domingo, 15 de janeiro de 2012

A tragédia do "Via Láctea"

Há quanto tempo não escrevia aqui porque há quanto tempo não os lia! Entre os livros velhos que comprava para ler um dia e os que iam a meio para a eles voltar num qualquer dia o progresso era curto. E com isso não havia forma de a antiguidade se tornar moderna.
Encontrei-o numa venda de rua, aqui perto, no Campo Pequeno, no passeio da Avenida de Berna. Ao frio, ao vento, à chuva. ladeados por automóveis ferozes que iam e vinham pelo túnel fora, o Campo de Touros indiferente, nas suas catacumbas um Centro Comercial verdadeira manjedoura pública e outras aderências consumistas, os alfarrabistas.
Ali encontrei o livro das cartas em torno do Eça de Queiroz e da publicação das Prosas Bárbaras. Cartas do e para o Jaime Batalha Reis, do e para o Luís Magalhães. O escritor, organizador da colectânea, o editor. E um texto magnífico do Ramalhão Ortigão descrevendo o Cenáculo, a tertúlia sita na Travessa do Guarda-Mor, servido por um criado galego crismado como o "Via Láctea", incumbido de «um trabalho duro, violento, mas glorioso»: «examinar atenta e vigilantemente tudo o que se passasse no Universo, e informar o Cenáculo».
Imagina-se do irónico o absurdo. Inquirido duas vezes ao dia, o pobre homem, símbolo do real a fecundar aqueles espíritos únicos de um Antero de Quental, um Oliveira Martins, um Batalha Reis, um Salomão Saraga, um Lobo de Moura, respondia, trágico, a questões do teor das que assim se exprimiam: «Via Láctea, sentaste-te, misterioso e sinistro, à beira do grande rio profundo da humanidade? - Que foi que te disseram no seu confuso turbilhão as grandes correntes históricas? - Surpreendeste por acaso o grande fenómeno genesético, ó Via Láctea? - Seguiste o átomo até ele se converter na molécula?».
Genial, sobretudo pela capacidade de pensar a rir.