quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Viva Pantagruel!


Outro dia alguém dizia que os livros de culinária são um oportunismo. «Juntam-se umas fichas de receitas alheias, manda-se imprimir e já está».
Esta noite, talvez por ter feito para o meu jantar truta assada no forno, recheada a bacon e a tomate, com folhas de louro e vinho branco, como aliás manda a lei, permiti-me duvidar. Injusta acusação!
Na hora de vir aqui escrever, estive então a comparar meticulosamente o «Sopas, molhos e doces molhados» de Mathilde Guimarães, senhora de seu nome completo Maria Mathilde Almodovar Feio de Paiva Raposo Guimarães, com as «Receitas da D. Gertrudes» de quem no livro não se adivinha o nome.
Claro que há uma notável diferença. É que eu já comi o resultado das artes culinárias da segunda mas nunca os feitos gastronómicos da primeira. E há outra distinção: é que o livro de D. Gertrudes, cozinheira do «Galito», o magnífico restaurante alentejano ali para os lados da Luz, obra do seu filho, um bancário que se fartou do anatocismo e da usura, nunca ganhou o «Prix Littéraire» por «Diplôme d'honneur» da «Académie Internationale de la Gastronomie».
Mas acaba tudo aí. É que no mais não há um mundo de diferença que o leitor descortine pelos títulos das iguarias. A quem pertencerá o «chouriço albardado»? E o «rim de porco com ovos salteados»?  A «sopa de tomate patega»? A «açorda de mariscos»? Dou um doce a quem descobrir.
Espantar-se-á o leitor que eu fale disto. Mas repare que um dia pediram-me para ir apresentar no Museu Militar um livro sobre alimentação castrense. Lá fui e não me saí mal, invocando a minha habilitação própria de comensal do quartel em Mafra  e de apreciador das rações de combate que eram distribuídas ao glorioso Exército Português, isto para não falar na lata de atum escorrida para um pão de centeio e emborcado tudo com uma mini Sagres, em plena tasca nos contrafortes da Tapada, a caminho da Ericeira, que soldado em manobras não se faz rogado e a fome quando aperta é de cão.
Não chegando a encartado «gourmet», mas apenas a literato faminto, termino com um texto de Henrique Lara que guarnece o estupendo álbum sobre sopas e outras delícias molhadas da primeira autora: «uma antologia de sopas é um mapa do céu».
E depois digam que um livro de receitas não é um manual de literatura? De se ficar bêbado de tanto ler!