e exerceu advocacia até 1999. À data da publicação era consultor jurídico do Instituto da Conservação da Natureza. Segundo a badana do livro «na qualidade de especialista de Direito do Ambiente foi orador convidado em diversos congressos e seminários, portugueses e estrangeiros, e professor em cursos de formação, de pós graduação e de mestrado». O seu autor chama-se Adolfo Morais de Macedo.
Tudo faz sentido, tudo é lógico. Agora a surpresa. Em 1981 fundou o grupo de rock Auaufeiomau, em 1984 os Mão Morta. O seu nome artístico é..Adolfo Luxúria Canibal! Voilá!
E ora bom dia! Aprendamos a ser um outro. Não Somos Aqueles é o nome de um dos seus escritos: «Somos aqueles contra quem a televisão nos preveniu». Exactamente. Ainda ontem à noite, solenemente.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Lendo jornais


Dia sem possibilidade de ler nada, salvo o jornal da manhã. A Capital, de que o Sousa Tavares (pai) foi director, chamava-se «o seu vício diário». Como nunca me rendi a vícios - sou capaz de fumar um cigarro e deixar de fumar os outros dezanove - porque tenho outros graves defeitos, leio de quando em vez um jornal, nem sempre o mesmo. Outro dia uma jornalista dizia-me «não leio esse jornal, porque... (...)». E eu pensava: «se seguisse esse critério não lia nenhum. Sobretudo o Diário da República».

Maria Ondina Braga, um blog


A edilidade de Braga descerrou um busto de homenagem a Maria Ondina Braga. A câmara patrocina um prémio literário com o seu nome. Já tinha dado o seu nome àquela rua que se vê na fotografia. É o possível reconhecimento local de uma grande escritora. A verdadeira homenagem ainda está, porém, por fazer-se, a edição completa das suas obras. Estão esgotadas, nem pelos alfarrabistas se encontram. Soube outro dia que a Maria Ondina deixou um romance inédito. Sei que entregou para edição o segundo volume da obra Mulheres Escritoras.
Criei um blog que lhe era dedicado. Um dia abandonei a escrita pessoalizada na net, e o blog ficou inerte. Lembro isto porque me lembro também da sua escrita, fina, de interior, a sua alma delicada a esvair-se em cada página. Maria Ondina deu-se em livro. Talvez haja razão para que eu recupere aquele blog. Ele, afinal, não me pertence.

domingo, 27 de setembro de 2009

A República dos Corvos, de José Cardoso Pires


Há quem leia para seguir a narrativa, outros o modo de dizer. No meu caso acabei por seguir de linha em linha ao encontro de uma expressão feliz. Li a história de Vicente, o corvo de taberna, o Corvo Taberneiro, o corvo que está na heráldica de Lisboa, Lisboa a República dos Corvos. É um conto triste, que termina com uma morte e com a sua tristeza desesperada, crucitante, ele «que até e lisboeta de nascimento é com grasnar de reguilas e tudo», agora, morta a galinheira, que era a sua companhia e o seu sustento «mantém-se à cabeceira da defunta, não consentindo que ninguém lhe toque e lançando, num crácrá aflitivo, a mais íntima e pessoal de todas as suas vozes».José Cardoso Pires escrevia com sumptuosidade. Uma sumptuosidade pesarosa, mesmo quando revoltada.

sábado, 26 de setembro de 2009

A Orelha de Deus, de Jenny Schwartz


É como o raio verde, aquele momento magnífico e único em que o sol se afunda no mar, e é o pôr do sol: o teatro tem também aquela permanente possibilidade de o milagre quebrar o seu efeito, surgir, feio, desdentado, indesfarçável, o desastre.
Sozinho no palco cada actor enfrenta o medo constante de uma má expressão, uma falha de memória, uma deixa que se perdeu: representa na boca de cena do precipício.
Acabo de chegar da Culturgest. A peça chama-se A Orelha de Deus. Escreveu-a Jenny Schwartz. Encenou Cristina Carvalhal. Representam Cucha Cavalheiro, Diana Sá, Emílio Gomes, Luísa Cruz, Manuel Wiborg, Pedro Carmo e Sandra Fiadeiro.
Há no teatro aquele momento em que está em palco a representação da personagem de que costumamos ser nós os intérpretes. O receio de falhar cola-nos ao palco, as ribaltas como testemunhas, os seus longos olhos a seguirem-nos cada passo, cada gesto, cada fala.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Amor e Dedinhos de Pé, um filme de Luís Filipe Rocha


