quarta-feira, 29 de abril de 2009

Caroline

Não há muitos anos ainda não havia internet e os modems eram umas caixas exteriores , com um débito lento e sucessivas quedas de sinal. Comprava livros antigos em Inglaterra através de uma senhora de quem me lembro de duas coisas: primeiro, que tinha uns folhetos comerciais que ostentavam um gato empoleirado, cauda eriçada em pose espreguiçadeira, em cima de um monte de livros; segundo, que se chamava Caroline.
O esquema era simples: eu mandava-lhe um fax com a lista dos livros procurados, ela descobria-os nos lugares mais recônditos. Um dia veio um de uma companhia de lanceiros na Escócia, cuja biblioteca havia sido desactivada. Outras vezes impregnava-os um cheiro a mofo por terem estado armazenados na escuridão bolorenta de alguma cave.
Lembrei-me hoje com saudade dos gatos e dos livros que me chegavam de Inglaterra. Vi este bichano, qual caminhante sobre as águas encapeladas da literatura. De jangada.

terça-feira, 28 de abril de 2009

Resistir

Joaquim Paço d’ Arcos começa a narrativa do seu romance Ana Paula com uma viagem a caminho da Torre. O autor de Tons Verdes em Fundo Escuro felizmente volta a estar na moda. A Guimarães está a reeditar-lhe a obra, agora em exemplares magníficos. «Poucos medem a pressão de toda a ordem que as várias facções exercem sobre o romancista, tentando arregimentá-lo para os seus respectivos credos. É ela de tal ordem, que o mérito do escritor não está em optar, sim em resistir (…)», escreveu ele em Confissão e Defesa do Romancista. Sabia do que falava. Concorrera em 1938, precisamente com Ana Paula, ao prémio Ricardo Malheiros da Academia das Ciências. O parecer dos imortais académicos foi arrasador. Pior, posto a circular na imprensa. Pior ainda, deram-lhe o prémio. O autor retaliou recusando a ofensiva distinção. O Presidente da Academia lamentou em sessão que «o moço e ilustre escritor» tivesse tomado melindre com o feito. Joaquim soube resistir.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Não me contem o filme!

«João de Vasconcelos Lopes, aos vinte e cinco anos, já professor de liceu, doutorando com uma tese a caminho e muito apaixonado pela sua noiva, que lhe retribui esse amor, vê-se na iminência de ter de partir para Angola como oficial miliciano. Um amigo muito envolvido nas lutas antifascistas prepara-lhe a saída a salto pelo Norte, Vera irá depois ter com ele, e lá vai João viver a grande aventura da sua vida, a travessia da fronteira e, em Espanha, onde o esperam outros apoios, novas peripécias até San Sebastian, onde consegue integrar-se numa excursão turística daí a Biarritz. E ei-lo em França, com o seu passaporte, com os primeiros carimbos falsos, é claro, a instalar-se num hotelzinho modesto no bairro Latino, a conviver com exilados políticos (...)».
É o resumo de um livro, que encontrei numa recensão da Fundação Gulbenkian, aqui.
E porque será que ante tais ingredientes não me apetece lê-lo? Será por algum reaccionarismo primário? Ou será porque na arte se exige mais subtileza, mais sublimação, mais forma de se chegar lá! Não me contem o filme se querem que eu vá ao cinema!
Mas há supresas: «Assim um dia, o Professor Pardon propõe-lhe ir viver na província de Anjou, bela região entre o Maine e o Loire, em casa de uma fidalga, Madame de la Boullerie, que precisava de uma espécie de secretário-bibliotecário, que lhe arrumasse os livros que tinha em desordem e a ajudasse a organizar as memórias de seu falecido esposo (...)».
Ah! Mundo promissor! Uma Madame sem o falecido esposo e carecida de que lhe arrumassem os livros!
Desisto, mesmo. Já agora, aqui fica. O livro chama-se João Sem Terra. O autor, José Augusto França. O crítico embevecido Urbano Tavares Rodrigues. «Recomendar muito vivamente a repousada leitura deste livro é o mínimo que posso fazer», diz ele.
É verdade! A obra saiu o ano passado.

domingo, 19 de abril de 2009

O sorriso

Vi outro dia que vai ser editada a Obra Completa de Lygia Fagundes Teles. A primeira fornada começa agora a chegar, li no «Estadão». Fornada - palavra excelente - como se os livros fossem pãezinhos quentes, para barrar com manteiga, acompanhados a café.
«Clarice Lispector sempre me dizia: ?Lygia, não sorria nas fotos porque ninguém leva a sério escritoras que riem». Rio-me este domingo, ao pensar nisso. Claro que por vezes este rosto torna-se nesta face. É a vida. Sorrir é por dentro, com a alma a sorrir.

