sábado, 16 de março de 2024

O regresso do editor que se edita

 

Gosto de livros sobre livros, livreiros, escritores e editores. Tenho alguns livros sobre a arte tipográfica. Fui por duas vezes editor, no próximo mês, voltarei a sê-lo, de livros meus principalmente. Ontem fechámos a revisão da capa e do texto, aquilo a que na gíria de chama "o miolo", como no pão o seu recheio. Em breve anunciarei do que se trata.

Não tenho pudor quanto  a ter sido e ser autor e editor. Tenho obra vária publicada em editoras de renome. Editar-me restitui-me liberdade, a do quando, a do como, sobretudo a do quê. Aprendi a fazer, errando e retomando.

Fico amputado do mercado, é certo, ou o que dele subsista num tempo em que as livrarias vão encerrando, os livros passam por elas uns poucos dias, quais aves de arribação, o número de leitores vai-se rarefazendo.

Consigo conciliar, com dificuldade é certo, ser advogado com a leitura e a edição, porque a vida não se esgota na profissão e durmo muito pouco. Tiro a mim o  tempo breve que me resta.

Esta semana apalavrei a publicação de dois livros meus por uma editora já com renome e expressão. Tenho contrato firmado com outra para uma biografia na qual trabalho nos intervalos. 

É assim. Estou a organizar-me para a recta final nesta longa maratona que é viver. Este mês completo 75 anos, carregados de esperanças.

domingo, 29 de outubro de 2023

Froilando de Melo: o acaso de um livro



Releio o livro e reler livros é sinal de algo havia neles que deixou marca ou algo em nós que nos levou ao seu reencontro. Tinha escrito sobre ele, neste mesmo espaço há dez anos, no mês de Junho.

Cruzei-me com o seu nome quando em 2001 escrevi o livro Espião Alemão em Goa, publicado esse ano em primeira edição, pela extinta Hugin e reeditado pela Oficina do Livro em 2011.

Na altura correspondi-me com seu filho Alfredo de Melo, a viver no Urugai e que consegui localizar durante a investigação para a escrita.

A narrativa centrava-se em torno do ataque, efectuado por um comando do SOE, o serviço clandestino britânico sediado em Calcutta, aos navios cargueiros alemães Ehrenfels, Braunfels, Drachenfels e o italiano Anfora, que tinham procurado o porto neutral de Mormugão quando do início da Segunda Guerra e ali permaneciam em 1943, confiados à protecção da nossa bandeira. O propósito oficial era a neutralização de um emissor clandestino que difundia informações sobre o tráfego naval no Índico a partir de uma rede de espionagem organizada em Moçambique.

História de guerra secreta, foi também a de um grave conflito diplomático com Portugal, dada a neutralidade portuguesa e a circunstância de se tratar de um acto ilegal de pirataria praticado pela nossa mais velha aliada.

Ante o ataque, a tripulação, obedecendo a instruções, incendiou os navios e afundou-os, para que não fossem capturados.

Isso originou um processo judicial no julgado de Mormugão, que deu azo inclusivamente a um recurso da pronúncia que chegou ao Supremo Tribunal de Justiça e ao que seria um grave erro judiciário não fosse a intervenção do Governo português.

No rescaldo do incêndio, os feridos foram evacuados para terra e aí a intervenção do médico Dr. Froilano de Melo, director do hospital.


Cito as menções feitas à sua pessoa e a seu filho naquele meu livro:

«Na verdade, o próprio Governador Geral, em acto seguido ao incêndio dos navios telefonou para a residência do Dr. Froilano de Melo, director do Hospital, a solicitar uma intervenção clínica, no local, ao que este acedeu, fazendo-se ajudar pelo Dr. Pacheco de Figueiredo, lente da Escola Médica»

[...]

«Numa das lanchas dos serviços de saúde, Alfredo de Mello, então um jovem estudante de medicina, acompanhando seu pai, o médico Dr. Froilano de Mello, tentaria estacar o sangue a um dos marinheiros do Ehrenfels, mas este esvai-se por uma hemorragia da artéria femoral e morre à vista da Fortaleza dos Reis Magos. Seria seguramente o marujo Paskarbeit».

Mundo pequeno este. Tinha escrito sobre o médico, agora ressurgia-me o escritor.

Quiseram as voltas pelas livrarias e alfarrabistas que me cruzasse com este seu livro, editado no Porto em 1946 e com dedicatória firmada em Nova Goa na Páscoa de 1944.

Dedicado à mocidade de Portugal, é obra de ternura e exaltação ante a obra poética de Rabindranath Tagore, elegia final «de que a Índia do futuro venha a ser o que foi a Índia do passado» não «a Índia de hoje, fragmentada, deprimida e espezinhada, e pátria do indo-ária do período védico era [da] Imortalidade nos novos Céus radiosos e eternamente iluminados».

Mas não se resume a isso e seria muito, a meditação sobre o ensinamento do iluminado bengali que Froilano leu em tradução por não dominar a língua original.

Verdadeiro guia espiritual, a acompanhar da infância à morte, encontra na poesia, na música, no pensamento, na escrita tagoreanos, ensinamento e conforto para a caminhada pela vida terrena e a preparação para o momento da morte, o momento em que «a entrada na Eternidade é a absorção na Imortalidade pregada por todos os sábios e filósofos da sua terra! Absorção calma e serena, que nem anseios pela felicidade subjectiva, nem as tristezas da vida terrena, podem jamais atingir».

É precisamente o capítulo final, antes do epílogo, aquele em que, qual cume da ascese, a obra atinge o seu mais elevado momento, ao focar-se na morte terrena, intervalo de uma vida quotidiana que «é uma série de mortes e de renascença».

Ou como canta o Bhagavad Gita, ali citado «Não nasceu, nem morre! E não tendo princípio, não cessará de existir. Incriado, eterno, antigo, permanente, fica indestrutível quando o corpo é destruído. Não o atinge a ruína, não o queima a chama; não o humedece a água, não o seca o vento».

domingo, 13 de agosto de 2023

Lima Barreto: prodígio em amanuense

 


Foi este livro que me trouxe Lima Barreto. A partir daqui, a gentileza do meu fraterno amigo Ernane Catroli do Carmo, com quem partilhei a ânsia, obsequiou-me com outros, entre os quais um livro de contos, que a Editora Brasiliense deu à estampa em 1979, sob o título A Nova Califórnia, a colectânea Prosa Selecta, publicada pela Editora Aguilar, em 2006, naquele magnífico papel bíblia que tanto seduz pela maciez e pelo milagre de não deixar transparência, e onde estão romances, sátiras, a memorialística, tudo assistido por bibliografia, índice, introdução geral e comentários de apreço de vultos da cultura brasileira. 

A juntar à generosidade, Catroli, que é médico e ser das Letras, juntou ainda a edição original, de 1956, da já referida Editora Brasiliense, que contém o Diário Íntimo, com prefácio, datado de 1954, de Gylberto Freire, texto complementado com notas explicativas que a edição da Prosa Selecta não contém.  E tudo isso veio do Brasil, sujeito aqui a taxa alfandegária, que é a forma que a Fazenda lusa tem de explorar a cultura, mesmo sendo livros de oferta pessoal, colectando até amabilidades.

A todos esses livro voltarei, depois de os ler. Estou a terminar os contos. E tenho outros, entretanto, a aguardar os interstícios do tempo.

Vida e Morte de J. M. Gonzaga de Sá, escrito entre 1906 e 1907, mas só publicado em 1919, é livro mimoso na sua confecção. Editou-o, em 2021, a Húmus, editora situada em Ribeirão,  Vila Nova de Famalicão, inserindo-o na sua colecção A Ilha. Pertence à categoria dos livros em offset, «cadernos cosidos, com folhas não aparadas, como no passado», ligando assim a colecção à História do Livro.

Li-o cuidadosamente. Anoto apenas, e com mágoa, que, no título, o nome da personagem surge grafado como «J. M. Gonzaga de Sá», quando na verdade o seu nome é Manuel Joaquim Gonzaga de Sá. E «M. J.» é, de facto, o da edição original e suas repetidas reedições.

Há na escrita de Afonso Henriques Lima Barreto a manifestação do génio, a evidência de cultura notável, a expressão estilística que faz ressaltar a ironia e confere à nostalgia maior densidade e extensão. 

Vítima de uma vida conturbada, minada pelo álcool e convergentes males psiquiátricos, assombrada pela loucura de seu pai, sucessivamente reprovado em exames escolares, da Mecânica ao Cálculo e até à Medicina, é como amanuense da Directoria do Expediente da Secretaria da Guerra, que encontra o seu ganha-pão, dando livre curso à sua produção literária e envolvimento na formação de agremiações culturais, candidato frustrado à Academia de Letras brasileira.

Mas nada ressalta, porém, aqui dessa tragédia em que o próprio fim impressiona: Lima Barreto faleceria a 1 de Novembro de 1922, dois dias antes da morte de seu pai. Tinha 41 anos. O corpo viveu de menos para a grandeza de sua alma.

Fica, sim, como traço do personagem, a vida burocrática, autobiográfica mesmo, Gonzaga de Sá, ocioso funcionário da Secretaria dos Cultos, onde se burocratizava o necessário para a gestão, incluindo a protocolar, de variados credos, em que «imãs, muezins, bispos, lamas, bonzos, dervixes, foram postos ao lado uns dos outros camarariamente». 

E é neste contexto que abre, risonha, a primeira questão de suma gravidade à escala daquele mundo de insignificâncias: o Bispo de Tocatins, ao entrar no porto de Belém, havia sido recebido com dezessete tiros de salva, mas reclamava ter direito a dezoito, citando em abono «basto cabedal de textos e leis», o que gerou consulta necessária «ao estabelecido na legislação dos povos civilizados ou não» e o parecer das grandes repartições técnicas do ministério. 

E continua Lima Barreto o que foi o entendimento dessas doutas instâncias da Administração: «A informação da secção de artilharia recordou por alto a teoria da separação de poderes; a divisão de Justiça, porém, abandonando as leis, os tratadistas, baseou-se em questões teóricas de artilharia, desenvolveu cálculos, para mostrar os fundamentos da queixa de Sua Reverendíssima». E assim sucessivamente, para gáudio do leitor.

Não contarei aqui a a narrativa, apelo, sim, à leitura da obra. Num mundo de indisposições, dá alento.