Sentava-se atrás de mim no anfiteatro três. Deu em cineasta como eu dei em advogado e outros em tanta outra coisa. Nele vê-se que é um dom. No Cénico de Direito foi o Senhor Corvino na peça Volpone de Ben Johnson. Digo isto mas não vi a peça. Rodou o Amor e Dedinhos de Pé, que estreou em 1993. Não fui à estreia mas ele convidou-me. Fui hoje reparar esse erro. Numa das cenas, dono da casa, estava o Henrique Sena Fernandes. Tinha-o visto uns dias antes na mesma Cinemateca a falar com o Paulo Rocha sobre o Wenceslau de Moraes. Foi ele quem escreveu o livro. Não o li apesar de ter estado em Macau. Confesso a vergonha. Hei-de ler. Aos poucos um homem encontra-se consigo próprio. É esse o tema da narrativa contada em filme por Luís Fiipe Rocha. Magnificamente.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Clepsydra, de Camilo Pessanha



Fui hoje à Biblioteca Nacional porque se apresentava o acesso on line ao espólio de Camilo Pessanha. O acesso é por aqui. Autor de um só livro, o autor da Clepsydra desinteressou-se, porém, da sua publicação. Devemo-la a Ana de Castro Osório, a mulher que o amava e não o quis para marido.
Hoje, Daniel Pires encarregou-se de lhe resumir a biografia. Por várias vezes se referiu a seu filho, depreciativamente: a propósito do desinteresse pela obra do pai, a propósito da venda, por puro intuito mercantil, da sua colecção de arte chinesa, que se pode ver hoje no Museu do Oriente, depois de ter sido recusada por vários museus.
Esta noite, já em casa, abri o livro que Danilo Barreiros dedicou em 1961 ao testamento de Camilo Pessanha: «Crescendo num ambiente alheio às convenções normais, quase desprezado pelo pai, que o adoptava de "Malau" (macaco), teve João Manuel formação deficiente, Camilo Pessanha não sentia por ele grande afecto e nunca se empenhou em orientá-lo na vida. Tratava-o com excessiva severidade e, uma vez, aos surpeendê-lo a namoriscar Ngan Ieng, expulsou-o de casa, deixando-o entregue a perigosa vadiagem».
Caramba, que dor para quem se embevece ante o simbolimso florido da sua escrita, para quem, sabendo-o maçon, o imaginava fraterno e solidário.
Nunca fantasies em Literatura. Lê.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Suspiria, de Dario Argento



Uma academia de dança alemã que encombre um areópago de bruxas e se chama Erasmus de Roterdão. Uma vaga reminiscência do oculto que se vai intensificando. Uns quantos símbolos esotéricos entre os quais o inevitável olho no triângulo. Um odor a morte e a perigo.
Suspiria vale a pena pelo modo como Dario Argento gere o suspense, pela beleza de algumas imagens.Tem primarismos quando tenta alguns efeitos especiais, ingenuidades de representação, quebras de sequência. No final coloca-se a questão filosófica da verdade do Maléfico, do transcendente pagão como ramo da psiquiatria.
Lendo a explicação técnica percebe-se que a coloração muito contrastada resulta da junção de uma película de baixíssima sensaibilidade a um excesso de iluminação dos décors. Tipicamente alemães, aliás, bizarros.
O filme, rodado em 1976, seduz para além da história. É o mesmo com a excelente literatura: a narrativa é um incidente.
À saída um jovem dizia: «há uma cena que está cortada». Explicava qual. Fiquei fascinado. Em 1976 ninguém sonhava que ele viria a existir.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

A Ilha de Moraes, de Paulo Rocha



Entre 1975 e 1983 o cineasta Paulo Rocha foi adido cultural na Embaixada de Portugal em Tóquio. Não sabia. Estudou a obra de Wenceslau de Morais, o que foi tema  em 1982 da sua longa metragem A Ilha dos Amores, em que Rocha protagoniza Camilo Pessanha e Luís Miguel Cintra o próprio Wenceslau. Ainda tentarei ver.
Vi sim este fim de tarde na Cinemateca Portuguesa um documentário seu que aproveita o trabalho de base desse estudo: A Ilha de Moraes. Foi produzido em 1983. São basicamente conversas sobre o biografado, em Macau, primeiro, no Japão, depois, seguindo a ordem da sua vida. Paulo Rocha fala japonês com fluência, a côr local torna-se mais vincada.
Cinematograficamente quase não há técnica. Sem efeitos, a câmara frequentemente imóvel, como se preguiçosa a escutar a narrativa, há momentos de alguma monotonia. Além disso a qualidade da imagem é pobre, o som ténue.
Verdadeiramente o filme não capta a essência da sensibilidade de Moraes, se bem que perpasse por ele uma devoção permanente. Mas cumpre a sua função. Ao chegar a casa tenho comigo o Bon-Odori em Tokushima, o livro do último dos lugares onde Moraes viveu, depois de ter renunciado a tudo quanto o ligasse a Portugal. Já o tinha lido e sublinhado, agora quero lê-lo uma outra vez. É isso que nem sempre o bom cinema, o de substância e o que tem técnica, consegue: vontade de mais.
Oficial de Marinha, sobretudo escritor, Moraes é um português triste como tantos portugueses. Sofreu de uma insidiosa doença, a doença de quem ama. Morreu sozinho.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Os Meus Sentimentos, de Dulce Maria Cardoso



