quinta-feira, 28 de dezembro de 2006

Fé em Deus e talvez uma aspirina!

Encontrei-a, vinha de um médico, atormentado com o descobrir afinal que doença é esta que me roubou as energias e a vontade de as recuperar: era a biografia do jesuíta Padre Vaz Pinto. Estou a lê-la esta noite. Se é possível formar uma opinião ao ter lido apenas cento e quarenta páginas de quatrocentas e trinta e poucas que a obra tem, aqui vai: acho o livro superficial onde ele se esperava profundo, vulgar onde deveria ter sido complexo.
Não falo do mundo «coquette» que se revê em tantas daquelas páginas e que nelas é chamado nominalmente, para o qual a frase «Deus fez-se homem para que o homem se fizesse Deus» deve dar um travo de glória divina momentânea num quotidiano trivial de mundanidades que uma missa domingueira beatifica.
Falo sim do problema existencial de uma vocação, a explicação da mística que leva um finalista de Direito, com 22 anos, em 1965, a entrar no duro Noviciado da Companhia de Jesus e no mais que se lhe segue segundo a formação delienada por Santo Inácio de Loyola. Lê-se o livro e não há uma chama que convença, uma razão que se imponha, um apelo que se faça entender.
Mais! Como era de esperar de quem diz que na hora de entrar «ia morrendo por dentro, ia-me despedindo dolorosamente de todos e de tudo, como se uma vida de que tanto gostasse desparecesse como o Sol, lenta mas inexoravelmente no horizonte», surge-lhe logo, ante os horrores do mundo, a crise de fé, a dúvida sobre a Omnipotência ou a Suprema Bondade daquele Deus que jurou servir.
É aí que o livro supreende e desanima. Vaz Pinto, padre, filósofo, teólogo, homem do mundo e da cultura, colocado perante o dilema-tentação de saber como se compatibiliza um Deus que é o Supremo Bem e o Supremo Poder com a injustiça, a miséria e o sofrimento da humanidade, contentou-se e com isso regressou à tranquilidade do espírito e à paz do coração, com esta forma cândida de singeleza e ingénua de crendice: os santos, sim, os santos, se continuaram fiéis a Deus, é porque a solução existe. Vai daí, tudo se resolve assim: «aceitei os meus limites e o intransponível mistério de Deus». Ponto final.
Vou continuar a ler e amanhã já nem volto ao médico. Achei a cura do meu mal: um insondável mistério de Deus! À cautela, talvez arrisque, mas só uma prudente aspirina, não vá, herege, arder em febres, nas fogueiras infernais!

segunda-feira, 25 de dezembro de 2006

Uma alfarrabista

Foi hoje em Sintra, na Volta do Duche, num recanto de uma curva, antes de se chegar à estação. Aberta em dia de Natal, uma livraria-alfarrabista. A juntar à surpresa do encontro, a magia do local, o fantástico das coincidências. Nem me lembro sobre o que conversámos, pelo canto dos olhos encontrava-os, livros que tenho, livros que fui perdendo, livros de que me desapossaram. Ali um Gandra, além um Viterbo, depois os da editora de Colares, que agora é aqui, «do outro lado da rua». Tudo se tornou familiar e mais ainda com a raridade de um nome raro: chamava-se, tal como a minha filha, Adriana, Maria Adriana! Casada com um inglês, Mister Jones, Maria Adriana Jones é conhecida pelos miúdos locais como a Indiana Jones. Na selva dos livros, ela move-se entre os Salteadores da Arca Perdida. Vê-se pelo brilho nos olhos que ama os livros, a ponto de os presentear com a porta aberta ao mundo no Dia de Natal.

domingo, 24 de dezembro de 2006

As primeiras folhas

Regressei ao primeiro livro da Dulce Cardoso, de há muito deixado a meio, a leitura interrompida. Lembrava-me de cena onde ia, o homem na praia com o caco de vidro cravado no pé, o espectáculo tétrico de levarem-no, num dia de sufocante canícula, o metal e o sol combinados com o alcatrão amolecido, para um indiferente hospital. Li umas folhas antes de cair, fulminado de sono, «o passado demora sempre algum tempo a ser reiventado». Tal como a vida, as primeiras folhas já lidas não são, pois, necessariamente assim.