Registo também o modo de dizer, a que a língua portuguesa, tal como no Brasil se expressa, dá corpo, mas que o estilo de Lima Barreto potencia, gerando no leitor atento a necessidade de suspender o correr da leitura para pensar numa palavra, em uma frase. É o «mar espelhejante e móvel», o «séquito de palmeiras pensativas», «a voz pausada, cheia de mansuetude e bondade», o «lucuresco hoteleiro» e tantas mais.

E, depois, o modo de compor as frases: a limitada história sentimental de Gonzaga, que «não foi casado, esqueceu-se disso», «o futuro escriturário [que] não dava para o rodapé; declarou-se "besta" e fez um concursozinho de amanuense, e foi indo», que «ficou como um escolar que sabe geometria a viver numa aldeia de gafanhotoso», o ministro, Juca Paranhos, que era «uma mediocridade supimpa [...], um atrasado que a ganância das gazetas sagrou e a bobagem da multidão fez um Deus», as costureiras, esses «pálidos infusórios da sociedade», operando aquele «ajustamento torturado de panos às carnes» e por aí fora.

Enfim, a constante presença nessa escrita de um cultura literária e filosófica, fruto de autodidactismo, a menção a Poincaré, a Renan, a Abelardo, a La Fontaine, Edgar Poe, Augusto Comte e tantos outros. E não por teatro de exibição, sim no a propósito que a torna a referência justificada e disso ressalta o conhecimento de causa.

Na invulgar e monumental de Lima Barreto, editada em 2017 pela Companhia das Letras, Lilia Moritz Schwarcz, apodou-o de «triste visionário» e cita-o quando afirmou que qualquer vida é feita «de muitas vidas e muitas existências». Assim a sua grandeza, assim o cansaço esgotante que a persegue.

sábado, 29 de julho de 2023

Virgil Gheorghiu: a ascese pela dor

 


Tinha concluído a leitura há umas duas semanas, lidas as suas 313 páginas muito devagar, tal o peso que um livro destes deixa na alma. E retardei vir aqui falar dele. Há mais situações assim, por idênticas razões: o mutismo que nasce ante o maravilhoso que se contempla.

O autor, romeno, é ou talvez tenha sido autor controverso, por razões políticas, o que em Arte tem valia duvidosa, mesmo quando se trata de um testemunho de vida, como é este, sobretudo porque a vida é contada de um ponto de vista da angústia teológica vivida sobre o esmagamento do seu povo. 

Constantin Virgil Gheorghiu nasceu em 1916 em Valea lui Alb (Vulturesti), na Roménia., em plena primeira guerra mundial, a ter ouvido, como primeiras palavras na Terra «palavras de guerra. De miséria. De morte. De luto, De derrota. Ocupação. Órfãos. Viúvas». as marcas dessa sofrer ficaram nas páginas dos muitos livros que escreveu.

Desempenharia funções diplomáticas entre 1942-1943 no estrangeiro. Sujeito a cruel destino, fruto das vicissitudes do seu país, aliado do Eixo e depois dos aliados, dominado, enfim pelos soviéticos, procuraria refúgio em França em 1948. Na sequência de estudos filosóficos e teológicos em Heidelberg, tomaria ordens religiosas. Faleceu em Paris em 1992.

O livro é o relato da angústia pessoal da personagem em que se revê o autor, a sua génese, o seu propósito: surge porquanto, antes dos sete anos, Virgil descobre que não há no cristianismo ortodoxo, religião que é a dos seus maiores, nenhum santo com esse nome e, por isso, fica privado da festa onomástica, que é, para os os ortodoxos, o dia de festividade e não, como quanto aos demais, o do nascimento biológico, este impuro porque comum aos demais seres viventes; torna-se missão, a de, em substituição a essa ausência de nome santificado, tornar-se, ele próprio, santo, inaugurando assim, uma linhagem de que outros se reclamem.

Ora, o eixo da narrativa decorre da interiorização de que só alcança a santidade quem for capaz da maior provação, a de amar os próprios inimigos, e é essa a gesta que está presente em toda a narrativa deste livro, a qual é, simultaneamente, a do martirizado povo romeno, relato de um viver interiorizados os fundamentos  dogmáticos e simbólicos da transcendência e seus ritos.

Um livro assim não se resume, não se relata, sente-se ao lê-lo. E, infelizmente, está esgotado. O meu exemplar, publicou-o a Bertrand em 1968, traduzido do francês por António Barahona da Fonseca.

Que posso partilhar do que li, sem degradar a delicadeza da escrita e a espiritualidade do contexto, quanto ao fundo sentimento que as suas páginas suscitam? 

Através dele surgem, relatados no seu rosário de horrores, excertos da história de sofrimento e sujeição daquela região, a vertente oriental dos Cárpatos, afinal um excerto da biografia do seu autor - e biográficas são tantas outras obras suas - inserida numa sempre recorrente problemática teológica, como unindo o Céu e a Terra. 

Acompanhando-lhe os passos, nessa ânsia de santificação, que, no final, fica em aberto como destino a cumprir-se, o leitor encontra uma sabedoria comovente e momentos surpreendentes porque de inesperada simbologia, a religião sempre presente. Para os entender, sentindo-os intimamente, é preciso, porém, que se tenha do fenómeno religioso uma noção densamente espiritualizada, tão fora da superficialidade paganizada que hoje se tornou comum em tantas congregações, incluindo as filosóficas.

Ficam apontamentos, pinceladas como num óleo que se torne imagem impressionista que restitua a sensação de ver. 

É a festa do início da escrita e da leitura, ritualizada e assim significativa, porque «as crianças que, caligrafando, desenhando as letras, imitam simbolicamente, ao escrever,  os mistérios da Santíssima Trindade. Ou seja: a Encarnação do Verbo, a Morte e a Ressureição», tudo isso porque «toda a caligrafia é uma teologia, um conhecimento de Deus». 

É uma perturbadora ideia de salvação, que irmana santos e pecadores, nenhum sem a garantia de estar livre de culpa, pois «todos, sem excepção, são culpados e condenáveis perante Deus», já que «nenhum homem poderá ser resgatado sem a misericórdia de Deus e a intercessão dos santos e dos anjos».

É uma igreja em que, sujeita a Roménia ao domínio soviético, o metropolita se confundia enquanto funcionário do partido comunista, mas em que se mantinha a evangelização por padres de aleia, «padres proletários. Padres-cavalos. Que serviam o Senhor com os seus pés percorrendo a montanha e levando a palavra divina, os sacramentos e a oração», porque «os padres eram animais de carga. Os cavalos de Cristo».

É uma celebração litúrgica em cuja assembleia «estão presentes aqueles que nos precederam e que hoje estão mortos, os que vivem e os que hão-de nascer. Porque na igreja, o tempo não existe durante a liturgia», o ofício em que se reza a «oração Senhorial», o nome do Padre Nosso «a mesma oração para todos os cristãos da Terra - sejam eles católicos, ortodoxos, protestantes, anglicanos».

É a exaltação da fé, a que «não se aprende lendo livros de teologia», como a sede que não se mata lendo tratados sobre hidráulica.

É, digo enfim, pois não é possível progredir aqui neste brevíssimo apontamento, o sentido das raízes, descendentes os romenos da Roma de que a loba amamentando Rómulo e Remo é efígie e motivo do digno e nostálgico orgulho de serem latinos, morto o Império Romano do Oriente em 1453, com a invasão turca.

Um livro destes guarda-se para que se releia. Depois de o ler não se fica o mesmo, ainda que não se tenha encontrado um outro ser.

domingo, 25 de junho de 2023

Ladislau Patrício: ironia e sal-de-azedas

 


Ladislau Patrício, médico, nascido na Guarda em 1883, falecendo em 1967, dedicou-se, para além da sua profissão, também à escrita, pois já houve e sempre haverá quem seja assim.

Nenhuma obra sua consta da base da Biblioteca Nacional, ali só um apontamento biográfico, editado em 2004, pela Câmara Municipal da cidade, da autoria de Helder Sequeira. Tem nome de rua em Lisboa, na zona do Lumiar, sendo natural do Porto e tendo vivido na terra dos guardenses.

Encontrei, em alfarrabista, um dos seus livros de crónicas e versos, publicado em 1927 pela entretanto extinta Livraria Rodrigues, Editores, com sede em Lisboa, na Rua do Ouro, com autógrafo de dedicatória ao seu colega «gentilíssimo espírito» Dr. Augusto d'Esaguy, ele também escritor e condecorado inclusivamente pelo Governo cubano e pelo português com a Torre e Espada. Intitula-se O Mundo das Pequenas Coisas.

A obra transpira, em três das suas novelas, bom humor, rica sem excesso quanto ao vocabulário, escorreita e sedutora no estilo irónico. Os versos, que compila na segunda parte das 157 páginas, talvez sejam menos conseguidos. Cunhado do poeta Augusto Gil, não conseguiu guindar-se à altura do autor de Avena Rústica, a quem Lisboa dedica um jardim, ali pela Graça. 

Há também, em jeito intimista, como excerto de memórias, um apontamento, escrito em 1908, sobre a festa local em homenagem a São João Baptista, de que ontem se comemorou o dia, e, sob o título Viagem Sentimental, a narrativa da intrusão sufocante de uma família no compartimento em que o autor fazia, supondo-se em sossego, uma viagem de comboio, grupo em que «o chefe do rancho era um homem nédio, sanguíneo, que rebocava uma senhora pesada (onde eu adivinhei a esposa) e mais duas raparigas e um garoto, de marinheiro, magrinho linfático e triste».

Mas é, sobretudo a História de proveito e Exemplo, que mais me atraiu, narrativa da prepotência e volubilidade de Anselmo, o farmacêutico local, dono de termómetro e barómetro e assim Senhor dos destinos dos que da meteorologia careciam tanto quanto da farmacopeia que aviava e manipulava, sujeito de aparente «preopinante vontade» mas que os ventos da História amoldariam. 

Local ermo aquele, onde «os dias sucedem-se no entanto, ronceiros, bocejados, entre labaredas do firmamento implacável, de bronze, e a aflição da Natureza calcinada e triste». 

E tudo sucede a 16 de Maio de 1906, precisamente, com a queda do ministério e a nomeação real de João Franco, a lançar alvoroço naquele coração apertado do boticário. «Agora é que se vai ver o que é governar às direitas», clama, porque os outros, os da República velha, «por pouco que não põem o país a saque!», «súcia de gatunos!»