Quando conheci a escrita da Dulce Maria Cardoso já ela tinha ganho o prémio Acontece com o seu livro Campo de Sangue, mas eu li primeiro o que foi o seu segundo livro. Segui-lhe o conto que divulgou na revista do jornal Expresso, vivido num farol, em tons de azul, e o livro de contos que juntou esse a outros, o Até Nós. Do que li não gostei de muito pouco. É uma escrita notável. Os Meus Sentimentos magoa a alma, dói. Um livro belo, uma escrita que arrebata a mente. Faz perguntar onde viveu ela tanta vida.
Hoje vejo-a premiada pela Europa e a sua editora a reimprimir-lhe os livros. Fico contente, como aquele que tivesse dito «eu já sabia».
«Quando nos contam uma história ouvimos sempre outra», diz Violeta, de quem os homens riam, mesmo quando lhe gozavam o corpo, apoucando-a, «uma mulher tão gorda, tão gorda que quando caía da cama caía para os dois lados», Violeta que se esvai em agonia, porque ao fim de uma vida «apanhámos o hábito de nos magoarmos» e «os moribundos são mansos que o desespero é coisa de vivos».
Um dia estive em Urbino e encontrei-a, traduzida em italiano. Eu sabia, Violeta «um nome de uma flor que também é uma cor».
Agora é uma questão de tempo e o rancor da crítica ser inferior à inveja dos outros escritores.

domingo, 20 de setembro de 2009

Fears, por Zero Mostel


A constipação a ir-se, posso, enfim, rir. Tudo começa quando se sente o nariz preso, como entalado por um livro de rija lombada. Surge o mal estar e surgem os medos. Querem ver como? Espreitem aqui, já agora até ao fim. Boa noite e amanhã há mais.
P. S: A propósito de Zero Mostel: foi em 1977 o grande actor de The Front de Martin Ritt, com Woody Allen.Um filme de saltarem as lágrimas, de tristeza.Um filme contra a paranóia do macartismo, essa doença viral dos polícias da Arte.

A Metamorfose, de Franz Kafka



Baseado num estudo científico publicado na Psychological Science, a revista norte-americana Miller-McCune divulgou a ideia: a leitura de literatura absurda estimula a mente.
O exemplo é o mesmo que serve de gag a um momento do filme de Mel Brooks que em português teve como absurdo título Por favor não mexam nas velhinhas e que no original se chamou The Producers: um texto de Franz Kafka.
Sabe-se que Brooks deu à cena a história de um produtor teatral, Max Bialystock, que consegue evitar a falência lançando uma peça que julga ser um fracasso garantido, o que lhe permitirá lucrar com o dinheiro das suas anciãs financiadoras que, assim, não terá de remunerar. O guião escolhido acabará por ser o escrito por um nazi refugiado na América, criatura meia tresloucada, ainda a sonhar com o regresso do seu Führer, vivendo numa mansarda miserável, entre pássaros e goles de schnaps: Springtime for Hitler. Mas há o momento em que, envoltos em manuscritos possíveis, entram pelas primeiras linhas de um livro de Kafka: «Quando Gregor Samsa despertou uma manhã na sua cama de sonhos inquietos, viu-se metamorfoseado num monstruoso insecto». «É bom demais», conclui o produtor, enfastiado, na tela o magnífico Zero Mostel. Lembrei-me hoje, da ideia da metmorfose e do fracasso garantido como causa de sucesso, altamente estimulantes, diga-se.

sábado, 19 de setembro de 2009

Tenho uma grande constipação, de Fernando Pessoa


«Tenho uma grande constipação,
E toda a gente sabe como as grandes constipações
Alteram todo o sistema do universo,
Zangam-nos contra a vida,
E fazem espirrar até à metafísica.

Tenho o dia perdido cheio de me assoar.
Dói-me a cabeça indistintamente.
Triste condição para um poeta menor!

Hoje sou verdadeiramente um poeta menor.
O que fui outrora foi um desejo; partiu-se.

Adeus para sempre, rainha das fadas!
As tuas asas eram de sol, e eu cá vou andando.
Não estarei bem se não me deitar na cama.
Nunca estive bem senão deitando-me no universo.

Excusez un peu... Que grande constipação física!
Preciso de verdade e da aspirina.»

