quarta-feira, 27 de agosto de 2008

A alma desperta

Há momentos em que nos saturamos mesmo dos chamados «grandes vultos» da Literatura. Aconteceu esta noite com o David Mourão-Ferreira. Lia, meio estremunhado, o conto O Viúvo, quando uma súbita vontade de chegar ao fim me acometeu e o texto é curto, a narrativa breve, mas o sono imenso. A monotonia da história dava então mãos à vulgaridade do modo de a contar. A somar ao desespero descobri nestes contos, que juntos formam a antologia Os Amantes, a obsessão pela palavra «luvas».
Achei-o logo no primeiro, Nem Tudo É História, quando o automóvel capotou, na frase «mas era afinal a minha mão, coberta de sangue, que saía do interior dessa luva rasgada»; revi-o neste irritante O Viúvo quando «Adriano começou, pausadamente a descalçar as luvas», ao chegar ao hotel na praia e reencontreio-o quando, chegado a casa de Rita, aberta a porta por «uma criadita, novita e feia, assarapantada como uma borboleta», Adriano «devagar, meteu as luvas no bolso do sobretudo»; voltaram as luvas quando, num diálogo de ciúme assassino, Rita ironiza que a prenda que Paula, a amante de Adriano, agora viúvo de Elsa, lhe haveria comprado era «um par de luvas»; perseguem-me quando, já no limiar da porta «Adriano resmoneia, de cabeça baixa, enquanto começa a calçar as luvas» e sai de cena «muito mais com o aspecto de um órfão».
Enfim, saturara-me de «luvas» e do livro e do escritor quando, já a escrever este post para dizer isso e bem pior, à procura então de mais luvas para justificar a minha embirração tropecei no magnífico Ao lado de Clara, e nele «Ippolita debruçar-se-á sobre o pescoço de Gorella, depois de cuidadosamente lhe amarrar os pulsos atrás das costas; e tratará então de ir colocando, no pescoço de Gorella, com lentidão exasperante, um apertado colar de lascivas mordeduras; e, a seguir, sempre com os lábios entreabertos, vorazmente subirá até à altura do queixo de Gorella; e, por fim, no instante em que a sua língua deixar de obscenamente se revolver (...)».
Parei, hirto e inesperadamente desperto! Esqueço as luvas, perdoo a monotonia, a vulgaridade, foi-se o sono, «enquanto Giorgio, deliciadíssimo com a cena, se lhes terá reunido e as abraçará pela cintura».
Há alturas em que se descobrem, inesperados, magníficos e excelentes «grandes vultos» da Literatura Portuguesa. Era de noite e custava-me dormir. A leitura é uma excelente forma de manter a alma desperta, começando por descalçar as luvas. Obrigado David.