Adivinha-se o devir da narrativa. Aos poucos, os aderentes, essa mão cheia de adesivos que se achegam ao que parece pingar de prebendas, aproximavam-se e teimavam eles em tornar Anselmo presidente da Câmara. E que o dito tinha créditos, porque já tivera do cargo o mando, e, tendo de enfrentar uma greve das leiteiras da terra, que recusavam a venda, opinou, hábil no chiste, que pior seria, se a greve «em vez de ser feita pelas vendeiras, fosse feita pelas próprias vacas».

Quanto ao messiânico João Franco parecia ungido de vantagens e sobretudo não se lhe encontrava o que seria um grave inconveniente, pois «era um homem rico, circunstância eminentemente favorável à precária resistência do Tesouro». Ademais, era valente: «Olha quem! Se lhe constar que a uma esquina está alguém com cacete à espera dele é quando lá passa mais depressa...»

E ei-lo, pois, franquista. Só que a política é mutante e o tempo passou. Quatro anos volveram rápidos.

Em suma, abreviando a história, chega um portador de Moimenta com a notícia. Revolução em Lisboa, mataram o rei, a capital do Tejo «num mar de sangue». 

Ora tudo isto trazia uma grave alteração de circunstâncias. Não por Lisboa estar «num mar de sangue», já que, naquela lógica de um só povo uma só nação «nós cá não temos nada com isso: é lá com eles!». Problema é que, já agora e indo ao osso da questão, «República ou Monarquia, que importa? O que é preciso é haver quem nos Governe». Ordem, pois, e mando! 

Só que, içada a 5 de Outubro, na Câmara local, o pavilhão revolucionário verde e rubro, Anselmo tem o coração pendente. O caos ajuda à hesitação. «Tinham-se efectuado capturas de funcionários e demissões; surgiam ali e aqui desacordos, antipatias, notas desafinadas no geral concerto; havia descontentes; principiava a falar-se vagamente de conspiradores», a somar a assaltos aos jornais monárquicos, perseguição aos bispos e ao demais clero. 

Convidado a dar apoio às incursões monárquicas de Paiva Couceiro, recusa dinheiro, cauteloso, nega-se a esconder pistolas, promete apenas ao anónimo emissário «estricnina e sal-de-azedas», aquele veneno, este um óleo branqueador. E apoio moral!

Tal nega é, aliás, indiferente, pois está-se na antecâmara do fim dos insurrectos. A projectada incursão «deu em droga» e, duas semanas depois, quando se anunciou na Vila a visita oficial do ministro do Interior, «em viagem de propaganda e apaziguamento», «Anselmo, já perfeitamente integrado no regime, proferiu um discurso de efeito no banquete na Câmara Municipal».

Dois lapsos, porém, actos falhados lhe chamaria Sigmund Freud, ensombrariam, porém, a verve do tribuno reconvertido e erudito. 

Aos brindes saudara «À sua, senhor ministro do Reino!» Mas, rápido na rectificação da gaffe, ei-lo que proclama que «bebia à saúde de Anselmo Ferreira Chifarote, livre-pensador!», ante o que, o Sequeira, personagem local, rematou mordazmente: «Parece que o estou a ver de lanterna e de opa na procissão do Senhor dos Passos...».

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Foto: Arquivo da Câmara Municipal da Guarda


Panait Istrati: o fogo de um coração ardido

 


Leio Panait Istratit. Recupero, com ele, o que tenho perdido por desatenção quanto à Literatura romena. Regressam vestígios de memória e surgem quantos, oriundos daquele país e acolhidos por Portugal, durante a 2ª Guerra, à sombra da paz deixaram notável contributo quanto à nossa Literatura portuguesa, como Leonor Buescu, no que se refere à escrita medieval e seu marido, Victor Buescu. E o apreço dos nossos estudiosos como João Bigotte Chorão por aquela escrita.

E o papel determinante de uma figura notável, que desempenhou em Portugal, durante a 2ª Guerra, funções oficiais de adido cultural do seu País, Mircea Eliade, a quem se devem estudos sobre Camões e Eça de Queiroz.

Animado por este encontro, reagrupo na estante, para leitura futura, o que tenho em livros de Virgil Gheorghiu, de que li muito pouco e esqueci muito do que li, e dou conta que, vergonhosamente, só tenho um livro de Eugène Ionesco. 

Vou em busca da poesia de Mihail Eminescu e deparo-me com uma edição bilingue, co-traduzido por Carlos Queiroz, esse precisamente, o poeta da Ode aos Vindouros, sobrinho de Ofélia Queiroz, com quem quase privei, como se viva fosse ainda, ao transcrever o manuscrito do romance de António Quadros que sexta-feira entrou na tipografia. Mundo circular este.

Cruzo-me, em outra estante, aqui por trás da secretária em que escrevo, com um outro poeta, Lucian Blaga, filósofo e escritor, que foi diplomata em Lisboa entre 1938 e 1939, e de quem foi pulicada, em edição revista, uma antologia poética, prefaciada por José Augusto Seabra. 

E um pouco ao lado, o jornal de prisão de Corneliu Zelea Codreanu, edição francesa, infelizmente muito descuidada, em que tentei entender a mística espiritual da Guarda de Ferro, esse momento trágico da História romena. E Emil Cioran, que comecei com uma biografia e hoje vejo ter uma edição de tal modo volumosa do que talvez sejam as obras completas, que duvido consiga vir a lê-la.

Leio, dizia, Panait Istrati num breve conto, Floárea, em edição da Inquérito, publicado em 1940, o papel amarelecido, algumas folhas a rasgarem-se. Mas leio, surpreendido pelo estilo, esse modo de relatar o insólito pela forma inesperada.

E quiseram as circunstâncias que encontrasse, numa antologia editada pela Portugália, sem data, mas publicada em primeira edição, a que tenho, em 1946, um outro conto seu, O Baragan

Breves ambos, este ainda mais, mas notáveis de densidade emotiva, de invulgaridade. 

Li-os e cotejo-os agora com o espesso volume das suas obras, editadas para já em um primeiro volume, no ano de  2006. Noto agora imperfeições na tradução mas nada disso apaga o vinco fundo na sensibilidade que me deixou o que li. 

Floárea é o texto inicial de uma obra sua, publicada em 1925, ano em que Istrati regressa à Roménia, seu País natal, depois de dez anos de ausência. É a apresentação dos haïdoucs, os lendários revoltados contra a ocupação turca, refugiados na floresta. O Baragan é um fragmento do romance que em francês, língua na qual Istrati escreveu, Les Chardons du Baragan [os cardos do Baragan], publicado originalmente em 1928.

O que dizer que traga a quem lê o sentimento que ficou do que li? 

Floárea Codrilor, mulher capitã dos häidoucs lança a sua história. «Filha das ervas», cuja «primeira paixão, ao abrir para a vida meus olhos, foi correr voluptuosamente de peito contra o vento», lado a lado com o garoto da aldeia, Groza, hoje «o terror entre os cobardes que fabricam leis», o que «esfolou vivo um homem da sua quadrilha», um traidor, Groza häidouc que havia sonhado sê-lo desde a infância.

História de liberdade  porque «certa gente gosta da flauta, como gosta do cão, para o trazer de coleira, como gosta do rouxinol, para o meter na gaiola, da flor para a arrancar do sítio onde Deus a fez nascer, e da liberdade para a mudar em escravidão». História de revolta contra os «senhores da abundância», quais ratos, contra a mesquinhez e a monotonia, «a hora estúpida aos domingos», contra «aqueles bons cristãos que abrandavam os mandamentos da lei de Deus possuindo e gozando, eles sós, a terra toda».

História delicada de enamoramento, de alma sensível e dorida, porque «a resistência sincera duma mulher não tem poder sobre os desejos dum homem vulgar. Ele não sabe onde acaba o embaraço de uma mulhezita e onde começa o desgosto profundo da feminina dignidade. Tudo é permitido à besta que possui a terra».

Já o Baragan é uma estepe no sudoeste da Roménia, onde a narrativa surge no dia de São Panteleimão, quando vem o vento moscal e a cegonha parte. 

Sente-se pela escrita mais do que as pessoas, a própria terra e com ela a Natureza, local desesperado, o Baragan solitário, onde «de um poço a outro há tempo para morrer de sede», e ali o homem pastor, e «sonho, pensamento, ascensão e barriga vazia: eis o que dá gravidade ao homem nascido no Baragan».

É neste cenário que surgem, figura central do relato, os cardos, terra onde não há senão cardos, «semente de má raça», tudo espinho e sementes, inútil, mas «quanto mais inútil, melhor sabe defender-se», e resiste, por isso, os cardos tornam-se maus, vergam-se, a haste curta, o vento galopando «sobre o império do cardo» e, enfim, quebra-se o caule, e ei-los, que «vêm sabe Deus donde e vão Deus sabe para onde».

Panait Istrati. Dele se disse que era chama, o coração ardido pelo incêndio de todas as heresias. 

domingo, 18 de junho de 2023

Robert Walser: a grandeza da insignificância

 


Reencontro Robert Walser, em tradução de Ricardo Gil Soeiro, que seleccionou alguns dos seus textos e os traduziu a partir das Sämliche Werke in Einzenausgaben [Todas as Obras em Edições Únicas].

Lei-o sempre sob o efeito da imagem da pungente imagem das pegadas da neve, a sua última caminhada até ao destino final, os seus retratos sempre em pose formal, cuidadosamente vestido ainda que com roupa já sovada pelo tempo, o guarda chuva escrupulosamente enrolado.

Walser, «escritor suíço de expressão alemã» viveu para a escrita, uma escrita peculiar, não de grandiloquências mas de insignificâncias, feita sobre a minúcia do quotidiano, sobre a «celebração do irrisório», como se diz no prefácio ao pequeno livro que a Assírio & Alvim editou. 

São pequeníssimos textos sobre diminutas circunstâncias, rematados sobre três apontamentos sobre o próprio autor. Em um deles, denominado Candidatura de Emprego, retrata-se em duas frases: «[...] sou um chinês, isto é, uma pessoa para quem tudo aquilo que é pequeno e modesto se afigura belo e adorável e terrível e medonho tudo aquilo que é grande e amplamente desafiador», «tenho uma mente lúcida, embora ela se recuse a aprender coisas em demasia, algo a que ela tem aversão».