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Saber Viver, da Baronesa X (Adelaide Bramão)



Abriu uma secção na revista Modas  Bordados, de Maria Lamas, a que chamou Vida Feminina. Depois dedicou-se à escrita doméstica e social. Um dos seus livros mais famosos chama-se Saber Viver. Em 1944 já ia na 5ª edição. Como o esclarece o sub-título, são «regras de etiqueta». Assinava como Baronesa X. Chamava-se Adelaide Bramão, mulher de Alberto Allen Pereira de Sequeira Bramão.
Há um perfume de aristocracia como toque de finesse: «A Condessa de Marval atravessava, vagarosamente os salões, para se certificar de que tudo estava em ordem. Recebia nessa tarde as suas amigas. As festas que dava tinham sempre um cunho de distinção, presididas pela sua alta competência de requintada artista, a que juntava ainda as grandes qualidades intelectuais», assim abre o capítulo intititulado «um chá de tarde, preparativos para a festa».
Sob a forma de um diálogo romanceado, citando, entre tantos, Lamartine e Montaigne, são conselhos para saber estar. Um homem não deve entregar a uma senhora um bilhete de visita que indique o seu título social; «esses são reservados para as relações entre homens», ensina a Baronesa que, na quinta edição viu o texto ajustado em «um ou outro ponto em que a instabilidade social modificou esta ou aquela forma de cortesia».

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

A arte de não fazer nada



São verdadeiros actos de amor e de dedicação, quase um serviço público. Claro que muitas vezes são «picados», os seus textos, as imagens que editam, pura e simplesmente copiados sem ao menos a gentileza de uma menção. Conhecia os Dias que Voam, agora outro chamado Ilustração Portuguesa que me remeteu para um terceiro, o Artistas Portugueses. Publicam material antigo que anda muitas vezes pelos esconsos dos alfarrabistas, que os herdeiros jogam fora, com desprezo, ao esvaziar as casas vazias de quem os coleccionou. Num deles encontrei esta Crónica Feminina de 1964, dedicada à magnífica arte de não fazer nada.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Portugal, que futuro? de Medina Carreira


Medina Carreira publicou um livro. O livro traz na capa o seu nome e também o de Eduardo Dâmaso, que é director-adjunto do jornal Correio da Manhã, porque depois da introdução, escrita pelo primeiro, seguem entrevistas, em que o segundo formula as perguntas, rematando com um texto final.
Claro que as perguntas são extensas, por vezes reflexivas, mas, vistas as respostas, ficam aquém. O entrevistado tem esse condão. «Arrasa» como titulava um blog a propósito de uma sua prestação televisiva em que chegou a pedir ao jornalista que não fizesse de papagaio do senso somum e do discurso do costume. Aqui também o entrevistador não resiste: partiu com optimismo termina a confessar o seu acabrunhamento e a falar de António Guterres e o seu PS.
Refiro isto do título do livro porque antigamente havia no jornalismo uma regra de ouro: entrevistador apagava-se para sobressair o entrevistado; permitir-se pôr as iniciais a assinar a entrevista já era um destaque, ser fotografado ao lado daquele com quem conversava, uma honra. Agora chega-se a ponto em que a entrevista é uma forma de ventriloquismo, em que o perguntado confirma ou é desfeiteado se ousa desmentir.
Talvez esteja a ser injusto, generalizando. Ainda só olhei de soslaio para o livro de Medina Carreira. Chama-se «Portugal, que futuro». Lembra «Portugal e o Futuro», um livro que revolucionou o país. Foi escrito pelo general António de Spínola. Vou ler.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Alcateia, de Carlos de Oliveira

O que leva um autor a renegar um livro? Carlos de Oliveira escreveu o Alcateia em 1944. Retirou-o o do mercado. Em 1945 reeditou-o. Mas no final considerou que o livro não deveria integrar a sua obra. A Assírio & Alvim não lho editou quando foi paulatinamente dando à estampa o seu acervo. A Caminho, quando condensou tudo num só volume, também não.
Encontrei-o, ao livro proscrito, num alfarrabista, em segunda edição, na colecção Novos Prosadores da Coimbra Editora.
É um livro de sangue e morte e luta. «Se choro, é com raiva de não poder matá-lo outra vez», diz Leandro depois de ter mandado o Lourenção para o Inferno, esse «desgraçador maldito» que lhe apoucara a filha. Curioso por lembrar-me o Assis Pacheco e o seu Benito Prada.
Li pouco ainda. Vou na parte em que o povo se barrica na casa desse predador sem escrúpulo nem arrependimento, para que não caia nas mãos do Estado e se devolva aos roubados o que a usura do salafrário lhes roubou. Chega a Guarda e seus fuzis e o Administrador chega fogo ao local da barricada. Fogem como ratos, bravios, à cava.
Pobre livro, enjeitado.Recebo-o como a um órfão, tirado da roda dos expostos ou salvo dos lobos numa mata de urzes.
São maus os autores quando exigem e não perdoam. Perdem o tino do critério e afogam os filhos como gatos numa bacia, perdida a piedade humana e a capacidade de os amar.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Odisseia, traduzida por T. E. Lawrence


