sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

A arte do ventriloquismo

Na sua biografia sobre Erasmo de Roterdão, Stefan Zweig surpreendeu-lhe, ao contemplá-lo na impressionante gravura de Dürer e no quadro de Holbein, a expressão de um corpo substancialmente inferior à dimensão da obra que o seu cérebro infatigável criou. A sua vida não residia no corpo mas no pensamento
Máquina de pensar, mestre no estilo irónico, escondendo-se atrás de um discurso em que o se e o no entanto eram defesas ante os poderosos, este homem viu o mundo através dos livros, escondido atrás do baluarte dos livros.
Naquele tempo os que viviam entre espíritos irmanavam-se com a criadagem. Saber pedir era uma forma de sobrevivência. «Erasmo lisonjeia nas cartas, para ser mais sincero nas obras», escreve o seu biógrafo austríaco. O Elogio da Loucura é, como artifício de cinismo, um prodígio de inteligência defensiva. Nunca se sabe quem fala, se ele se Dona Estultícia. É a arte do ventriloquismo na sua melhor expressão.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

O acto de dar

Num mundo cheio de pressa e de eficácia há pequenos cosmos de excepção. Aqui na rua há uma pequena loja que, entre outras extravagâncias, vende embrulhos para prendas. Ou melhor, embrulha prendas. Papel diferente, vistoso e colorido, laços e florinhas, cartões e cordões, pequenos selos a lacre, tudo o que dá um ar de imponência e de importância a uma pequena lembrança.
Claro que o invólucro não dura um minuto, a ansiedade de quem recebe, por vezes, estraga logo o magnífico envelope, para que, desventrado, dê à luz o apetecido conteúdo.
O acto de dar é, porém, o aguardar pelo que embrulha o que se dá. Meia-hora está bem? Sim, meia-hora para que fique tudo como deve ser e o acto de oferecer seja uma longa paciência.

domingo, 22 de fevereiro de 2009

O oco

Continuei com as aventuras do Kiá, desta feita envolvendo o Príncipe Rodolfo da Sérvia, o Conde de Castronovo, o encontro onde o Largo da Estefânia se cruza com a Pascoal de Melo e que a senha «o ninho da águia» proporcionou, o anão, o mealheiro quebrado, a mulher austríaca de farto seio e o agente secreto Cabral, a criança raptada e subsituída, o manicómio do Dr. Hernâni e, eis-me onde queria, o interior do Arco da Rua Augusta.
Há nas entranhas desse monumento triunfal um relógio e o mistério do seu vazio. A entrada faz-se por uma disfarçada portinhola. Por debaixo da praça o oco que a estacaria sustenta. Hoje ronda por ali a toupeira do metropolitano e um halo de insegurança.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Confusão

Em matéria de Lobo Antunes a confusão é possível porque todos escrevem ou quase. Em matéria de Lobo Antunes a confusão é impossível pois são todos diferentes de feitio e só vagamente semelhantes de cara. Pois num dos últimos posts chamei João ao António. Estava cheio de sono. Alertado já fui emendar. Vim aqui escrever sobre isso não com medo que me achem ignorante, só para me irmanar com os que dão erros, perdão fazem erros.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

O milagre da multiplicação dos peixes

Viver debaixo do mar só deve ser bom quando se vê o céu. Claro que para os peixes o céu é o tecto onde a água se lhes acaba. O reflexo que as nuvens ali projecta deve parecer-lhes uma imagem sem realidade, por isso sumamente bela. Se houver um arco-íris aquático, acredito na refracção da luz como se acredita nos milagres, do anil ao violeta.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Personagens

A universalidade da ideia de contar uma história possível chama-se ficção. A particularidade que faz ver na possibilidade dessa história uma realidade chama-se vida. No fundo é assim. Vivemos todos os dias uma vontade de que as coisas sucedam de modo imaginário. Quando, ante o sucedido, a alma nos sorri, chamamos a isso felicidade. Quando se nos esgota a imaginação, e já nada se recria, os outros julgam que morremos. Para tornar isso verdadeiro, fechamos os olhos e entramos em rigidez cadavérica. Nos registos oficiais abatem-nos ao efectivo. No círculo dos sentimentos privados vão ocupando o nosso lugar com outros frutos da invenção. Há os que deixam livros de memórias, forma de escaparem à menoridade através da grandiloquência. Outros ficam soterrados como personagens de histórias indecentes, forma de se rirem todos da moralidade e suas maçadorias. No meio disto há os que contam. Por eles, lágrimas de saudades imediatas, lembranças risonhas, a paz enfim de renascerem, inesperados, nos nossos corações.