Observações atentas à minudência da vida, é uma escrita também de surpreendentes qualificativos como quando escreve: «Durante uma chuva respeitável tudo fica molhado, exceptuando a água, com os rios que já não podem ficar molhados, pois já o estão», ou «o vento sopra e no vento esvoaçam todas as minhas preocupações, como pássaros tímidos».

Escrita mansa, por outro lado, sem tragédia, feita de inocência, mesmo quando vagamente triste, é um afago à sensibilidade àquelas que se defendem de não terem embrutecido.

Ao notar que «A cinza é a humildade, a insignificância e a própria inutilidade e, muito em especial, ela própria está impregnada da crença de que não serve para nada [...]. A cinza não tem carácter e está tão afastada da madeira como o desânimo do triunfo», Walser dá vida ao que parecia nada, assim como, ao coser um botão, nota, referindo-se-lhe, que «é apenas - ou pelo menos assim o aparentas - o propósito da tua própria vida, consagrando-te inteiramente ao silencioso cumprimento do dever», ou ainda, ao ver um velho prego enferrujado, de onde se pendurava um guarda-chuva igualmente velho e desgastado: «Ver como algo velho e amargurado se agarrava a outra coisa igualmente velha e amargurada, ver e observar como algo caduco pendia de outra coisa igualmente decrépita era como ver dois mendigos abraçando-se num deserto frio e desesperado, prontos para morrer a qualquer instante nos braços apertados um do outro».

São estes, os pequenos livros, que se tornam grandes obras.

Robert Walser nasceu em 1878 e morreu em 1956. Terminaria a vida num hospital psiquiátrico. Os 562 microgramas que escreveu, manuscritos microscópicos, são a imagem viva do infinitamente pequeno, o microcosmos em que se encerrou.

terça-feira, 25 de abril de 2023

A circunstância do acaso

Atrai-me o simbólico do que se chama acaso. Ter escrito o texto de introdução para a reedição de um livro de Graham Greene e tê-lo visto mencionado, ficcionalmente embora, nesta obra de um escritor que vou, tardiamente confesso,  começar a conhecer. E um dos personagens chamar-se Hugh Greene, irmão de Graham e com ele autor de uma colectânea de trechos sobre espionagem. E toda a trama da narrativa ser sobre a agonia de uma conferência e eu ter vivido a:semana que passou a sofrê-la pela mesma razão. E ter sido, enfim, uma extravagante circunstância que me levou ao encontro desta escrita, uma ida a uma livraria onde comprei um livro que se tornaria repetido pois esqueci-me então que já o tinha encomendado.
A história, que o livro relata, é da irrealizada ânsia de mudar, entre a cobardia do conformismo e a inexorabilidade das circunstâncias. De permeio aquele conceito de espionagem em todas as suas acepções, incluída a que abrange o voyeurismo e abrange o tema do filme "A Janela Indiscreta".
Estilo entre a rudeza cruel e a ironia burlesca, a narrativa prende, menos conseguidos, por vezes, alguns momentos, magistrais outros.
O imaginário escritor português que lhe dá fundamento ao que escreve, se ele não o desvendasse, passaria por mistério e realidade.
O título tem origem conhecida, portuguesa também. 

sábado, 11 de março de 2023

Alma clarividente

Sábado sem chuva. Deveres da profissão que podem esperar. Manhã de veraneio. Na Rua de Anchieta, livros! Entre eles este Gionanni Papini. Obra de desespero e clamor, cartas ficcionadas, apelo à Fé como Graça quando a razão a negue.
Escreveu-o em 1946. Editou-o a já ida Quadrante, que tinha sede na Rua do Passadiço, em Lisboa. Publicação sem data. Nem no portal da Biblioteca Nacional consta. A capa é gravura de António-Lino.
Irá juntar-se a tantos de sua autoria que tenho pacientemente comprado e lido, fruto do génio de quem escreveu o "L'Uomo Finito", depois do qual, mesmo cegos os olhos do corpo, a alma ganha, na escuridão, clarividência.

domingo, 24 de julho de 2022

Amélia

Escrita breve. Mónica recorda sua Mãe. Interpreta-a, exercício tão difícil, fá-la ressurgir no que ilustrou para este livro. 
É narradora e avisa quando surge, em tímido apontamento. 
Mas é indissociável a sua presença face ao que relata, assim,  como inseparável Amélia, tia de Agustina, não só do livro de que é a personagem e no qual lhe antecipa a morte, mais do que como pressentimento, como antevisão, mas inextricável do que viria a ser a própria Agustina "condenada a administrar o espírito de Amélia".
Tive a honra de editar o "Colar de Flores Bravias", aí a simbiose pictórica de Mónica e o texto memorialístico da autora da "Sibila". 
"Sibilas", aqui no plural, compreensivelmente.

domingo, 19 de junho de 2022

Fernando Pessoa: o tema do outro

Pavorosos na maledicência, certos críticos. Era de bom tom apoucar a biografia de Fernando Pessoa escrita pelo seu contemporâneo João Gaspar Simões.  
Agora que foi publicada a versão portuguesa do monumental esforço biográfico da autoria de Richard Zenith, à falta de melhor há quem o acuse de nada trazer de original e valia sim tinha o outro.
Lendo, como estou a fazer agora e desde há dias, nota-se  a mentira daquela ressabiada proclamação. Infelizmente quem lê críticos não lê os criticados. Pior: refastela-se no escárnio e fica-se por aí. 
Leio, dizia: comecei a mais de meio do livro o que é a minha forma de ler biografias. Está aí o biografado na idade em que  julguei conhecê-lo, teria eu vinte anos. Quando chegar ao fim, e levarei muito tempo por ter pouco tempo, irei ao início, ao início da criatura.

terça-feira, 19 de abril de 2022

Noite onírica, enlanguescente


 Li "O Barão" e já não fui capaz de ler os dois contos que com esta novela completam o livro. Edição pobre, papel amarelecido, formato bolso, corpo felizmente largo para ajudar à leitura, o que não seria necessário porque neste fim de tarde de Domingo comecei e consegui chegar ao fim ansioso por regressar. E leio pausadamente.

A escrita é torrencial na sua cadência por locais oníricos, a cena em crescendo de enigma a ter o seu epígono numa noite alcoolizada, a trama a crescer e sem caminhar definido por onde segue, viagem em busca da memória do amor idealizado, o amor retraído. 

O que seria a narrativa de uma visita oficial de um sorumbático inspector escolar a uma remota aldeia pelas terras do Barroso dá um viagem fantasmagórica pelo enigma e pela luxúria, longos corredores vazios e seu silêncio, o solar decadente onde a vida de há muito decaiu, correrias pelos esconsos do medo e enfim, a queda e a fractura, a morte, os caminhos sombrios do sonho e da loucura, o barão carnívoro insaciado, a desbragar-se em aviltamento e afinal em sofrida carência de companhia.

António José Branquinho da Fonseca, filho do escritor Tomás da Fonseca. Licenciou-se em Direito mas foi do mesmo escasso praticante para além de funções públicas a desaguarem, porém, no serviço cívico a que deu vida, o das Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian que tanta oportunidade deu a que se lesse onde, ao tempo, a leitura não chegava.

Fundara a "Presença", dela sairia com Miguel Torga. Ao chegar à Fundação em 1958 não mais publicaria. O seu livro "Bandeira Preta" é de 1956. 

Dir-se-ia que o escritor se sublima aqui e se redime do pecado do convencional. 

A capa do pequeno volume, desenhada em boleadas curvas languescentes, não vem assinada e é pena. Está ali, num traço, a lascívia do lugar e a que caminha ondulante e deixa atrás de si o momento de silêncio: Idalina, serva e dona, um breve instante, a ambiguidade provocante do quase.


domingo, 23 de janeiro de 2022

Irina Ostrakoff


 Os que supõem que eu leio muito ignoram quanto eu já deveria ter lido. Sucede assim com a obra de Rodrigo Leal de Carvalho, que agora iniciei a partir do seu "Requiem por Irinia Ostrakoff". 

Conheci-o em Macau, há mais de trinta anos, fomos inclusivamente vizinhos no início da minha estadia naquele território.

Amável, cerimonioso, a natureza das funções que cada um de nós desempenhava, ele Procurador-Geral Adjunto, pôs-nos em contacto oficial em circunstâncias que decisivamente não vêm ao caso.

Não o supunha sequer escritor, mas para ter disso uma vaga percepção seria necessário que a minha vida então fosse outra que não a do cargo para que tinha sido nomeado, e, talvez mais ainda, se esse cargo não tivesse criado, ou eu por causa dele, um fosso entre a minha pessoa e o que não eram funções oficiais. Enfim, tudo lamentável, tudo um erro, tudo em nome de uma funesta ilusão, tudo a atulhar-me de recordações desinteressantes, uma lamentável selvajaria. 

O Macau que haveria para conhecer, logo por exemplo, o do seu editor, o Rogério Beltrão Coelho e sua mulher Cecília Jorge e tantos outros que se dedicavam à Cultura, tudo isso eu perdi então.

É com este sentimento nostálgico de inútil arrependimento, impossível a procura do tempo perdido, que terminei, lido aos poucos como só me pode suceder, este seu magnífico livro.

Leal de Carvalho é exímio na arte de contar, um relatar cinematográfico, logo a prender o leitor com a cena de abertura, em que, a inventariar-se os míseros haveres da falecida Irina, se pressente que, envolto no acto, o representante do Ministério Público é seguramente o narrador e por esta via o próprio autor. A partir dali, num tão recordatório ambiente de humidade quente e pegajosa , o ar irrespirável, prossegui para a história daquela ucraniana de vida aventurosa, a ser esgotada desde a revolução bolchevique em 1917, e com ela o exílio para Paris, e despois em permanente viagem, ante o advento do maoismo, pressentido em Xangai, tudo do remedeio à opulência e dali à sordidez, a decadência encapotada pela aparência.

Escrita culta, rica nas referências do contexto histórico em que tudo se move, é também escrita de requinte e de ironia refinada; escrita sensual também, em que a presença carnal nos surge envolta no véu da delicadeza do modo de a convocar.

É também uma escrita bondosa, feita de generosidade compreensiva para os pecados menores, fruto de uma atenta e minuciosa observação dos humanos e das circunstâncias, tantas vezes penosas, em que lhes é dado suportar. O mundo surge-nos ali, como se visto do lado do rodapé da vida, como se a ascensão da rampa que leva aos salões fosse tão efémera quanto a visita, a convite, a um clube exclusivo porque privado.