Às vezes fica a ideia de que a leitura é o privilégio dos ociosos, o entretém dos desocupados, um luxo para os que podem. Quando uma pessoa se esfalfa um dia a trabalhar, mesmo que o seu trabalho seja ler, há o balanço do fim do dia. Os olhos estão cansados mas a alma anseia. Claro que intervalamos para alimentar o corpo, ainda que seja uma sopa; naturalmente que animamos o cérebro, nem que seja com comprimidos ou álcool ou cigarros. Quanto ao espírito esse definha, esfomeado.Às vezes fica a ideia de que a leitura é um além que castiga os Sísifos deste mundo, rolando calhaus de deveres por escarpas de obrigações, as mãos esfoladas, a multidão insatisfeita, o cume inatingível, o sopé certo da constante montanha.Talvez ainda leia qualquer coisa antes de ir para a cama, pensa ele, nem que seja o prazo de validade de algum iogurte que sobeje.
T. E. Lawrence, mais conhecido como Lawrence da Arábia, traduziu a Odisseia de Homero no tempo livre enquanto oficial da Royal Air Force. Assim o revelou Sir Maurice Bowra no prefácio à edição de bolso, em oitavo, editada pela Oxford University Press que, há uns anos, trouxe de uma estadia em Inglaterra. Tinha terminado Os Sete Pilares da Sabedoria.Estava esgotado. Mas era «um inexorável homem das letras». É assim que eles se conhecem, inexoravelmente.

domingo, 13 de setembro de 2009

Julieta Monginho

Gosto de livros mas por vezes é difícil ler publicações que falam de livros.Acontece comprar, abrir uma página, ler umas linhas e ficar só isso. Aconteceu com este número do JL, como sucede frequentemente com o JL. Desta vez ficou-me a 'autobiografia' da Julieta Monginho, na última página do jornal e dela uma frase solta. «Tudo se consumou, tudo se consumiu», escreve, pensando no tempo em que chegou aos trinta anos, o tempo dos balanços. É uma crónica de vida, a quem chamou 'Cidades Habitadas', a síntese de um pai e de uma mãe e de uma história que começou em Verona, por alturas de 1956. O tempo dos amores.

sábado, 12 de setembro de 2009

Karl Marx, de Jorge de Sena

Na minha geração o marxismo era a Bíblia. De um dos meus colegas dizia-se que tinha deixado o Das Kapital no seu veloz Porsche, onde a PIDE o apreendera. A esmagadora maioria ia então para a Faculdade a pé. Nessa figuração absurda de um dos dos livros que revolucionou o mundo estar perdido, por displicência, num excepcional automóvel de um abastado estudante, estava contida a semente da contradição do que viríamos a ser quando adultos. A burguesia vive destes insólitos, frutos da crise de crescimento do que são, afinal, os seus filhos pródigos. Mas, enfim, penso que nem ele, patrício, que nos tolerava, nem nós, plebeus, que o desprezávamos, tínhamos lido esse livro monumental, livro publicado que era parte de um livro escrito, livro escrito que era parte de um livro pensado, uma infinita escrita surgida no moto continuum de uma forforescente mente genial.
Karl Marx, em Londres, indissociavemente com Friederich Engels foi um dos mais potentes pensadores de todos os séculos. Escreveu uma crítica à economia política, ao papel redutor do economicismo, em revolta aberta contra a leitura que o bolchevismo faria de si.
Revi isso tudo agora, porque um taxista amável me avisou que havia problemas com o trânsito por causa do enterro de um escritor. Não era enterro mas trasladação, que é uma forma de exumar nas consciência o que o esquecimento sepultou. Mas era escritor, Jorge de Sena. Este seu estudo sobre Marx descobri-o ao ter lido o que escreveu sobre Maquiavel, o genial florentino. Estão os dois estudos num livro da Cotovia, de má tipografia, com as linhas a emaranharem-se para poupar papel. Comprei-o outro dia.
A primeira edição de O Capital, alemã, tem 780 páginas, dedicadas ao processo de produção do capital. Falecido o autor, em 1883, Engels compilou-lhe, nesse ano, o segundo livro, de 500 páginas, sobre o processo de circulação do capital e no ano seguinte as 870 páginas do livro sobre o processo de produção capitalista. Caberia a Karl Kautsky, o renegado Kautsky segundo Lénine, completar a obra em três volumes do que seria um Livro IV, com 480, 380, e 600 páginas. «A metro cúbico de papel» dizia Marx numa carta a Engels, porque é assim que os alemães gostam.
Doutorado em filosofia pela Universidade de Iena, com uma tese sobre a filosofia da Natureza em Demócrito e Epicuro, Marx viveu em Trier. Visitei-lhe aí a casa sombria e inóspita. Revisitei-no no Museu Britânico este Verão, para onde se mudou em 1848. Nesse ano Engels escrevera o Manifesto Comunista. «Proletários de todos os países, uni-vos!». O livro tornava-se o motor da História.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

