sábado, 25 de agosto de 2007

Resultado zero

Enfim, a chuva, lavadora de valetas humanas, fecundadora da terra de si ansiosa. A chuva e a sua companheira trovoada. Há muito que a não ouvia, electrizante, ribombando, multiplicando ecos e iluminando-nos com as suas múltiplas estridências. Quando era garoto contava pelos dedos o tempo em segundos da faísca ao trovão e como produto de cada cálculo mental da multiplicação por trezentos e quarenta metros achava a distância do raio, normalmene em quilómetros. Era uma forma infantil de me ir assuntando à medida que o número decrescia.
Um dia, andava pela terceira classe uma descarga fulminou o pára-raios da minha escola. Foi aí que descobri que pequeno é o Homem comparado com a grandeza da Natureza e aprendi a primeira lição de humildade. Nesse dia a minha conta ia dando resultado zero. Igual a nada!

domingo, 19 de agosto de 2007

A renovação do ser

Há o costume de no dia 31 de Dezembro se jogarem fora coisas velhas, de no primeiro dia do ano se ir almoçar fora, tudo esperanças de que o renovar do calendário traga novidade e, nas sociedades onde há pobreza, comida!
Há entre os orientais, o hábito de nesse dia comprarem um animal em cativeiro, como um pássaro numa gaiola, ou um peixe num aquário e darem-lhe a liberdade.
Há em mim o começar muitas vezes o ano sob o peso das amarras, na ânsia de me renovar: assim é no dia um de Janeiro, depois das férias de Verão, quando fico mais velho um ano, quando acordo de manhã bem disposto.
Hoje ouvi falar da beleza do mar e lembrei-me da sua eterna renovação. Por um instante quis ser o peixe ou o pássaro devolvido a todas as possibilidades do ser, que é, filosoficamente, a essência primária da liberdade.

sábado, 18 de agosto de 2007

Leituras iniciáticas

Acho que já me queixei aqui disto: a Livaria Bertrand, que terá os direitos autorais do Aquilino Ribeiro ,deixou esgotar grande parte das suas obras, sem as reeditar. A mesma Bertrand, que editou em vida o Vergílio Ferreira, praticamente já só vende do Vergílio Ferreira a «Aparição», que passou, coitado dele, à maldição compulsiva de livro escolar.
Claro que os editores não são beneméritos da Pátria, mas estes livros não deveriam ser daqueles que deveriam fazer parte de um acervo de obras obrigatórias que o Ministério da Cultura tornasse inesgotáveis?
Lembrei-me disto porque ontem um artista plástico, filho e neto de bibliófilos, me falava, com enlevo, nas várias primeiras edições que havia em sua casa, entre elas uma obra extraordinária do Camilo Castelo Branco, o «Frei Luís de Sousa».
Não me ri porque me apeteceu chorar. Razão teve o Camilo para dar um tiro na cabeça!
Hoje na FNAC uma bem arranjadinha senhora, daquelas de malinha e gargantilha, que educou filhos e toma agora conta dos netos quando os pais vão ao cinema ou se divorciam, ou em ambas as circunstâncias, folheava, pausada e deliciada, a secção de literatura erótica. Nunca é tarde para se aprender, de facto. Afastei-me, discreto, deixando-a no deleite daquela iniciação ao tempo que lhe resta com o corpo que lhe sobra.

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Um instante

Usava um kilt, mas nem sequer era europeu quanto mais escocês. Era negro e americano. Usava botas militares e ao peito um símbolo pacifista. A roupa era medíocre, os dedos vinham inchados de anéis em ouro. Acompanhava-o um cão dos que guiam cegos, mas nem ele era cego e o cão era uma cadela. Eu regressava de comboio com vontade de viajar de comboio. O mundo parou por um instante e sorriu para nós. A rapariga bonita que viajava connosco sumiu-se na multidão, ignorando-nos, os olhos postos no ponto imaginário de alguém que a desejasse.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

O Príncipe, de comboio

Vim de comboio de Loulé a Braga a ler o «Príncipe» do Maquiavel, por causa de uma promessa de trabalho em que me enredei e quero cumprir até ao final de Setembro. Cheguei à conclusão que ele escreveu a obra para fomentar um principado que salvasse a Itália dividida, quando o seu coração se inclinava para a República romana.
Cheguei agora, ao Hotel da Estação, e cruzei-me na recepção com o revisor e o maquinista, que vão também pernoitar por aqui. Qualquer dia eu e a CP somos uma família e ainda passamos a Consoada juntos.
Instalado, vim aqui ao meu bloco de notas, deixar um apontamento do que li ferroviariamente.
Maquiavel quiz dedicar a obra a Juliano de Médicis, que teria na altura 25 anos. Só que este magnífico florentino morreria inesperadamente e o livro seria dedicado a Lourenço de Medicis, duque de Urbino, O Magnífico, que por sua vez morreria, jovem também, em 1519, sem poder concretizar os conselhos que assim recebia.
É por isso patético o momento em que, no capítulo 26, exortando o jovem a que cumpra o espírito italiano e trate da redenção da sua terra e a liberte «das mãos dos bárbaros», lhe lembra que «Deus não deseja tudo fazer, para não vos tolher o livre arbítrio e o quinhão de glória que soubermos merecer».
Tinha razão: Deus, não desejando tudo fazer, encarregou a morte do que tinha de ser feito.