Vou ler mais, isso em nome de um princípio de que fiz regra, sopesando também o tempo que já se foi: já que leio menos do que devia e do que se supõe, lerei muito do que gosto, nada quase do que suponho não vir a gostar. E não digam que é mundo sem novidade: a haver surpresas, venham as que nos são familiares e são assim já parte do nosso modo de ser. 

sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

O Leopardo

 


«Tenho setenta e três anos, por alto terei verdadeiramente vivido, um total de dois...três anos no máximo», eis a nostálgica constatação de Don Fabrício, ele que «havia dezenas de anos que ele sentia o fluído vital, a faculdade de existir, a vida, em suma, talvez até a vontade de viver, desprendendo-se de si, vagarosa mas continuamente, como os pequenos grão de areia que escorrega, um a um, sem pressa e sem detença, pelo estreito orifício da ampulheta». Era Julho de 1883.

Cito este excerto de "O Leopardo" de Giuseppe Tomasi di Lampedusa. Um clássico, dos que eu deveria ter lido há imensos anos mas não li, cuja leitura só consegui completar entre breves intervalos, os que foi possível, cuja narrativa não segui, pois nunca sigo, mas cuja paisagem humana, a geografia sentimental, ficou como uma viagem que fizesse pela sua Sicília e já a fiz há tantos anos de que apenas recordo o que leitura retorna agora como reminiscência, terra de «um sol violento e impudico, um sol narcotizante que anulava as vontades e mantinha todas as coisas numa imobilidade servil».

"Il Gattopardo" é, para além de uma estupenda obra romanesca, um momento em que se surpreende a  História da unificação italiana, a ascensão de Garibaldi, o triunfo de uma nova ordem por sobre a decadência da velha classe social, cenário de contrastes, de interesses mascarados de ideais, em que «o ciúme pessoal, o ressentimento do beato contra o primo sem preconceitos, do pateta contra o rapaz inteligente, haviam-se transformado em argumentos políticos», em que «ele havia chegado à conclusão que a aristocracia era constituída por um conjunto de homens-carneiros, cuja existência se justificava somente pela lã que ofereciam às tesouras da tosquia e pelo nome»

Por ali perdida - na página 35 de velha edição portuguesa, que foi a que me serviu, editada em 1961 pela Bertrand, a frase «se queremos que tudo fique como está é preciso que tudo mude», tantas vezes adulterada e imputada a outros. 

É sobretudo um livro carregado de observações irónicas, elegantes na forma, mesmo quando cáusticas na substâncias, de uma categoria senhorial que é de um tempo já morto. A cuidadosa tradução de Rui Cabeçadas mantém-nas incólumes.

Pululam pelas suas páginas personagens risíveis como o «homenzinho seco que escondia a alma de liberal ambicioso e rapace por detrás de uns óculos tranquilizadores e de gravatas imaculadas», ou outro «que praticava as próprias ladroeiras convencido de exercer um direito», o ainda o sacerdote, Padre Pirrone que «se sentava num canto, assumindo o ar marmoreamente abstracto dos sacerdotes que não querem pesar nas decisões alheias».

Talvez para esta viragem do ano, esta leitura, terminada já há semanas, adiada a vinda aqui anunciá-la, seja recordação simbólica. Sem obra prévia publicada, nem posterior, o autor, Príncipe de Lampedusa, iniciou a escrita deste seu livro aos 60 anos.

sábado, 18 de dezembro de 2021

De maneira que é assim

 


Mário de Carvalho é advogado e escritor, diria escritor apesar de ser advogado. Não que na profissão forense não se recrute uma plêiade significativa dos que se dedicaram à escrita e à edição. Entre os primeiros lembro, por exemplo, Rodrigues Miguéis, dos segundos recordo, exemplo também apenas, António Alçada Baptista. Só que as condições em que hoje se advoga por causa delas tudo converge para que quase não sobre tempo, nem estado de alma para que a escrita tenha oportunidade de surgir.

Confesso que li muito pouco de Mário de Carvalho, mas há sempre tempo de emendar a mão. Não digo que tenha começado por este livro, sucede é que terei de reler outros seus para me recordar da leitura pretérita pois, como em mim, já é natureza, há muita leitura que suponho nova mas, ante os sublinhados e por vezes as notas marginais, verifico que mais do que ter já lido, tinha pensado quanto lera e ruminante.

Li, pois, estas suas memórias dispersas, o livro aqui a meu lado. 

Há nelas muito de política, de quem foi militante comunista e em cujo ser essa vivência ficou indelével qual sacramento indissolúvel. O tempo da clandestinidade está ali retratado, temperado com a ironia crítica mas nunca como repúdio. A militância nasce-lhe no sangue como se pressente na apontamento "O dia em que levaram o meu pai", «a altura das perguntas de fundo, que eu nunca havia feito», segue-o com os cuidados conspirativos, os «pontos de apoio», a que se chegava com a consigna «põe os olhos no chão», as "tarefas" que, decididas pelo "colectivo" chegavam através do "funcionário", cujo nome se ocultava pela da sua função.

Mas o livro não se fica por aí. Proliferam apontamentos da Lisboa aldeã, essa aldeia feita de vizinhanças, a Penha de França, a Senhora da Glória, a Rua da Graça, o Forno de Tijolo, Sapadores, o Cinema Royal, os domingos, porque «domingo sem piquenique não era domingo não era nada». 

Leio em muito do que ele escreveu a memória dos mesmos lugares que foram meus, sem, porém, a substância do que para ele significaram e tornam hoje estes "relances" escritos "ao correr da pena", linguagem comum, familiaridade, como se companheirismo sem camaradagem.

«Oxalá nos encontremos, caro leitor», escreve no seu breve e tímido prefácio. Aqui estou, meu caro, com este breve apontamento. Ainda bem que o Ernesto Rodrigues levou as suas cópias "gatafunhadas" ao João de Melo e assim se iniciou com os "Contos da Sétima Esfera". 

Prometo ler mais, começando assim pelo aquele seu princípio.

domingo, 22 de agosto de 2021

A larva racionalista

 


Romeno, Constantin Virgil Gheorghiu estudaria filosofia e teologia em Bucarest e Heidelberg. Por ter servido como Secretário de Embaixada durante o regime do Marechal Antonescu, seria preso ao terminar a 2ª Guerra quando as tropas soviéticas ocuparam o seu país natal. 

Rumaria a Paris e publicaria aí o que é a obra pela qual é mais conhecido, "A 25ª Hora" [título original Ora 25] uma denúncia dos totalitarismos. Em 1963 seria ordenado padre da Igreja Ortodoxa. 

Li este livro na edição original. Foi escrito em 1956 e a Bertrand publicou-a em 1957, sem data de edição, com tradução de Maria Isabel Cunha Dias Miguel e dele tiraria uma segunda edição em 1970. Foi-me difícil trazê-lo aqui por não achar modo de o dizer.

A narrativa comove, ferindo por vezes a sensibilidade. Pressente-se na leitura algo de autobiográfico neste professor romeno a viver na Bulgária, dividido entre a obediência devida às autoridades locais do País estrangeiro onde presta serviço e o dever humanitário de salvar quantos possa da violência feroz do ocupante a que o País se rendera, subserviente, qual código de honra de marinheiro ante naufrágio e «há na Bulgária, na Roménia, mais pessoas que se afogam na terra do que no meio do oceano em plena tempestade».

A narrativa ocorre na Bulgária e na Roménia já sob o domínio soviético, trazendo para a Literatura a experiência vivida pelo autor. 

«José Martin era agora professor na Universidade de Sófia e director do Instituto de Antropologia Búlgara». O seu trabalho, financiado por um "Instituto de História Natural dos Estados Unidos" era «medir, pesar, fotografar, penetrar nos segredos da vida e da alma» de todos quantos na Bulgária pudessem ser assim inventariados, por ser a Bulgária tida pelos americanos, como um dos povos "atrasados", como «as tribos negras da Austrália, os Esqimós, canibais, a Grécia, os Pigmeus, as tribos indianas, a Roménia, a Índia». 

Há nisto uma amarga ironia e um substrato antroposófico racial que a narrativa vai tornando presente através da estonteante imaginação do autor, o da aniquilação da pessoa pela colectividade, o ar irrespirável que se vai acumulando ao longo das duzentas páginas deste meu exemplar de folhas tão oxidadas pelo tempo que passou.

Livro em que está presente a expiação da culpa, a culpa pela incapacidade de salvar na terra aqueles que os homens condenaram, há, a perpassar a escrita, a tragédia existencial entre o místico e o racional, este como opressor, aquele como salvífico, a danação do Homem sem transcendência,: «um místico, um homem que tem fé, pode libertar-se do pecado. Um homem lógico leva o pecado até à morte».

É seguramente uma obra de empenhada denúncia, mais do que a sorte dos seres humanos que, quase vultos, povoam as suas páginas, o destino cruel a que os arranjos da 2ª Guerra condenaram aqueles povos: «Os senhores entregaram aos Russos os Romenos, os Búlgaros, para salvar Roma, Paris, Londres. Entregaram-nos aos Russos no decurso das vossas conferência de Teerão, de Yalta, de Potsdam», em que o cinismo da diplomacia tenta convencer-se, em conveniente hipocrisia moral, de que os novos tempos trazem a oportunidade da convivência pacífica, e do compromisso, cómodo e utilitário modo de vida entre os Estados, regra de vida do Embaixador romeno que, não por acaso, tem como nome "Pilatos", em alegoria ao Pilatos bíblico que, assim o autor no-lo apresenta, na Última Ceia, tinha já o cheiro do Estado «tinha concluído a aliança com a Polícia».

Relato de um universo de aprisionamento, de mimetismo, em que «todos os homens têm um rosto semelhante», mundo de rendição, de seres que, tocados no ombro, levantam os braços e gritam, apavorados, «rendo-me!», rendição pela qual ansiavam, ansiosos de desistência.

Há em tudo quanto li, e li tudo, o que creio ser a mais conseguida faceta deste modo de escrever, a figuração do verme, "racionalista" porque apenas pode viver no cérebro do Homem, que «com o cérebro cheio de vermes o Homem não deseja na vida senão a "pequena lógica", a quotidiana, instrumental para a sobrevivência imediata, mas mutante «que deixe de ser válida de um dia para o outro».

