terça-feira, 31 de julho de 2007

A atracção lunar

O livro é muito pequeno e é daqueles que os livreiros, astutos, colocam perto da saída, para tentarem os leitores. Ali estão, num «leva-me contigo» que chega a fazer dó, depois de tantos outros terem ficado para trás.
Trouxe-o. Trata do culto do chá, é escrito por um japonês e tem por isso a beleza subtil das coisas profundas que nos passam despercebidas: Kakuzo Okakura.
Através dele e da sua delicada escrita, abeirei-me do sublime, em silenciosa reverência. Esta noite a lua começa a descer já nos céus, quente e tentadora. «Sonhemos com a evanescência, e demoremo-nos na bela tolice das coisas». Estou neste momento com esta frase, a desejar sair pelas ruas, sem motivo razoável, sem destino a que chame certo, sem a inteligência sequer de um rumo. Tal como as marés, atraído pela força lunar e seu magnífico apelo à renovação das almas.

domingo, 22 de julho de 2007

A pragmática da comunicação crustácea

Regressei a Lisboa ouvindo a «Antena 2» e nela uma entrevista sobre o autor de um livro que há pouco comprei sobre a série que a «Caminho» está a editar sobre linguística. Este é dedicado à pragmática. O seu autor, José Pinto de Lima, escreve melhor do que fala, o que me recordou o capítulo inicial do seu opúsculo intitulado interrogativamente será verdade que «há falar e há fazer?». Que o digam na política os mestres cantores das promessas, na sociedade civil os obreiros silenciosos.
A pragmática trata da função da língua. Hoje ao almoço, ainda com o mar à vista, perguntou-se ao empregado do restaurante o que havia de sobremesa. Respondeu «nada, só fruta, pudim e gelados». No fundo o que ele queria dizer «não repararam que temos gente à espera da mesa?». Não se tinha reparado, nomeadamente que era um grupo de estrangeiros dos que com muita probabibilidade comem lagosta com vinho rosé. Um pragmático, em suma, mestre linguista, empírico mas eficaz.

sexta-feira, 20 de julho de 2007

Mossas na alma

Ao findar um «epitáfio» aos «Textos Sadinos» do Luiz Pacheco, de que o seu amigo editor Raposo Nunes encontrou agora uns quantos exemplares, com um dos quais me cruzei esta tarde, Ângela Caires cita o escritor: «Nada sei do futuro, e o passado quase esqueci. Li muito e foi pior. Conheci gente estranha nesta Viagem». O livro alberga textos diversos, um deles a narrativa da história que levou Pacheco ao Torel, dali ao Tribunal da Boa-Hora, para fundear na cadeia, por envolvimento sexual, porque amoroso, com uma menor. Nas suas próprias palavras «é uma história de amor, triste como o costume. As histórias de amor alegres não são para contar. As verdadeiras acabam sempre mal duma maneira ou doutra». Consegui ler o livro quase todo, esta tarde, nos intervalos da profissão: «estas coisas aos vinte anos custam, lembrá-las aos sessenta faz mossas na nossa alma». Estou quase lá. Mais dois anos, carregado de nódoas negras.

quarta-feira, 18 de julho de 2007

Triste hino à alegria

Porque há mais mundo do que o social, ontem estive ainda com o «Diário Íntimo» de Manuel Laranjeira. Médico em Espinho, Laranjeira suicidou-se por já não conseguir sobreviver à vida. O Diário é um escrito singelo, sem pompa, por vezes ingénuo, com momentos de surpreendente observação. No dia 8 de Maio de 1908, uma sexta-feira, confiou à folha da agenda médica de que fazia repositório memorialista, como descobrira que Beethoven fora «infinitamente triste, tragicamente triste, divinamente triste»: porque «concebeu e sonhou uma alegria que não existe».

segunda-feira, 16 de julho de 2007

O encontro e a separação

Graças ao meu amigo que lá se ficou pelo Oriente fatal, continuo a ler o Wenceslau de Moraes, de que ele me envia, pelo correio, livro a livro, todos os que estão a ser editados em Macau evocativos da sua extraordinária obra. Estive ontem com um dos seus contos, em torno de um provérbio japonês. Escreve-se, em grafia ocidental, «Au Wa wakaré no hajimé» e traduz-se, diz Moraes, em versão livre como «o encontro é o começo da separação».
Curioso não é a natureza budista desta frase, mas sim, que, ante ela, e colocado perante o confrangedor princípio segundo o qual «se quiseres evitar a separação, evita o encontro», ele nos anuncie, com aquela candura triste que a velhice traz que «em assuntos de amor, eu creio mais nas borboletas do que em Buda».

sábado, 14 de julho de 2007

O hóspede

Ter tantos sítios onde se pode escrever, não quer dizer que se escreva. Às vezes é a falta de tempo, outras a de paciência, muitas vezes o querer falar pelo silênciao.
Ainda por cima um ser humano não se esgota numa profissão, numa militância cívica, mesmo numa vivência filosófica. Sobeja às vezes pessoa dentro do indivíduo.
Aconteceu assim.
Estou, em intervalo do meu viver, num magnífico lugar, casa antiga que hoje sobrevive à conta do turismo de habitação. Casa de memórias acumuladas e poupadas, casa de delicadeza sóbria, de vida experimentada. Local de enamoramento de um casal que a vida não separou. Casal onde se lembram os dias dos aniversários natalícios, dos casamento, as datas da formatura, de nascimento dos filhos e do baptismo dos netos.
Acordo e sinto o passado como se presente estivesse e pesa-me então a lástima do que é uma vida desagregada, um hópede que adopta o calor de uma família alheia, os ecos dos seus risos, a sua angústia ante o futuro, como se fossem os seus, à falta de mais alguém.