O Camarareiro, de Ronald Harwood

Um actor que regressa representa um actor que termina. Ruy de Carvalho é Sir Donald Wolfit. A história do intérprete e a da personagem são uma e a mesma, a da agonia do desejo, a decadência do sucesso, o dever esgotante, a biografia da grandeza efémera e da solitária incompreensão.
Encenada por João Mota, a peça surge nos bastidores de uma representação do Rei Lear de William Shakespeare, em tempos de Blitz, em Londres, as bombas da Luftwaffe a serem a possível noite de tempestade. Pela 227ª vez o actor tem de se soerguer do desespero, do cansaço, da inquietação, encontrar em si forças e nos outros amparo para que o pano suba e as ribaltas o projectem à noite das estrelas. Restam-lhe sobejos, remedeios de gente, a piedade cruel feita companheira. E o Camareiro, fiel na humilhação, secreto nos sentimentos, nele a servidão é a única forma de expressar amor.
A cena de tempestade é na concepção do genial dramaturgo inglês o momento da inquietação e da loucura, da raiva e da revolta, os elementos e a alma em fúria.Wolfit pela última vez vocifera contra o que é vida e a existência: «Rumble thy bellyful! Spit, fire! spout, rain! Nor rain, wind, thunder, fire, are my daughters:I tax not you, you elements, with unkindness;I never gave you kingdom, call'd you children...»
Fui ao Dona Maria, aplaudir de pé. John Runciman pintou-a a essa cena do ódio. É esta que os vossos olhos contemplam, o humano rei sumido ante a magnitude imperial da Natureza tresloucada. À saída um amigo meu perguntou-me se tinha gostado do Virgílio Castelo. Disse sim. Era ele o camareiro.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Quando eu nasci, de José Régio

Ler é bom. Ler salva e cura e alimenta doenças do espírito. É uma terapia da alma. Ler não é uma alternativa a não ter companhia, ler é a possibilidade de encontrar todas as possíveis companhias. Na esplanada ela refugiava-se num livro como por detrás de uns óculos escuros. Foi por causa desse livro que ele se atreveu a querê-la. Desfolharam-se então, percorrendo-se o abismo de todas as linhas, saltando parágrafos, abraçando capítulos até ao final feliz.
Ler não é uma forma de se viver, ler é nascer todos os dias. «Quando eu nasci, ficou tudo como estava, Nem homens cortaram veias, nem o Sol escureceu, nem houve Estrelas a mais.. Somente, esquecida das dores, a minha Mãe sorriu e agradeceu». O poema é de José Régio-

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Bilhetes de Colares, de José Cutileiro

Recomendo quando estiver mal com o dia, por estar calor ou ainda não ter chegado o frio, ou por apetecer que mude o tempo. Recomendo quando quiser sentir um toque de classe a meio da tarde vulgar e um gole de categoria ao anoitecer a banalidade. Indispensável para gozar de um intervalo de ironia para com o excesso de importância que alguns se dão ou para se rir de si próprio.
São os Bilhetes de Colares, assinados por A. B. Kotter, pseudónimo do Embaixador José Cutileiro.Começaram a publicar-se no jornal A Tarde, em 1982, depois no Espaço T, de seguida no Semanário até 1991. Em 1993 ressurgiam na Visão em 1993 e entre 1997 e 1998 na revista de O Independente.
Fantasiando sobre a verdade, Freddy Kotter faz-se o convidado pelo Dr. Vítor da Cunha Rego para escrever uma crónicas sobre os portugueses. Uma crónica em «que diga mal de uns» para agradar aos outros, porque assim, com uma crónica por semana «ao fim de um ano conseguiste dizer mal de toda a gente e toda a gente ficou a gostar de ti». Naturalmente, como tem sucedido com os que fizeram da calúnia meio, do escárnio forma e tudo isso instrumento de uma carreira de sucesso.
Hoje em livro, é um desfilar de personagens inesquecíveis: a Mãe, um vulcão sentimental que, à força de bengala, destesta pobres, galarotes e parvenus, o senhor J. Fonseca, militar amanuense, o Lowater filósofo, a Fatimazinha e a Margarida, cuja tia cozinheira, aos noventas anos, desinteressada de paladares, já só comia «escorcioneira e a papa das radiografias ao estômago», e o Carlinhos, cuja maluquice «é uma gota de água na maluquice do mundo», todos nos contrafortes de Sintra, pela Várzea, em Colares, na Beldroega, um saltada por Cascais e pelos Estoris, entre o Daily Telegraph, a BBC e o Anglo-Portuguese News.
Claro que a fiel Margarida «tem instruções firmes para não deixar jornais portugueses aos olhos da Mãe sempre que haja crises políticas em Portugal», porque a senhora, com noventa anos, ferveria em pouca água, Resultado, Madame tem de ter, de vez em quando, algumas explicações, não vá fazer gaffes em sociedade. «Com um faro especial, sente que deve ter havido crise e pergunta, desconfiada: "Então, o Salazar ainda é o mesmo?". "Não, Mãe", respondo eu. "O Salazar agora é o Dr. Balsemão".
Impagável de excelência! Claro que lhe explicam também que é hoje o Carmona. E passa-se para a crónica seguinte, o dia a melhorar.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Livraria Universo