A "larva racionalista" que faz aquele em que foi feita penetrar «perder primeiro a alegria. Depois perde a tristeza. Nunca mais está alegre nem triste. O verme racionalista devora em seguida outro segmento do cérebro, o Homem fica sem nenhuma espécie de ideal, sem nenhuma esperança. Depois o Homem que tem o verme na cabeça torna-se indiferente à noção de direcção. Todas as direcções lhe são indiferentes. A vontade começa a fatigar-se por sua vez. Tudo o que pode acontecer a este Homem lhe é indiferente.»

Livro tremendo, pena estar esgotado, actual, necessário. A vida repete-se mesmo quando a História parece diversa. O Homem é sempre "O Primeiro Homem".

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Escorrer do próprio verbo

 


Agustina surpreende-nos íntima mas secreta pela sua escrita quando se interpõe aos seus personagens, tornando-se narradora e amiúde comentadora, ou quando se revela através deles.

Mas foi talvez nesta correspondência que um conhecimento deu em amizade e esta em sentimento de pertença, esta naquele sentido em que as almas, diferentes porque diversas, se encontram num relação de mútuo e tão próximo reconhecimento.

O encontro deu-se no que seria uma ocasião que lhe deixaria azedas recordações, em Julho de 1959, em Loumarin, perto de Aix-en-Provence, num colóquio de escritores, patrocinado pelos EUA um dos «meios de combate contra a a influência soviética na Europa durante a Guerra Fria».

Como se percebe por esta troca de cartas e não se supõe de modo tão nítido no livro "Embaixada a Calígula", livro de viagens em que esta é uma das referidas, nem os organizadores do colóquio a sentiram como parte do que ali estava e se pretendia e ela própria se apartou de tudo, antipatizando com o que lhe foi dado assistir, essa «majestosa mediocridade» lhe chamaria, acintosa no seu sentir verdadeiro. Antipatia, com uma excepção, porém, a do seu interlocutor nesta correspondência, o escritor Juan Rodolfo Wilcock, que se inicia nesse ano e se prolonga até 1965.

Trata-se, como acentua o prefaciador, Ernesto Montequin, de laços que oscilaram «entre o afecto e a malícia, entre o respeito e a insolência, entre o fascínio e o temor».

Ante as cartas, editadas em abril de 2012 pela "Relógio d'Água, o leitor sente a pulsão errática do desejo, o do encontro, adiado pelas circunstâncias ou tomadas as circunstâncias como razão para o evitar.

Para quem queira achar a pessoa da escritora para além do que escreve, há aqui uma relativa oportunidade, não fora Agustina, mesmo aqui, não largar a pele de quem não se abandona para além da sua escrita. Mesmo assim, momentos surgem, inesperados, em que a volúpia das sensações irrompe para além da contenção das conveniências e seus encargos, como quando em Agosto de 1960, escrevendo de Esposende, para o «meu querido John», como que sussurra: «e nós escorremos do próprio verbo, gracioso e amantíssimo companheiro meu», para longo se disciplinar, como a soerguer-se, para o rictus da pose, clamar, em desespero: «Todas as coisas em meu redor murcham na minha presença, em sólidas, demasiado mortas, recordações».

É um livro requintado, desigual, Juan Rodolfo Wilcock tão aquém, fugidio, cerimonioso mesmo quando superficial, desentendido ou a desentender-se do que lhe chega em afagos de cuidado e mimo mesmo quando em rompante áspero, tal qual foi Agustina, ou quando «vagabunda nos meus costumes e volto a ouvir-me hermeticamente».

É, sobretudo, um livro dorido de revelações: «Vivo a minha crise mais terrível, de dúvidas, de neurastenia, de horror pelo mundo e por mim mesma», escreve do Porto, em Outubro de 1960, e continua: «Caverna de desejos de aparência negra, eu não me atrevo a consolar-me por medo de perder o melhor da minha inspiração, o sofrimento.»

Mónica Baldaque traduziu as cartas que vinham em castelhano e nas notas à tradução explica recuando às origens terenas do Ser excepcional que foi sua Mãe: «A relação de Agustina Bessa-Luís com o castelhano tem raízes familiares do lado materno. A sua mãe, Laura Jurado Ferreira, nascida em Corrales del Vino, na província de Zamora, a 17 de Janeiro de 1897, era filha de Loureço Guedes Ferreira, nascido em Loureiro, Peso da Régua, que por motivos profissionais se mudou para Zamora em 1895. Foi nesta ocasião que conheceu a espanhola Lourença Agustina, também nascida em Corrales del Vino, com quem viria a casar-se em segundas núpcias e de quem teve vários filhos, mas só três sobreviveram.»



sábado, 31 de julho de 2021

A nobreza de não saber viver

 


Tenho apreço pelas fotobiografias, porque nelas mais do que ler, vê-se o biografado, forma de aumentar o nosso sentir sobre ele, como se nos fosse restituído.

Claro que são, amiúde, obras de devoção e esta, que estava à minha espera depois de uns dias de descanso junto ao mar, anuncia-se como uma «obra de devoção filial» e há, por nisso nelas,  menos nesta, perdoável exaltação do biografado: aqui é a voz do sangue dos seus que se perfilam, em escrita respeitosa, eles a quem lhes deu o ser mas deles tão ausente esteve pelas circunstâncias que a vida lhe impôs e fruto do que, ser complexo e tenso, quis fazer da vida. 

Estudei Literatura no Liceu a partir da obra que António José Saraiva compusera a meias com o seu companheiro de uma vida, Óscar Lopes, apesar de o meu professor de então ter feito feito notar que o Reitor lhe havia feito saber e pedido que dissesse que se tratava de obra que não podia ser aconselhada. Razões, percebi mais tarde, decorrentes da filiação comunista de Saraiva, com a qual romperia em termos graves e que o decorrer da vida acentuaria.

 Vejo aqui que esse notável estudo sobre a História das Literatura em Portugal, teve vinte e uma edições, e foi escrito nas mais penosas circunstâncias, afastado o autor do ensino, confinado de meios económicos, a obra publicada com dificuldade, assim como a sua "História da Cultura em Portugal", editada na década de cinquenta, em fascículos, pelo "Jornal do Foro", a revista dirigida pelo Advogado Fernando Abranches Ferrão.

António José Saraiva marcou o seu tempo pelo inconformismo e este livro, que Ernesto Rodrigues prefacia, é disso exemplo, quer pelo que vem escrito por seus filhos, António Manuel, José António e Pedro António, quer pela significativa antologia que o guarnece. Ao lê-lo, vem à lembrança a rebeldia de um Agostinho da Silva.

Levada a subtítulo, a frase «a intimidade de um intelectual indomável» é rica de conteúdo, mas a que me fica como exemplar é a que lhe volveu Vitorino Nemésio, seu mestre, quando, a rematar uma iracunda conversa entre ambos, sobre a nota a atribuir a um aluno, e depois de Saraiva ter tido o arrojo de lhe desligar o telefone na cara, rematou o que viria a converter-se num processo disciplinar: «Saraiva, você tem a nobreza de não saber viver».

É esta a narrativa de uma vida, os altos e baixos, as polémicas, a ruptura política, o «arco tenso» dos enamoramentos, a frugalidade estóica. Nascido em Leiria, com família originária de Donas, exilou-se em Paris, ensinou na Holanda, escreveu em Macau.

A vida interrompeu-se-lhe ao falar de Fidelino Figueiredo. Quer o que seja, acaso ou predestinação, é um dos pensadores de quem reuni quantos livros me foi possível e por quem nutro um apreço feito de sensibilidade comum.

Aqui ficam estas notas. Do filho José António fui companheiro de escrita no "Comércio do Funchal», o jornalinho cor de rosa onde se albergavam quantos eram do "contra" na década de sessenta; dirigido por Vicente Jorge Silva, vejo aqui uma fotografia em que reencontro, enfim, a fisionomia daquele que para mim era então apenas um correspondente a quem enviava, dactilografados em meia folha de papel, os meus artigos incipientes, fruto de vinte anos de atrevimento: sorriso largo, tão novos éramos, Luís Manuel Angélica.


domingo, 18 de julho de 2021

Genoveva de Lima, a elegante pluma

 


Li o que Genoveva de Lima Mayer Ulrich [1886-1963] escreveu, com arrebatamento e elegância, sobre Carlos Félix de Lima Mayer, seu pai [1846-1910]. Um artigo de jornal, nosso contemporâneo, achafurdando por mexericos sobre a sua vida social e íntima, para gáudio dos alarves, chama-a, com selvática injustiça, uma «escritora medíocre».

Casada com o Embaixador Rui Ennes Ulrich, duas vezes ministro plenipotenciário em Londres, a sua casa, hoje sobrevivente, em Campo de Ourique, animou um requintado salão literário. Há uns anos, graças à gentileza do seu actual curador, Alfredo Magalhães Ramalho,  tive a grata oportunidade de ali falar sobre o texto de apresentação que escrevi para a edição, enfim traduzida do italiano, da obra "O Príncipe" de Nicolau Maquiavel. 

O livro,  publicado em 1945, editado pela Livraria Luso-Espanhola que ainda conheci na Rua Nova do Almada,  é uma biografia de uma pessoa e retrato de uma época, dando o título sinal que resuma a obra: "O único vencido da vida que também o foi na morte».

Discreto membro do grupo "Os Vencidos da Vida", esse escol de primeira linha da inteligência combativa do século dezanove, foi esforço carinhoso para «baixar as pontes levadiças no castelo do esquecimento, revogar o ostracismo, esconjurar o silêncio» daquele ser propulsivo que, propiciando meios para que outros deles usufruíssem, se recolheu à discrição, ficando assim sujeito ao «emudecimento avaro dos seus contemporâneos», esse silêncio nascido na «conspiração subtil em que colaboram o inconsciente e a distração num sentimento fratricida inconfesso, onde vagamente giram despeitos subjacentes e conivências herméticas, sepultando na mesma cova a gratidão e a dívida!...»

Ler o livro, hoje quase já só em bibliotecas, como a Biblioteca Nacional ou a Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian,  é surpreender na intimidade toda uma plêiade magnífica da cultura e sensibilidade, achá-los reunidos na Quinta da Cruz do Taboado, de Lima Mayer, areópago de «onze menestréis românticos, talvez irreverentes vagamente truculentos, como tudo quanto é moço, mas sem a morbidez fatalista e acusatória daqueles que, julgando conhecê-los, lhes conferiram desígnios demolidores e negativistas»; mas é também seguir a trajectória, ascencional primeiro, e depois em rápida decadência, do biografado a partir do momento em que «a alma do vencido começava a arrefecer antes do corpo: a desolação penetrava-o como lâmina mortal dum gládio invisível». 

