sábado, 24 de fevereiro de 2007

O leitor incessante

Isto de eu vir aqui falar dos livros que ando a ler tem talvez a ver com a vontade de que os os outros os leiam também. Claro que há nisto uma tripla vaidade, digo para os que nas condutas alheias só encontram o lado pérfido, raramente o sincero: primeiro, é eu supor que há quem me leia, segundo, o pensar que se interessam pelo que eu leio, terceiro, julgar que há interesse no que eu digo ter lido.
Acordei esta manhã a pensar nisto mesmo, pois consegui acabar a leitura do breve manuscrito de George Agostinho Baptista da Silva que devido ao cuidado amigo de Amon Pinho Davi e Romana Valente Pinho foi recuperado do espólio do mestre.
O que aprendi eu ao ter lido? Por um lado, aquelas coisas pequenas que ou se esquecem de vez ou brilham, fugazes, em conversas ao jantar, fazendo os outros pensar que somos gente culta, quando apenas um sótão de minudências espantosas: por exemplo, que ao referir-se uma coisa de São Salvador da Baía se diz «soteropolitano», vá lá saber-se porquê, e que Barca d'Alva provém de Barca de Este e que assim se chamou até ao século dezasseis, o que faz sentido pois é de leste que nos vem o sol.
Mas o que tornou este pequeno livrinho uma fonte de pensamento, raiz daqueles momentos agónicos ao passar pelos quais não voltamos a ser como éramos, são aqueles surpreendentes acasos de escrita como os que aqui ficam hoje sábado, dia de preguiça e de rebeldia contra o fazer quotidiano.
Li, perplexo pois, num círculo infinito de pensar, que num mundo que «recua ao nada», «se eu pudesse voar do além para o aquém, jamais veria o princípio do mundo, mas ele todo já sendo».
Percebi com a minha cabeça dispersa, depois, rememorando o pessoano «tudo é o que é e assim é que é» que «os sentidos comuns de inventar ou descobrir são abusivos: tudo já estava».
Comovi-me no meu coração maltratado, a propósito da Maria da Ponte, guarda da linha do Minho e Douro, que há Homens «alguns tão bons que mereciam ter sido animal, papoula ou árvore, mas em mundo em que não houvesse homens, para que os não domesticassem, nem colhessem, nem podassem».
Prometi-me, enfim, com a minha vontade incerta, não ser mais como aquelas pessoas que «dão-se a melancolias e abandonos que os desviam de se cumprir o que são, como portugueses e como cidadãos do mundo ao mundo dados».
Como já notou quem me lê, se me lê e se gosta do que lê, eu há muito que não escrevo por ter descoberto nada haver mais para dizer. Leio, leio, incessantemente, escrevendo nos livros dos outros o que eles neles escreveram e dizendo-me, ruminante e conformado, o «é isto mesmo», fonte de todo o silêncio, mãe de todo o saber.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

A vida obrigatória

Diz-se dos amores inesperados que se anda neles «embrulhado». Ora eu, infiel ou talvez inconstante, interrompi a leitura do livro com que andava repito «embrulhado», porque encontrei numa livraria em Setúbal um livro do Agostinho da Silva, o «Caderno de Lembranças». O livreiro era amigo do professor e tem dele, por isso, uma fotografia do filósofo errante não consigo, mas com o seu filho mais miúdo. Pequeno, o livro é um convite para que o tenhamos como companhia num intervalo da vida obrigatória e foi nele que vi que teria valido a pena viver «tendo à volta uma muralha de livros tão alta quanto possível, para que me escondesse bem da vida que por aí vai». Por mim, comecei já a reunir primeira fieira de pedregulhos livrescos, em torno da cama, barricando-me nela.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

A biblioteca itinerante n.º 17

Ao ter lido, durante este fim de tarde, mais umas folhas da biografia do Alexandre O'Neill, fiquei a saber que, em certo momento de aperto financeiro, ele foi empregado em uma das carrinhas das Bibliotecas Itinerantes da Fundação Gulbenkian, no caso naquela que fazia o percurso pela zona de Sacavém e Loures. O Herberto Helder também por ali andou, ganhando para poder escrever.
Lembrei-me então da minha adolescência em Abravezes, perto de Viseu. Morava ao lado do cemitério. Entre esse lugar de plantação de falecidos e a «tasca do Zé da Bucha» ficava a igreja e o seu invisível cura; mais abaixo a mercearia da Cilinha, que tinha um cão paralítico por ter sido atropelado! De quando em vez, quebrando a monotonia do lugar, lá vinha a carrinha da Fundação, atulhada com livros, para empréstimo domiciliário. Li, com catroze anos, as coisas mais inacreditáveis para a minha idade, como um livro do Husserl de que compreendi nada e de que nem o nome me ficou. Terá sido então que me caíu nas mãos o «Rumor Branco» do Almeida Faria, que me transtornou a cabeça em matéria de literatura. Esta madrugada, em vez de estar a dormir, ou agarrado à minha profissão, estou aqui a lembrar-me disto, como se numa noctívaga fenomenologia do espírito.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2007

O café dos livros abandonados

Estive hoje a olhar para eles: uns lidos até metade, outros à espera que eu os leia. Poucos, muito poucos, aqueles que nunca lerei. O Jorge Luís Borges metia em sacos os livros de que se queria ver livre e abandonava-os, como se perdidos, nos cafés. Claro que muitas vezes lhe acontecia aparecer-lhe o empregado do café, solícito, a devolver-lhe os livros, pensando que, distraído, se tinha esquecido deles. Como se sabe o Borges ficou progressivamente cego e imagino que esta cena sucederia na altura em que ainda conseguiria ler alguma coisa. Comigo, sou eu o empregado do meu café dos livros abandonados. Hoje apareci-me [este verbo tem de ter, para que eu seja feliz, a forma reflexa, diga o que disser a gramática!] com o João Miguel Fernandes Jorge e o seu livro de poesia «Termo de Óbidos». Tinha-o lido, como tantas vezes faço, de trás para a frente, sublinhando aqui e além. A última linha anotada dizia as «letras impressas guardam para nós a escrita».

domingo, 18 de fevereiro de 2007

O medo de me surpreender

Trouxe-a para casa, à biografia do Alexandre O'Neill. A biógrafa nasceu em Viseu, onde, vindo de África, eu nasci interiormente. Comecei ontem a leitura, embriagado naquela vida de boémia desconchavada, um sibarita entre tabernas e alfurjas, o prego e os calotes como modos de resistir. No meio de tudo isto, a recusa do modo funcionário de viver. O'Neill morreu no dia 21 de Agosto de 1986, um dia encalorado. Tempos antes, ressacado de dor, dissera numa entrevista que a morte é uma fuga definitiva a todas as chatices. Hoje é domingo, faz sol, e cá continuo, vivo, a ler. «Quem se destrói, não cansa». Pois não. Tal como ele e os outros escreveram para dizer porque eram surrealistas, perdi o medo de me surpreender.