Era um livreiro em dia triste, porque não se pode estar feliz quando há cada vez menos pessoas a ler. E tinha sido já editor. E é amigo de escritores. E teima em querer fazer amizade com leitores.
A sua livraria é dos livros que ele quer, não dos livros que os distribuidores acham que ele deve vender. Quanto ao que não tem, outros que tenham.
Hoje, a força das coisas trouxe-lhe uma inesperada visista. Vinte anos depois. Ela encontraria, surpresa, o próprio pai, numa fotografia amarelecida exposta ali com o carinho de uma memória estimada, ele encontrava, embaraçado, o Espírito que, como uma língua de fogo, o animava a viver.
«Coragem» diria ela, alma boa, desejosa de ajudar, animando-o. Atrapalhado ser, o seu coração descompassou, esperançado.
Talvez aguente mais uns tempos. Da próxima vez que voltar a Setúbal vou visitá-lo. Digo a todos que o visitem e lhe comprem livros. Há surpresas naquele pequeno lugar. Ontem estava lá, a espreitar-me, uma edição das primeiras da Aparição, ainda saída pela Portugália, no tempo em que os editores amavam livros. «O seu pai vinha muito aqui». Eu e a filha passaremos a ir também.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

The Old Man and the Sea, de Ernest Hemingway

De que é que uma pessoa se lembra de um livro quando não tem o livro consigo? Que histórias ficam quando o livro conta uma história, que pensamentos restam quando se sublinharam nele momentos em que se parou para reflectir? Que nomes de personagens que nos sejam familiares, que lugares referidos mesmo quando são conhecidos?
Recorda-se de um livro uma descrição que tenha impressionado como a de um instante da vida ou de um recanto da terra, a de um fantasioso sonho ou de um improvável pesadelo? Transmite-se de um livro para o seu leitor um sentimento, uma convicção, um credo? Fica um livro como uma recordação de um momento vivido, como uma nostalgia de não nos conseguirmos recordar, mesmo quando foi bom?
Conseguirá um livro fazer-nos dizer que está tudo lido como uma morte que nos diga que tudo já foi vivido?
Esta madrugada acordei a pensar em O Velho e o Mar do Hemingway. O livro não tem história nem lugar nem tempo nem modo. É um enorme intervalo de silêncio. Fala de um homem e um peixe e entre eles a infinita espera que gera a eternidade do amor. Meter no meio de tudo isto o Prémio Nobel da Literatura é um ridículo que só insulta aquele prolongado instante em que o belo se chama paz. Apenas isto e mais o sol, a lenta caminhada para a depredação total, o clímax em que apenas a agonia é memória, a pescaria lenda. Foi escrito em Cuba, em 1951. Tenho-o, mas não aqui. Li-o em busca desse improvável momento final, até perceber que nele cada momento é o começo de si próprio, a perseverança o motor da grandeza monótona de uma longa espera sem esperança.

domingo, 6 de setembro de 2009

Casa da Achada, de Mário Dionísio

Quando eu tinha muitos blogs e escrevia com o meu próprio nome tinha a angústia dos dias em que não escrevia como se tivesse sucedido ter deixado de viver. E depois quando escrevia fazia-o sempre como se fosse outro e quem lia porfiava em imaginar que tinha sido eu.
Um dia vim para aqui deixar que a escita surgisse quando houvesse vontade e mesmo que ela não tivesse que ser mais do que um caderno de um qualquer leitor.
Li na revista Ler que, lutando contra o esquecimento, a família de Mário Dionísio teima em seguir, mesmo sem apoios, com a Casa da Achada, tornando público o espólio deste homem extraordinário nas letras e nas artes, se é que a diferença existe. Vim aqui deixar a notícia, como um repórter chegando à redacção, depois de um dia na rua, a chover, à procura de uma local, a edição a fechar.
Talvez isto seja o meu jornal. Fazê-lo tornou-se um vício diário, como se dizia da velha Capital. Por definição, aliás, jornal é aquilo que sai sempre.
Estão a renascer-me velhos tiques: dia em que não escrevo vivo mal, dia em que não leio é como se tivesse morrido. Qualquer dia escrevo com barbatanas de plástico, latas velhas esquecidas...