Sobre Lima Mayer, pobre, em progressiva cegueira, isolado na sua casa às Janelas Verdes, sem companhia que apenas Jaime Batalha Reis consolava, mas já em vão, aproxima-se o momento em que «não era possível viver naquela jugulação como um destroço aos tombos», põe termo à vida com um tiro de pistola. Afinal como Antero de Quental.

Espírito tremendo de irrequieto, nada tendo escrito, Carlos Félix foi, porém, activo contemporâneo, mas em permanente «exílio incognoscível», entre tertúlias e salões,  de João de Deus, «o poeta amorável, o sonhador dos ritos ternos, o contemplativo ingénuo e forte como alma de criança e, no peito, toda uma orquestra de cânticos matutinos soltos pelos jardins de Deus», de Eça, que Manuel Rezende lhe apresenta como o «José Maria Eça Mefistófeles de Queiroz, meu velho amigo, que, dentro das botas, esconde os seus pés de chibo», do fugaz Camilo, o severo Herculano, «rodeado de admiradores submissos e de damas fanatizadas», Antero de Quental, «que, nessa altura, já vinha marcado com sombrias inclinações», Ramalho Ortigão, «em briga elegante e empoada com o racionalismo em bronze de Oliveira Martins», este «o herói da sinceridade do pensamento», tantos, afinal, na vida literária, assim como na diplomática, aqui em elegante companhia em Londres com o Marquês de Soveral, embaixador em Londres, figura lendária que se tornou íntimo do Rei Eduardo VII, estimado pela Rainha Vitória e pela Rainha Alexandra, da Dinamarca, que ambas o condecoraram.

Li o livro, há uns dias. Guardo dele, hoje que vim aqui deixar da leitura esta breve nótula, a sensação requintada do que foi, no seu mais esplêndido fulgor, esse intervalo da "Belle Époque"; entre os reposteiros da sociabilidade convivial, a pulsão trovejante de uma época de ruptura, «torneio de fúrias em desalinho, excelentes, higiénicas, que punham correntes de ar na temperatura anquilosada pela espessura dos santos».

Tudo quando cito são expressões de Veva de Lima, como ficou conhecida por este "petit nom". Por aqui se vê que medíocre é quem tão mediocremente a viu, mas isso quanto menos importa. 

 

sábado, 26 de junho de 2021

A fisiologia do amor

 


A Queda de um Anjo de Camilo Castelo Branco pode ser lido, e há quem leia, como se lido Eça de Queiroz, naquilo em que há nele, em parábola humorística, de crítica social, chacota à vida política e parlamentar do tempo, diatribe à pomposidade oca dos seus discursos, ao caciquismo como forma de promoção partidária, ao triunfo da mediocridade pelo arranjismo

A obra teve primeira edição em 1865, tinha Eça vinte anos, dez anos antes de se ter aventurado pela ironia cáustica com O Crime do Padre Amaro.

Li-a agora na 7ª edição, dita conforme a 2ª, esta revista pelo autor, publicada em 1925 pela Parceria António Maria Pereira, naquelas edições populares, em oitavo, em papel pobre, encadernadas sem título na capa, sim apenas na lombada.

O que retive foi menos aquela dimensão que hoje se diria de intervenção social pelo  sarcasmo literário - essa embora impossível de não se denotar - mas o riso, sim, de trágica ironia sobre  os acidentes do amor e seus ridículos.

A personagem, presta-se ao efeito. Sente-se em Calisto Eloy de Silos e Benevides de Barbuda, morgado da Agra de Freimas, nascido na aldeia de Caçarelhos, termo de Miranda, em 1815, filho de Basilissa Escolástica e de pai também Calisto, casado com sua prima direita, D. Theodora Barbuda de Figueiroa, ela também morgada, mas de Travanca «senhora de raro aviso, muito apontada em amanho de casa, e ignorante mais que o necessário para ter juízo», o corpo de «poucas carnes» em que assentará a soma de anedóticos particulares que o tornam grotesco.

E é assim que ruma a Lisboa onde «o demónio parlamentar descobre o anjo» e nas Cortes o novel tribuno se destaca, primeiro, pelo burlesco dos seus discursos de  cândido puritanismo e de de estrénuo combate pelos antigos valores legitimistas para, de comicidade em comicidade, ferrar o pé nos salões de Lisboa, nestes na casa de um antigo desembargador do Paço, pai de duas galantes senhoras, uma casada e outra solteira, aquela envolta em trabalhos íntimos extra-conjugais.

É por aqui que o fio da história se descose, Calisto qual anjo custódio, urde a seguir «o caminho da predestinação de desviar aquela senhora do caminho mau» e a conquistar as graças do choroso pai, arqueado de gratidão pela restituição da paz doméstica, sem saber que novos bulícios lhe surgiriam porquanto, o anjo salvador, casado embora, seria acometido por serôdia paixão pela filha disponível.

Eis o que se me tornou o momento mais inesperado e marcante do livro, a fisiologia, diria físico-química da fulminante paixão, eis Camilo em um dos seus magníficos arranques:

«Foi neste momento que o morgado da Agra de Freimas sentiu no lado esquerdo do peito, entre a quarta e a quinta costela, um calor de ventosa, acompanhado de vibrações elétricas, e vaporações cálidas, que lhe passaram à espinha dorsal, e daqui ao cérebro, e pouco depois a toda a cabeça, purpureando-lhe as maçãs de ambas as face com o rubor mais virginal».

Mais! Explorando a fundo a caricatura e com ela a mofa, continua o autor da Brasileira de Prazins:

«Duas enfermidades há aí, cujos sintomas não descobrem as pessoas inexpertas; uma é o amor, a outra é a ténia. Os sintomas do amor, em muitos indivíduos enfermos, confundem-se com os sintomas do idiotismo. É mister muito acume de vista e longa prática para discriminá-los. Passa o mesmo com a ténia, lombriga por excelência. O aspecto mórbido das vítimas daquele parasita, que é para os intestinos baixos o que o amor é para os intestinos altos, confunde-se com os sintomas de graves achaques, desde o hidrotórax até à espinhela caída.

«E aqui está que Calisto Eloy - ia-me esquecendo dizê-lo - também sentiu a queda da espinhela, sensação esquisita de vácuo e despêgo, que a gente experimenta, uma polegada e três linhas acima do estomago, quando o amor ou o susto nos leva de assalto repentinamente».

Eis a fisiologia do amor, o «beliscão suavíssimo», «as misérias e parvoíces d'esta serôdia mocidade», o «trabalharem-no umas cogitações tão sandias, que seriam imperdoáveis, se não estivessem na tresloucada natureza de todo o homem que ama», esses «hórridos eclipses do entendimento que após si deixam lágrimas tardias e vergonhas insanáveis».

Perfilhado como «filho de mãe incógnita», órfão de pai aos dez anos, Camilo vivia então, idos amores tumultuosos, com Ana Plácido, em São Miguel de Seide. Por ela e com ela expiara na cadeia pelo crime de adultério.

É, pois aqui que tudo se situa e tudo se explica, a escrita obra de catarse e expiação.

«O amor é tão engenhoso como a natureza» remata-se na obra, no penúltimo capítulo antes da conclusão. Um escritor como Camilo sublima esse engenho com magnificência da Arte de dizer.

 

sábado, 12 de junho de 2021

Palavras e Sangue

 


O privilégio de ter um livro, ainda que amarelecido, encarquilhadas as folhas, desbotadas quando não manchadas, a capa, porém, ainda a resistir. Um daqueles livros em que os cadernos iam cosidos antes de a capa ser colada aos folios já batidos, mas em que a guilhotina se ausentava, deixando o corte dianteiro rugoso e imperfeito. 

Livro destinado a ter de se abrir com uma faca e ter uma faca adestrada a cortar papel, tudo relíquias de um tempo que parece já tão sumido no tempo, livro indiscreto, a denunciar não ter sido folheado sequer ante os maços por abrir.

Livro assinado pelo que antes o teve como seu, no caso em 1957, ano desta edição, identificado com um ex-libris e que na biblioteca pessoal teve número de ordem manuscrito na folha de guarda.

Livro com orelhas, a esquerda de resumo da própria obra, a direita a anunciar a próxima da colecção, assim fidelizando o leitor.

Livro com capa do pintor Bernardo Marques, que tanto trouxe à ilustração editorial com o seu traço em que pressentimos um Almada Negreiros ou um Mário Eloy.

Ter um livro cuja tradução se prenunciaria fraca, por ter sido isso infelizmente o que sucedeu na editora, mas que é notável porque afinal do poeta brasileiro Mário Quintana, sendo este o seu primeiro trabalho de tradução para a "Editora Globo", versão revista para português de Portugal pelo açoriano Agostinho Vieira d'Areia.

Ter a oportunidade de o livro, buscado à estante, ser de Giovanni Papini, essa portentosa figura do panorama literário italiano, de quem tento juntar quanto posso e ler tudo o que escreveu.

Livro de breves contos, publicado no original em 1912, precisamente no ano em que o autor parecia esgotado com o seu "Un Uomo Finito", ano prolífico em que traria a lume mais três obras, este, "Palavras e Sangue", traz-nos a escrita paradoxal, a equação do tempo com o seu espaço e todo um referencial onírico de desdobramento do eu em um mundo que é o seu próprio espelho.

Difícil escolher em tantas da narrativas qual a que melhor figuraria neste apontamento. Logo o primeiro em que «um pescador estendeu as suas redes e de dispôs a enganar também naquele dia os ridículos peixes», em que «o vento soprava ainda mais forte, encolerizado com a preguiça das nuvens»; ou aquele a que chamou "Sem Razão Alguma", para cujo personagem, «a insónia era o seu excitante e as obras por escrever alinhavam-se, noite a noite, na sua memória, como sonhos artificialmente conservados».

Pena faz que talvez já não haja leitores para quem «todo este presente não é mais do que um prefácio», sensibilidades comuns de alguém «encerrado como uma mónada, secreto como uma célula, mudo com um nocturno felino», seres para os quais «a quinta essência da subtileza filosófica consiste em descobrir a diferença entre iguais».