sábado, 23 de dezembro de 2006

A antecâmara

Descobri, ao terminar o segundo volume das memórias do José Gomes Ferreira, hoje que consegui recomeçar a leitura, neste dia em que também sinto «vontade de despir o corpo»: «tenho às vezes a impressão de que estou na antecâmara dum médico - à espera da minha vez. Estou doente de vida. Espero ser recebido um dia...». Acreditem, pois! Espero mesmo ser recebido um dia, doente de vida!

sexta-feira, 22 de dezembro de 2006

O sentimento do «já posso?»

Por esta altura havia na cidade a azáfama formigueira por causa de embrulhos, laços e prendas, ceias, almoços e visitas forçadas. A esta hora, na cidade, subiam-se escadas e atulhavam-se cestos, na ânsia ilusória de se estar bem, sendo-se bom. Por esta altura a cidade afinal não mudou, Eu, estou aqui, a lembrança infantil de uma mesa posta, onde em nada se poderia tocar. A esse sentimento do «já posso?», seguia-se o do «que será?», vivido na noite que as prendas vinham pela chaminé. Tudo isso foi há muito tempo, convenci-me hoje, de facto, há demasiado tempo.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2006

Agulha em palheiro

A Natureza às vezes tem pena e adoece-nos. Sucedeu. Incapaz de trabalhar, defendido por cobertores, estive a folhear uma fotobiografia do José Gomes Ferreira, detendo-me pelo tempo em que ele, concluído o curso de Direito, esteve como cônsul de Portugal na Noruega. Talvez por causa dos passeios nos fiordes, piorei.
Agora que a noite chega ainda consigo, com a febre a subir, acompanhar a paixão de Fernando por Paulina, descrita por Camilo Castelo Branco. Fernando era o filho do sapateiro do poeta Bocage, o que lhe pagava em botas uns versos que fizeram despontar na sua eleita as primeiras flores do amor. Paulina era um dos frutos de um matrimónio do desembargador Briteiros que sabia «de jurisprudência o necessário para convencer-se do pouquíssimo que necessitava saber um magistrado palaciano, benquisto para as alçadas, e braço inflexível para hastear patíbulos».
Amanhã gostava de estar pior! Educado espartanamente, associando desde garoto «vida de cama, vida de lama», perdia-me por aqui, «atrombando na palha»!

segunda-feira, 4 de dezembro de 2006

Adeus!

António Gedeão foi um poeta precoce aos cinco anos, que só recuperou o dom notável da escrita pela meia idade. Aos oitenta iniciou um diário, fechando-o dez anos mais tarde, após mais de mil e cem páginas, em 35 linhas, com um espaço em branco no final para a data que fosse a da sua morte e, a rematar, a palavra tão nossa: «Adeus». É um testemunho a pensar nos seus tetranetos, para que eles tenham ali, em folhas de papel pautado, uma imagem do mundo que ele viveu.
Soube-o este fim de semana pelo JL, que de quando em vez ainda consigo ler.
Foi no Jardim da Estrela, entre velhos vagueantes, para quem o preço do café ter baixado cinquenta cêntimos teve o sabor de uma alegria domingueira. «É agora no Inverno» explicava a senhora do balcão, «porque isto tem estado fraco», justificava-se. A meu lado, dividida entre o colesterol e a gulodice uma avó olhava para uns vistosos brigadeiros, impantes de chocolate. «Leve um para o lanche», incentivava-o, solícito, o empregado. «Não o consigo comer todo sozinha», respondeu-lhe ela. Ficou-me no ouvido a palavra «sozinha», enquanto alçado numa cadeira pernalta num canto escondido do café lia: «uma das características da vida actual é o desamparo, a solidão, o desapego, a monotonia, a indiferença, o cansaço».