The Cocktail Party

De novo o Ruben A., agora a peça de teatro Júlia que publicou em 1960. Inspira-se no The Cocktail Party de T. S. Eliot, que traduziria. Não é um extraordinário texto, mas tem ironia suficiente para ser inteligente. Há crítica nos diálogos, alguma por pura descrição desse «mundo dissonante», como neste trecho exemplar, de conversa banal enquanto se joga canasta numa tarde de domingo, sem convicção: «Esta semana não queremos deixar de ir ver a fita que vai no Tivoli. Toda a gente fala. É uma fita que vale a pena ver. Estamos atrasados. Se nos apanham, sem termos visto essa fita, julgam que não fazemos nada».

domingo, 12 de abril de 2009

O eclipse

«Isto já não vai com Deus!» diz Loukas Notaras, o ortodoxo, com os turcos já às portas de Constantinopla e Constantino a saber que «a justiça é a comida da ilusão». A cidade cairia às mãos do Otomano no dia 29 de Maio de 1453 e com ela o Império Romano do Oriente. Era uma terça-feira. Constantino XI expiará o seu maior pecado, «a ambição de não ter ambição».
Li tudo isto ao ler Relato 1453 a peça de teatro que Ruben A. escreveu sobre um tema a que Jorge de Sena se dedicara dois anos antes, escrevendo em Araraquara O Império do Oriente.
«Estão nuvens sobre o céu de Constantinopla...É Deus que se esconde...para as despedidas não quer estar presente. Ah!...Deus está com medo dos turcos, os tempos estão diferentes. Vamos morrer...vamos morrer», revolta-se o Imperador.
A ideia ficou. Desde então resta o presságio de que Deus pode ter medo do infiel. A cidade resistiria, segundo a profecia, enquanto a lua brilhasse no céu. Cinco dias antes ocorreu um eclipse lunar total: o sol envergonhava-se.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

O triálogo

Em 1951, quase a deixar o seu lugar de leitor do King's College, Ruben A. escreveu uma peça de teatro chamada Triálogo. Lia-a agora, enquanto esperava por uma boleia que ainda não chegou. A narrativa é surreal, «absurdismo surreal em sátira culta» lhe chamou o prefaciador da edição da Assírio & Alvim, onde vem publicada, burlesca diria, com Camões, sim o Luiz Vaz, agora feito burocrata e apoquentado com os despachos, «coisas sem interesse, quadras populares, jogos florais, admissões de serventes e contínuos», mais Uma Velha Lady Inglesa que faz de si marido, julgando-se viúva quando, di-lo ele, «juridicamente» - ah! risos - está apenas «hipotecada» e, Pirandello puro, o próprio autor «convertido em personagem».
Ri-me, sim, com gosto e vontade de rir. E a minha boleia sem vir.
É que há, entre tanto riso, aquele momento em que está lá fora a personagem que quer entrar em cena, o inesperado, o director da agência Nini, sequioso por conhecer o Épico e dele obter uma fala, uma conversa, uma entrevista; mas não, não entrará, porque, remata o Ruben A., actor em cena, «o tipo não pode aparecer porque nesta peça só há três personagens falantes e além disso eu não quero que ele apareça. Tira todo o interesse ao nosso triálogo».
E pronto, eis assim, talqualmente, a paródia, mas não só, pois há mais! Há uma possibilidade, lógica, abstracta, mas cenicamente possível, que o teatro é o domínio da liberdade à solta: ele poderia ser o outro, um qualquer, por exemplo o marido de Madame. Porquoi pas?
Mas oh! Uma Lady Inglesa só poderia, caprichosa, dizer com esta diz: «Não quero que seja meu marido. Era desagradável para ele saber que o tinha esquecido. Não convém que seja o meu marido. Proponho que não seja o meu marido».
Ora! E assim ficou: «Então está bem, estamos todos de acordo que o homem que está lá fora não é o seu marido nem mesmo que ele queira», diz Ruben A., magnífico!
É a risota geral, em todo o teatro até na geral, o curral dos que seguem de pé, aninhados pela arte e pelo bilhete baratucho. Aplaudo em pé! A minha boleia chegou.