sábado, 5 de setembro de 2009

Erros e enredos


«Há pouco, na TVI24, otómano em vez de otomano e Capadoce em vez de Capadócia.Hospitaleiros em vez de Hospitalários. Num documentário sobre hotéis e afins». «Há pouco, na SICN, legendavam a expressão “sangrar-se em saúde” proferida por Marcelo Rebelo de Sousa, assim: “sangrar sem saúde”.
É uma sangria ao cérebro!». Cito do magnífico blog Gasolim Ultramarino. Um nome insólito, um local incomum.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Revolutionary Road, de Sam Mendes

Pode falar-se de um filme como quem fala de um livro. Um filme, é claro, vê-se, mas também se lê, desfolhando as cenas como se fossem páginas, sublinhando excertos. Revolutionary Road é um filme sobre os limites da ilusão, a força do conformismo. A contradição e o absurdo surgem através da boca de um louco, as suas palavras são a violência do embaraço ante o ridículo dos lugares comuns. Filme americano, claro, nisso convencional, fantasia Paris como o lugar do idílio. Mas não é essa a história. Independentemente do que conta - e nos livros a história é por vezes um pormenor - interessa pelo que sugere. A mediocridade mata, raramente o medíocre que sujeita o outro a vivê-la.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Google books

Cada vez mais o acto de ler livros se torna longínquo. O Jorge Luis Borges dizia que não lia jornais precisamente porque eram escritos para serem esquecidos no dia seguinte. Agora com o espaço virtual começa a ser passado a sensação de sentir o papel arenoso e áspero na ponta dos dedos, a capa dura a dar segurança na mão sobre a solidez do escrito, o saco à saída da livraria a pesar no braço, o doer-nos o pescoço ao ler na cama.
É que há o Google que vai ao interior dos livros, pesquisando-os para o pequeno écran. Claro que com erros de risota. Leia este artigo e sorria. «To take Google's word for it, 1899 was a literary annus mirabilis, which saw the publication of Raymond Chandler's Killer in the Rain, The Portable Dorothy Parker, André Malraux's La Condition Humaine, Stephen King's Christine, The Complete Shorter Fiction of Virginia Woolf, Raymond Williams's Culture and Society 1780-1950, and Robert Shelton's biography of Bob Dylan, to name just a few».

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Synecdoche, de Charlie Kaufman

É um filme, mas podia ser uma peça de teatro, é uma peça de teatro e simultâneamente um filme mas podia ser um extraordinário livro. As salas de cinema estão ralas de espectadores, porque o título não atrai, porque a narrativa é complexa, os planos temporais cruzando-se, confundem, os sentimentos em volteio constante maltratam, os pontos em que se devia parar para pensar a multiplicarem-se diante dos olhos e o espectador comum hoje quer diversão cómoda.
O filme foi realizado por quem é um escritor, como se vê aqui.
«À medida que conhecemos as pessoas elas desiludem-nos» diz uma das principais personagens; à medida que se vê este filme ele hipnotiza-nos.
A grandeza do cenário lembra O Processo encenado por Orson Welles. «Cada pessoa, dos milhões que povoam o mundo não é um figurante, mas um protagonista da sua própria história». É esta a sinédoque, o falar-se da parte querendo-se referir o todo.
Se não viu o filme, corra para ir vê-lo. Se já o viu volte a vê-lo porque, afinal, não o tinha visto.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

As Velas Ardem Até Ao Fim, de Sándor Márai

É verdade. Não tenho a preocupação de ler novidades, nem a angústia de ter lido pouco, nem o fetiche das primeiras edições. Concluo muitas vezes que o que li agora li-o na altura certa. A vida encarregou-se de criar o tempo para o espaço que um livro ocupa nos nossos sentimentos. É verdade. Li As Velas Ardem Até Ao Fim de Sándor Márai há alguns meses. Voltei hoje ao livro. Reli o que tinha sublinhado e lembrei-me, talvez a despropósito do Robert Musil. Talvez por a personagem ser um general e haver reminiscências militares na obra do magnífico austríaco. Mas não era isso que eu vinha aqui dizer. É que me impressionou, presente em toda a narrativa a solenidade do silêncio, «o mesmo silêncio que reina dentro de uma bomba-relógio minutos antes de explodir». Foi-se o tempo da música de Chopin, a encher salões, ficou agora o ódio à música, à sua incompreensibilidade, ao tocar muito de perto «como uma agressão física», tão dolorosa como um dever. «No colégio não falavam de música. Preceptores e alunos limitavam-se a tolerá-la e a perdoá-la».