sábado, 27 de outubro de 2007

A desbunda do arrear crítico

Dizer que um livro de Urbano Tavares Rodrigues, para mais um seu livro recente, é medíocre, é arriscarmo-nos a arranjar sarilhos, porque em Portugal há figuras que atingem uma grau de soberana intangibilidade e as pessoas receiam desdizer, concentrando em outros bodes a desbunda do arrear critico. Mas eu estou na fase do querer lá saber.
Fere-me estar a ler parágrafos de escrita vulgar no seu romance «Ao contrário das Ondas», que ontem trouxe de uma livraria de Aveiro e ainda pela noite, já a cair de desolado cansaço, tentei ler.
São frases que pretendem ser, obsessivamente, mostras de azedume cívico, demonstrações de intervenção social, credos na boca de esquerdismo político, como se o leitor não soubesse quem ele é e quem ele foi, e Urbano tivesse de exibir na cidade vigiada das Artes, a cada polícia da boa literatura militante, o seu passaporte com o visto em ordem, sem o qual não há livre trânsito na escrita.
Ali há um tal António Pedro que vai ao teatro e, claro, a peça é de Bernardo Santareno, há uma conversa à mesa, e obviamente tem de ser sobre a queda do Governo de Vasco Gonçalves, fala-se de Lisboa e lá vem, pois, que é gente bacoca «com ódio à liberdade, e com desdém pelo povo, excepto quando fazem discursos eleitorais». Há ali disto de embarda.
Eis aqui neste modo de escrever, tardio, teimoso, o que desvalorizou, como arte, o neo-realismo: o fingir ignorar, na sua ânsia de ser política através da escrita, que há mais mundos que os do clandestino homem da bicicleta, há mais humano que no social.
E, no entanto, Urbano tem momentos de densidade sentimental, como quando nos conta que para Lívio, em Sabina, havia «muitas zonas da sua intimidade que lhe eram alheias», para aí surgir António Pedro que, subrogando-se a Lívio, «a impediu de secar completamente como mulher». Só que, é neste livro, desgraçadamente é amiúde uma sensibilidade espasmódica de fornicação, o sexo como ginástica do corpo, mecânica dos fluídos, ócio dos afectos, omitida a palavra amor, os beijos-ventosas salivados de insanciável sensualidade, o «nada de sentimentalismos, disse ela, repelindo-o».
E, claro, logo adiante e por todo o lado, como se num comício sempre dos mesmos contra os do costume, o livro feito cartaz, a literatura propaganda, lá vai Lívio falar sobre a blogoesfera à Fundação Luso-Americana para se dizer que se troçava da assistência, o Lívio que, deputado do MDP, falava com elegância de questões de fundo, não sem antes, como independente de esquerda, chefiar um serviço na RTP, eis um moço que é da JCP e detesta o ministro da Justiça, até, enfim ei-lo que chega, o próprio cego que vai tocar gaita de beiços ao monte alentejano e obviamente toca a Kalinka e, ai, a Cumparsita!
Fico-me, social traidor e decadente burguês, pelo tango, roçagante, lascivo, lubrificante, omitida a palavra amor. Acompanhou-me na noite sovada. Hoje, pois acordei, vou ler o resto do livro, para me irritar. Depois ataco a «Obra Completa», na esperança de de que haja um Urbano diferente e sobretudo melhor.

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Se uma gaivota voasse

Estive esta tarde no museu do mar em Ílhavo para descobrir o que é a solidão de um um homem, na pequenez entorpecente de um «dóri», o mar gélido como presença, um fio de pesca como esperança, a dura faina pesqueira como ganha-pão.
Foram heróis, na Terra Nova, esses nossos portugueses, escravos marítimos, salgados nas entranhas, como os bacalhaus que pescavam.
Etimologicamente a palavra «dóri» provém de dor, da dor sentida, para além dos ossos e nos confins da alma. Afogada em aguardente, nas saudades de casa, no contido desejo de voltar.
Sente-se hoje o cheiro do pescado salobre, a caminho do Cais do Sodré, na Rua dos Bacalhoeiros, impregnado na cal das paredes, ida que foi a frota de pesca, perdidos os barcos, recolhidas as velas, ancorada uma vida em terra, como gaivota entristecida sem céu para voar.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Tempo presente

O «blogger» permite fazer o que vou fazer: atrasar o tempo, fazendo com que estas palavras tivessem sido escritas antes da hora em que a Cinderela perde o sapato de cristal.
Faço isso para ficar feliz com a ilusão de que consigo pensar todos os dias, quando há dias em que, robotizado, nem tempo para isso há, e faço isso para que pareça que tenho, como espaço, todo o tempo do mundo.
Claro que há a aparência de verdade de já passarem sete minutos da meia-noite e o desespero de eu estar em Braga, com lembranças de Braga e saudades de Lisboa. Dentro de segundos, graças ao blogger torno o passado presente, como quem empurra para longe de si o tempo futuro.

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

O vai-vem

Ir para os lados de Aveiro de manhã e de manhã regressar, ter de trabalhar antes de ir, ainda noite escura, e ter de trabalhar pela noite fora, agora que escureceu, só não me dói porque me dói mais a dor dos outros, com vidas ainda piores e que, com dignidade, silenciam o seu queixume.
A meio da viagem, na Antena 2, ouvi um programa sobre William Faulkner e uma das suas frases inesquecíveis. Perguntando-lhe alguém «mas, senhor Faulkner, que deve fazer quem não entende os seus livros, mesmo depois de os ler três vezes?», respondeu com ironia o laureado Nobel: «lê-los uma quarta vez!».
Ao chegar a Lisboa, a cair de sono e a ter de me acordar, pensei que na quarta vez em que viver, talvez entenda a vida que vivo.