Agradecimento

Quase acabei a leitura, aos poucos, do volume de cartas que Wenceslau de Moraes escreveu a Alfredo Ernesto Dias Branco.
É uma compilação de nostalgias. Fala do drama individual e de uma tragédia colectiva. Está ali um português e Portugal. Ambos tristes.
Exilado da vida, vivendo agora só, Moraes deixa que a Natureza se encarregue dele. A propósito de uma fotografia em que aparece com «barbas de farricôco» escreve este momento de fina ironia: «eu que sempre embirrei em entregar o cabelo e as barbas ao cuidado de mãos que não pudesse beijar em agradecimento no fim da operação; por isto só frequentei barbeiros em caso de força maior».

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Crónica da vida lisboeta

Perguntam-nos assim? Já leu as Crónicas da Vida Lisboeta? E uma pessoa pensa logo no Armando Ferreira e os seus convites à boa disposição. Ou no Gervásio Lobato. Mas depois dizem: não! Do Joaquim Paço d'Arcos. E um incauto vai à estante onde tem tanto livro dele que até já comprou repetidos e diz: pois não tenho! Bom, mando vir. São porventura artigos de jornal sobre recantos alfacinhas.
Chega hoje o livro. É lindo. Edição da Guimarães. Todos os livros da Guimarães agora são bonitos, de uma beleza patrícia.
Olho para a capa! Susto! Afinal são dois romances que já tenho! Ana Paula, publicado em 1938, que ele começara a escrever em Janeiro do ano anterior, e Ansiedade, editado em 1940.
Será que fazem parte de algum conjunto que na origem assim se chamava?
Vou trepar ao escadote para ir verificar na estante. Os livros de Paço d' Arcos, de seu nome real Joaquim Belford Corrêa da Silva, Paço d'Arcos é o designativo nobiliárquico, estão junto ao céu. Um momento.
Voltei. Pois nada. Ana Paula, dedicado a sua mulher, ostenta como subtítulo Perfil duma Lisboeta. Só isso.
Pronto. Mas não desisto. Fui ao estudo de Álvaro Dória sobre a vida do escritor e leio que com a peça teatral O Cúmplice o escritor inaugurou um novo género «em que também se consagraria. O Cúmplice, para onde transitaram algumas das personagens da Ana Paula, agora postas a agir no palco vivo, e daqui, por sua vez, para a "Crónica da Vida Lisboeta" outras que nesta farão carreira, foi à cena no Teatro Avenida na Primavera de 1940».
Vá lá, uma pista. Mas foi finalmente aqui que se encontrou a chave do enigma. «Crónica da Vida Lisboeta» foi o subtítulo de uma série de livros da sua autoria.
Enfim, fico com os livros todos. Olho neste momento com nostalgia para os que tinha. O Ana Paula está encadernado a pano. Juraria que era de uma tipografia colonial, de uma Missão Católica. Na canto superior da lombada está, discreto, o nome do autor, no inferior o nome daquela a quem pertenceu: Alda Corte-Real. Quem será? E o que leu nesta história? E em que recanto do mundo se envolveu nestas páginas? Quanto ao meu Ansiedade, esse tem uma dedicatória de difícil legibilidade mas em que consigo decifrar «para a viagem da ... 20/10/44». Quem seria? Que viagem foi? Ah! Como será bom viajar! Nem que seja literariamente.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

O riso

Comecei a ler as cartas de Wenceslau de Moraes a Alfredo Ernesto Dias Branco. Gosto de ler cartas. Dão o sentimento de quem as escreve e o contexto em que são escritas. São mais vivas que um compêndio de História, mais ricas do que um manual de Psicologia. Encontram-se nelas pérolas de observação. Vivendo frugalmente, cônsul de Portugal no Japão, dedicado à escrita, solitário, Moraes distancia-se cada vez da vida política do país. Chegam-lhe ecos da decadência da Monarquia, vê com pouco entusiasmo o alvor da República. Duvida dos homens da política. «A tristeza é no nosso país a doença dos homens honestos, dos bons; só os patifes riem», escreve em 18 de Fevereiro de 1910.