Fico por aqui. Mundos pequenos: um dos pseudónimos de Giovanni Papini foi "Gian Falco", o mesmo como se iniciou na escrita a nossa Irene Lisboa, a quem dediquei um blog, há tanto tempo por visitar.

sábado, 3 de abril de 2021

Albert Camus: livros de uma vida


 Fui comprando aos poucos, porque a vida faz perder bibliotecas, estas ao mercê dos seus insucessos, os livros de Albert Camus. Uns, agora poucos em português, a maioria, de novo já em francês, da edições de bolso da colecção Folio que a Gallimard tornou apetecível. 

Entretanto, foi-me possível, num momento de folga financeira ou de atrevimento, encontrar a obra completa já na Pléiade, com aquele típica sóbria encadernação, impressa em papel bíblia. E, depois disso, mais recentemente juntei ao lote de novo a obra integral, de novo editada pela Gallimard, agora na coleccção Quarto, desta vez enriquecida com alguns trabalhos preparatórios dos textos e notas críticas escritas por outros a tentarem dar enquadramento ao que lesse.

Hoje, ao encomendar na mesma colecção a obra integral do filósofo romeno Emil Cioran, de que me chegou, tardio eu sei, o desejo de o aprofundar, trazido o nome pela mão do Mircea Eliade, deparei-me com a questão: que fazer àqueles esparsos que fui juntando, que a alguém pode apetecer ler como a mim apeteceu, tão cedo isso foi na minha juventude? E com a questão caí no problema: mas quem lerá hoje em francês, língua em vias de extinção no nosso ensino? E quem quererá ler Albert Camus em francês e com ele a seriedade angustiada num mundo saturado de mal-estar, sedento de banalidade?

Sim, da sua autoria esgotou-se A Peste, de que houve necessidade de fazer apressadas reimpressões por causa da associação homóloga à actual pandemia. O livro que no passado foi lido como um manifesto contra o nazismo tornou-se no espelho reflexo do nosso confinamento.

Mas, regresso ao tema: que fazer daquilo que em mim é excesso e a outros, suponho, talvez necessidade? Não pretendo pô-los em venda nos OLX's pois só a ideia de os degradar ao cêntimo me incomoda. Prefiro oferecê-los, assim saiba a quem e sobretudo para quê.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Agustina - Régio: dois seres correspondentes

 


É o epistolário entre dois seres bisonhos, excepcionais na sensibilidade, Agustina a levar a palma em sarcasmo e em profundidade do pensamento, Régio, pretenso tímido, na defensiva, a defender o seu último fortim de sociabilidade, o Diana Bar, lugar que se tornou de desencontro.

E, como em toda a correspondência, ei-las as coisas miúdas, desde os reparos às pessoas, aos pequenos mandados, com a arca a comprar e a restaurar, que se tornaram duas sem que, ao final do livro, o leitor, tenha podido concluir se a segunda se chegou a concretizar.

O «luxo verbal» de Agustina está presente em toda esta escrita, adivinha a cerrada letra miúda, a ocupar toda a mancha do papel passível de ser escrita, e nela também os seus ódios e o seu orgulho, afinal a solidão, em paralelo com o misantropismo de Régio, confuso, proclamando humildade mas ardendo, afinal, no desejo de que os amigos gostassem dele e o lessem, ambíguo na sua contrição.

Claro que, como sublinha Isabel Ponce de Leão, na sua introdução ao pequeno livro, que em 2014 a extinta Babel editou, ainda com a marca Guimarães e a meias com a Câmara Municipal de Vila do Conde, a correspondência entre escritores presta-se ao voyeurismo, apelando ao consumo e assim ao aumento de vendas. Podendo ser esse o caso da primeira particularidade, e a ser ela pecado e não virtude de fruição privada, duvido que tenha ocorrido quanto à segunda. 

Através do bem cuidado índice, o leitor reencontra lugares e pessoas. É útil, mas traz, como seu resultado preterintencional, o ir-se directo ao momento em que algumas das figuras literárias que se supunham amadas, aparecerem desfeiteadas com apreciações sinceras mas nada lisonjeiras. O voyeur rancoroso terá  aí espaço para o seu deleite, breve, porém. Bem feita! Há que dar aos grandes o benefício de terem sobre o resto um outro olhar, cruel seja, até injusto.

domingo, 7 de fevereiro de 2021

A Funda



Só me apercebi da sua existência quando publicou, recuperando o estilo e as personagens queirosianas, o livro que apelidou de O Regresso do Conde de Abranches, memórias do contemporâneo transpostas para os olhos transactos, narradas pelo fiel Secretário do Conde, e através dele, Zagalo, o chiste e os "leões de riso" em torno de personagens já consagrados na vida pública portuguesa nesse conturbado período em que escreveu, o ano de 1976. Personagens que não terão na altura achado qualquer espécie de piada ao à la minute de que eram instantâneo caricatural, mas que, noblesse oblige, terão disfarçado, com cara de pau, a humilhação ante o que sabiam ser fundamentalmente verdade. Entre eles, Marcial Ribeiro de Souzela.

Li-o então, a Artur Portela (Filho), em pleno PREC, no Jornal Novo, periódico que fundara em 1975 e que, corajosamente, enfrentava a radicalização que tomava conta das mentalidades e das opções políticas. Fazendo-se eco da ideia de que o riso é também uma opinião constitucional, os artigos e os livros suscitavam apreço e rancores na exacta proporção em que o País estava dividido.

Recuperei agora os volumes que faltavam [excepto um, o quarto] da sua série a que chamou A Funda, que teve início em 1972, ainda sob o consulado marcelista, de que me chegou às mãos já só a 2ª edição, editada pela defunta Moraes Editores, onde António Alçada Baptista se foi endividando até ao limite da resistência, custeando, além dos livros, revistas como O Tempo e o Modo, que faleceria às mãos do MRPP e a Concilium, porta voz de uma outra visão do catolicismo, vista do ponto de vista do personalismo cristão.

Ler este livro é surpreender  a jovem geração tecnocrática que, com Marcello Caetano à frente do Governo, entrava então na vida pública, e para eles se formava a SEDES, a sociedade de estudos que haviam gerado para tornear a proibição de partidos, ante a subsistência de partido único que o Presidente do Conselho sucessor de Salazar não conseguiu ultrapassar, limitando-se a uma alteração de etiquetas, substituindo a União Nacional pela Acção Nacional Popular.

Incidindo sobre essa nova vaga o lorgnon da sua acutilante análise, Portela, que nos deixou este ano, tira-lhes as medidas, numa crónica datada de Janeiro de 1971: «Com Salazar, impacientavam-se na antecâmara. Com Marcello Caetano, entraram, de roldão, na vida pública. Vêm de Económicas e Financeiras, de Engenharia, de Sociologia. Têm quarenta anos. São apolíticos. Estão na Assembleia Nacional, na Câmara Corporativa, nos Gabinetes Técnicos. Fazem sauna, são católicos progressistas e falam alto, forte».

Assim pintados, eis o seu pensamento pragmático e utilitarista, numa só frase sumariado: «A política, ela própria, globalista, surge-lhes como um romantismo. Não há política. Há políticas. Não há política. Há soluções.»

E, no entanto, o regime, astuto, Artur Portela anota, soube sacar-lhes o necessário proveito. «Muito mais hábil, Marcello Caetano coloca-os, politicamente, nos cargos menos políticos. Ele tira o rendimento máximo destes operários altissimamente especializados. Importa-lhe pouco o seu snobismo tecnocrático. A cheia que eles são é, afinal, força motriz. Força motriz que, politicamente, rende.»

Eis o tom. Claro que livro não é só política. Há nele um pouco de tudo e muitos de tantos passa por ali, num retrato irónico da nossa sociedade, não diria de então, talvez melhor diria, retrato do português de sempre. 

Claro que um livro destes custa a ler quando desnuda, com sarcasmo, aqueles de quem gostamos. Mas se não soubermos suportar o riso, se nos levarmos excessivamente a sério, e não aceitarmos que possam ser assim, em gargalhada, avaliados os nossos heróis privados, é porque perdemos então da inteligência o fair play e com isso estamos já em estátua, e pior do que isso, estátua erigida ridiculamente em auto-consagração.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Um gesto inacabado de Deus

 


Biografando a Mãe, Mónica Baldaque biografa-se também, tornando indissociável a sua pessoa daquela que lhe deu o ser; em simbiose natural, Alberto Luís surge-nos, como elo inextricável dessa vida em comum, vida sua pautada pela dedicação à escrita de Agustina, consumida pela profissão de advogado, enriquecida pela arte de desenhar, desenhos de que o livro nos oferece exuberantes exemplos, pena a dimensão das imagens, nisso incluindo as fotografias, não transmitir, quanto devia, o que se sente quando se vê.

Escrita densa de sentimentos, perpassam por ela personagens que julgaríamos inesperados, momentos em que o suposto conservadorismo da autora de Sibila se nos revela em surpreendente inconformismo e mais surpreendente ainda rebeldia de espírito, em humor contido, em cáustico reparo.

Livro de memórias, de lugares, de habitações, polvilhado com pessoas também, nesta parte pode ser lido pelas que lá não estão, até as da vida da própria autora; relato de sociabilidade, é igualmente espaço em que a reclusão se expressa, nota-se pudor no que em outra mão surgiria ostensivo.

Há, eu sei, uma biografia de Agustina, que se tornou controversa. escrita por Isabel Rio Novo, sob o título O Poço e a Estrada. Mas o breve livro que Mónica Baldaque acaba de nos deixar, editado pela Relógio de Água, há um outro mundo em que aos pormenores do quotidiano se sobrepõem os sentimentos familiares e as sensações íntimas, os breves instantes que são um mundo a saber.

Quando, tempos de aventura, editei em álbum o inédito Colar de Flores Bravias, que Agustina escrevera, memória de sua infância, e Mónica Baldaque amorosamente  ilustrou, pressenti então o que aqui leio. O livro ficou-se pelo tempo do esquecimento, a editora sumiu-se como um intervalo do que já vivi.

Livro singelo, afinal, como se caderno diário, tornando em escrita o que está num carta de sua Mãe: «Não estilizemos demasiado o que sentimos porque acabaríamos afinal por fazer da melancolia uma vaidade mais». É esta a sua beleza sem ênfase.