sábado, 11 de agosto de 2007

A piedade de Deus

Vaidoso, senhor de si, barroco no estilo, petulante mesmo na forma, Hermano Saraiva está a deixar um legado invulgar sobre a visão do Mundo e da sua pessoa. Nos fascículos em que nos conta, dispersas, as suas memórias, são os pequenos momentos que me atraem e me prendem à leitura.
Como naquela escrita, tão íntima e sentida, perpassa o amor que ele nutria pelo irmão António José, que lhe ganhou a dianteira no caminho para a morte!
Ei-lo, ante o Panteão em Roma, a sentir-se capaz de ali mesmo, ante aquelas gigantescas colunas, rezar e a recordar que aquele que era carne da sua mesma carne «não rezaria em nenhum altar. Nunca estava contente consigo próprio. Pensava e rasgava o já pensado».
A um homem destes, falho de fé, só lhe vale a piedade de Deus, se Deus o não abandonar, misericordioso e contristado pela sua alma.
Hoje é sábado, continuo a ler, tal como ele na Piazza Navona: «tenho o sentimento de que não sou eu que estou na praça, é a praça que está em mim».

quarta-feira, 8 de agosto de 2007

O vácuo

Acabei de ler um extraordinário livro que sendo sobre o culto do chá é, afinal, uma escola de vida. Há nas suas poucas folhas, momento singulares em que o taoismo, o confucionismo e o Zen se convocam para nos mostrar quanto enganados andamos na multiplicade das nossas exigências, na quantidade das coisas que nos cercam.
É «a reiteração do inútil» que caraceriza a maioria dos nossos lares. Ora só no vazio está a essência do todo, só ele permite preencher o espaço através da imaginação. Ao deixar algo por dizer, fica sempre a eventualidade de se completar a ideia, ensinou Laotse. Acabei de ler um livro pequeno, em que as folhas que lhe faltam são, afinal, tudo o que há para ser pensado.

terça-feira, 7 de agosto de 2007

Livros idos

Lembro-me do livro sobre Vilarinho das Furnas. Ficou. Ficou outro sobre Rio de Onor. Tantos outros ficaram. Recordo-me deles, ao ler esta madrugada: «etnólogo e antropólogo português, António Jorge Dias nasceu no Porto, cursando Filologia Germânica na Universidade de Coimbra e ingressando, a partir de 1938, como leitor de Português em universidades alemãs e, posteriormente, em Espanha. Foi na Alemanha que, influenciado pelos estudos locais, se especializou em Etnologia, onde veio a doutorar-se em 1944».
Vem isto no site da Biblioteca Nacional, a propósito de uma exposição documental sobre Jorge Dias. Até 4 de Setembro. Não me devolverão os meus livros, nem me atrevo a pedi-los. Irei matar saudades deles e da falta que me faz a ideia de os ter.

sábado, 4 de agosto de 2007

Afinidades

Trouxe comigo, entre outros, um dos livros do Wenceslau de Moraes que não consegui acabar de ler durante os últimos meses, «Os Serões no Japão». São apontamentos, menos do que crónicas, mais do que notas. Um deles, queontem li, abre com uma anedota a de um velho juiz que, a julgar um caso de bigamia, e ao não se lembrar que pena cabia a tal crime, segredou ao colega a pergunta respectiva, obtendo como resposta que a pena era «ter de aturar duas sogras».
Como, nos termos da lei, as afinidade se não quebram com os divórcios, quem casou muitas vezes com ex-casadas, vulgaridade neste mundo moderno em que os casamentos se numeram, está condenado a mais uma infelicidade desse seu atribulado passado conjugal. Qualquer que seja a ex- para que se volte houve-a falar «na minha sogra», querendo dizer a mãe do outro. Depois uma pessoa habitua-se a que aquilo não tem sintomaticamente a ver consigo. Ao menos, nesse linguajar doméstico, algumas viúvas, que se vão pela lei da morte libertando, estão mais defendidas, porque se referem sempre ao «falecido que Deus haja». Algumas acrescentam «e que a terra lhe seja leve, apesar de tudo». O dito, esse, não passsa pelo embaraço de ouvir.